O fato incontornável da semana, candidato a ter longa vida, é a agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, ato cujas causas e consequências cabe a análises especializadas detectar e estimar e cujo alcance destrutivo, nos sentidos político e humanitário, nenhum agente que exerça ou aspire exercer autoridade política, em qualquer lugar do mundo, tem direito de ignorar ou relativizar. É um novo desafio que se apresenta aos democratas brasileiros, já às voltas com uma devastação promovida por um autocrata interno. Palavras e gestos escolhidos para uma situação podem repercutir sobre a outra.
É imperativo que analistas voltados à compreensão dos cenários anterior e posterior à agressão russa usem informação qualificada, multilateral, o mais isenta possível de vieses e produzam interpretações equilibradas, dotadas de senso de objetividade. Tão imperativo quanto isso é não faltar, por outro lado, em declarações de líderes, partidos e outros agentes da política, a capacidade de se colocar, com clareza e senso de urgência, em oposição a um gesto político-militar imediato e concreto que liquida, por decisão unilateral do governo de um país, instituições e vidas humanas que importam a todos, seja no sentido da solidariedade entre indivíduos e entre povos, seja no da autopreservação de cada pessoa, ou país. São igualmente problemáticas, numa hora dessas, a contaminação ideológica de quem se propõe a ocupar o lugar de analista e a ausência, no caso de agentes políticos, da disposição subjetiva de encarar a agressão militar sob a orientação primordial de valores.
Nenhuma posição política realista precisa ou deve ser cancelada em emergências assim. Ao contrário, nessas situações-limite elas são ainda mais requisitadas, porém, o que delas se requer, como uma de suas premissas, é que não confundam uma saudável recusa à ideologia com sua diluição num varejo destituído de causas, o que denota, não política realista, apenas uma política pequena. Daí que a condenação da agressão não comporta meias palavras da parte de quem tem responsabilidade política.
Minha opinião é desprovida de pretensões analíticas do contencioso geopolítico que ora se degenera em guerra. Faltam-me informação e reflexão sistemática sobre o assunto para estar apto a tais pretensões. Mas me é possível analisar, sim, ainda que evitando assertivas fortes, a conduta de atores politicamente responsáveis, no Brasil e no exterior. Em particular, a de forças que historicamente se autodefinem como esquerda, para as quais guerra e paz – como par de opostos – constituem, por tradição, um tema político nobre, que se mantém perene após o eclipse factual da oposição entre capitalismo e socialismo. Além de nobre, tema decisivo para a esquerda brasileita, face à hipótese provável dela voltar a ser governo.
Escapa a semileigos como eu, em relações internacionais, uma plena compreensão das razões mais ou menos determinantes pelas quais a derrocada, há mais de três décadas, do chamado socialismo real – da qual o fim da URSS foi o recibo de quitação – não levou, apesar de esforços feitos nesta direção, à desmilitarização da Europa. E das razões pelas quais não houve conversão mais relevante de recursos de estados nacionais e organismos multilaterais empregados em objetivos militares, em estratégias globais de caráter econômico, social, ambiental ou cultural. Como a ideologia não pode suprir esse déficit cognitivo, a discussão segue enevoada e convoca a política para não permitir que a controvérsia derive em guerra durante o tempo em que impera. A democracia é o melhor recurso que a política pôde até aqui oferecer ao mundo para cumprir sua missão de promover convívio pacifico aos humanos do presente, sem ofender a memória dos que já morreram, nem comprometer a vida de gerações futuras.
A democracia associada a instituições liberais não é um imperativo moral que possa ser imposto, a fórceps, a sociedades que jamais a experimentaram, como se pode dizer, sem exagero, que é o caso da sociedade russa. Ela não é uma crença universal, mas é uma fórmula política universalizável. Em vários países em que se firmou também como crença, tornou-se uma evidência institucionalizada, possível de ser oferecida, como alternativa de organização política e como dinâmica processual para resolução de conflitos, a sociedades submetidas a autocracias. O método desse oferecimento precisa ser, no entanto, o mais próprio da política democrática, o da persuasão e da participação políticas, continuamente praticadas em sociedades plurais. É a democracia ganhando força pelo exemplo, mais que pela coerção.
O arranjo liberal-democrático é um achado histórico que vigora numa parte do mundo, sob sério risco. Analistas e pensadores diversos apontam uma crise da fórmula, mas quase nenhum nega a sua vigência. As raízes e saídas da crise, bem como as chances da fórmula se manter vigente são temas controversos. Na prateleira há explicações e prognósticos úteis a vários credos políticos. Mas há sempre uma escolha política a fazer entre agir para deter ou para aprofundar essa crise. Escolha limitada pelas famosas condições objetivas tão evocadas em clássicos discursos da esquerda vinculada ao tronco principal da tradição marxista. Mas ainda assim escolha, mais ou menos assumida, ou dissimulada.
O gesto agressor do regime de Vladimir Putin induz-nos à explicitação de uma escolha política. Ser institucionalmente conservador diante de contextos onde a democracia liberal prevalece, reformador onde está constrangida por instituições iliberais e subversivo onde simplesmente ela inexiste ou foi revogada por atos arbitrários internos ou de agressão externa, como pode vir a ocorrer na Ucrânia. Essa escolha implica respaldar esforços ocidentais para dissuadir o governo russo de prosseguir na agressão; em confrontar argumentos nacional-militaristas de Putin que conferem ao interesse nacional russo um suposto direito de produzir efeitos negativos globais ao agredir “preventivamente” outro país, enquanto cala, autocraticamente, a oposição interna; por fim, implica em solidariedade à Ucrânia e à resistência dos que, naquele país, se opuserem à agressão em curso, apontando sempre a diplomacia e a pressão política como vias adequadas para detê-la. O que por sua vez implica, para não ser discurso oco, aceitar as consequências de tal opção, entre as quais a principal é que sub ótimos são o céu que a limita. Respaldar a aliança das democracias ocidentais não resolve os seus problemas. Enfrentar Putin não anula seu poder. A solidariedade à Ucrânia e seu povo não anula o extremismo do seu atual governo.
Essa escolha política também não expressa opção ideológica ou “cultural” pelo Ocidente ou por esse ou aquele tipo de organização econômica e social. Expressa alinhamento com a paz como valor e com a democracia, como instituições e conduta. Isso, em boa hora, tem orientado posicionamentos de líderes e partidos de esquerda ocidentais para os quais seria bom que a esquerda brasileira se voltasse em busca de referência e convergência. Refiro-me, como exemplos, à posição do primeiro-ministro português António Costa, à declaração pública do seu partido, o PS, bem como à da Internacional Socialista.
Observadores agudos do quadro internacional hão de analisar essas e outras falas e textos, indo além da recepção esperançosa que lhes dedico. Mais especialmente ao pronunciamento do presidente chileno Gabriel Boric, firme, simples e abrangente, dirigindo-se, sem omissões e sem excessos ou contorcionismos verbais, aos pontos cruciais: “Rusia há optado por la guerra como medio para resolver conflictos. Desde Chile condenamos la invasion a Ucrania, la violación de su soberania y el uso ilegítimo de la fuerza. Nuestra solidaridad estará com las víctimas y nuestros humildes esfuerzos com la paz”.
É ocioso comentar o flagrante contraste das palavras do presidente do Chile com o silêncio no mínimo leniente do presidente brasileiro, que sucedeu a suas palavras e gestos públicos de simpatia dirigidos a Putin. Mais significativo é comparar a fala do jovem líder chileno com a do experimentado líder popular da esquerda brasileira que, conforme indicações de todas as pesquisas, é o político com mais possibilidades de livrar o país da hipótese de reeleição do extremista. Pode-se dizer, sem dúvida, que as posições dos dois líderes da esquerda sul-americana têm sentidos gerais convergentes. Leiamos Lula: “É lamentável que na segunda década do século 21, a gente tenha países tentando resolver suas divergências territoriais, políticas ou comerciais através de bombas, tiros e ataques, quando deveria ter sido resolvido em uma mesa de negociação. Ninguém pode concordar com guerra, ninguém pode concordar com ataques militares de um país sobre outro“. Convergindo no sentido geral, as duas declarações em tuíte distinguem-se, pela presença (Boric) e ausência (Lula) do termo invasão na descrição do fato ocorrido. Também pelo anonimato dos protagonistas (Rússia e Ucrânia), no caso de Lula e pela nomeação dos bois, no de Boric.
Entre o tom explícito do chileno e o genérico do brasileiro poder-se-ia ver o efeito da maior experiência do segundo, seu maior traquejo na lida com as distinções entre política e diplomacia. Essa interpretação seria, no entanto, benevolente com Lula. Em outros momentos da mesma comunicação, divulgada por Leonardo Sakamotto, o insuspeito colunista do Uol, em 24.02, fica claro que a diferença não é o que falta, mas o que sobra na análise de Lula, em relação ao posicionamento político de Boric. Fala Lula: “A gente está acostumado a ver potências fazendo isso de vez em quando sem pedir licença. Foi assim que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque. Foi assim que a França e a Inglaterra invadiram a Líbia. E é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”. Aí estão os nomes do boi agressor e do boi agredido, porém, diluídos em meio a outros bois, que pastaram em outros contextos.
Os excessos dispersores do foco não são os únicos a retirar da fala de Lula o caráter de posição política orientada por valores diante da emergência dramática de uma crise atual, para torná-la uma incursão no mundo da estratégia politicamente orientada para o médio e o longo prazos, na qual presente, passado e futuro fundem-se em ritmo de tese. Para tanto, contribui também, na mesma fala, um discurso crítico da ONU que parece remetido ao contexto em que ele governou o Brasil, ou mesmo, mais atrás, o da eclosão, em plena guerra fria, do movimento dos não-alinhados a lembrar à ONU que a geopolítica do mundo mudara no sentido de congelá-la. Como entender a evocação, em flashback, neste momento, de uma política alternativa, embora não antagônica, à do globalismo liberal, que Bolsonaro xinga e Putin desafia? É possível que, em momentos não críticos, ela conte com simpatia e até parceria de Boric. Logo, não se trata de ver entre ambos os líderes, uma divergência de fundo. Mas a que atribuir a recusa de Lula a traduzir suas intenções em política externa em tática de efetivo e decidido engajamento contra o atual agressor da paz e ao lado do presente agredido? A pergunta requer olhar o que se dá na esquerda brasileira, mormente no PT, retaguarda que Lula pode interpelar, não confrontar,
É fato que se detecta no Brasil disposição semelhante à de Boric, por parte de algumas lideranças de esquerda, como se dá no caso do deputado carioca Marcelo Freixo, que certamente não é voz solitária. Frustram, por outro lado, e até preocupam as dificuldades do maior partido da esquerda brasileira em posicionar-se como a hora exige de agentes políticos que não podem se refugiar, como se analistas fossem, nas ambiguidades certamente reais e sérias que uma situação complexa envolve. Esse dilema entre se posicionar politicamente ou escapar pela análise é que parece acossar o ex-presidente Lula. O modo como enfrentará essa esquina é de alto interesse público no momento em que sob seus ombros se depositam as expectativas de muitos brasileiros que querem ou precisam sair do beco, sem sair do país.
Produz algum alívio saber que uma desastrada nota da bancada do partido no Senado – que criticava e responsabilizava principalmente os EUA e a aliança ocidental e secundariamente a Rússia, desviando o foco do caso concreto que tensiona o mundo – foi revista e tirada de circulação a tempo. Bom saber que há no PT anticorpos contra atrações ideológicas típicas de esquerda negativa, seja a saudade da guerra fria, seja a simulação ideal de uma polaridade norte/sul. Mas fica evidente ali também a presença relevante de posições que confundem alvos num momento tão delicado da política mundial e brasileira. Um mero ponto intermediário entre o olhar grudado no retrovisor e a inspiração no que se desenha como esquerda no horizonte do nosso século ainda jovem não basta porque pode, no máximo, produzir declarações genéricas que podem ser anódinas num contexto em que até o Talibã prega que se resolva a crise “por meio de diálogo e meios pacíficos”. Antes de ceder a piadas é preciso pensar que não basta pregar paz, tem que participar e se engajar, não cumprir tabela e depois torcer contra, entre amigos.
Sem agora mais me referir a líderes ou partidos específicos, registro a percepção, fora da direita autoritária (onde esse tipo de fenômeno é, a princípio, mais esperado) de uma admiração contida pela performance guerreira de Putin em áreas gauche de nossa elite política e da nossa intelectualidade. O traço é determinante na virtual extrema-esquerda (insignificante no Brasil) mas afeta, de viés, também a esquerda política, mais ainda em suas conexões universitárias, onde incide um esquerdismo doutrinário superficialmente intelectualizado. Mesmo quando se vê como “centro-esquerda”, ele segue refém da mentalidade bipolar dos tempos da guerra fria, agora aplicada a novas polaridades. A antiga atitude política anti-imperialista recicla-se pela denúncia de um “neo-liberalismo” elástico a ponto de estigmatizar todo o campo liberal, pressionando a porta do edifício liberal-democrático que é hoje o grande alvo de Putin. Mas se o olhar ousar uma penetração mais funda cogitará que a admiração pelo seu lado de “estadista” abriga reminiscências ideológicas que independem do antiamericanismo e da aversão “cultural” ao capitalismo e ao Ocidente. Pode-se ver aversão a pecados mundanos da política liberal-democrática, desfavoravelmente comparada à potência de um líder forte para promover justiça.
Como se não nos bastassem os ataques que a democracia sofre hoje no Brasil, um problema adicional seria as cadeiras de geopolítica renderem-se ao pontificado de autocratas militaristas como Putin. Será uma lástima se, na atual quadra crítica, parte relevante da esquerda brasileira admitir retroceder à lógica e à retórica da guerra fria. Nessa hipótese, ela caberá como uma luva na máxima do poeta Samuel Coleridge, da qual Roberto Campos retirou a expressão-título do seu famoso livro “Lanterna na Popa”: “(…) a paixão cega nossos olhos e a luz que nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”. Para personagens como Roberto Campos, um liberista tido como radical, adversário ardoroso do socialismo e desconfiado da democracia, a esquerda sempre contribuiu para esse atraso em que via o Brasil mergulhado. Diagnóstico certamente exagerado, até injusto, mas que passará a valer como profecia se, numa esquina como a de hoje, a nossa esquerda não puder olhar para o mundo das possibilidades democráticas, do qual ela própria surgiu, para receber algum oxigênio.
Putin e Bolsonaro, noves fora as não poucas nem pequenas distinções entre ambos, precisam ser encarados como símbolos atualíssimos de um mesmo desafio às possibilidades da política como via de resolução de conflitos. Sendo guerreiros da autocracia como a titular da última razão, não se pode contemporizar ou flertar com os abismos que abrem, para aguardar suas vítimas no além das esquinas.
*Cientista político e professor da UFBa
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