Há um reconhecimento geral posto na mesa: a democracia representativa está sendo atacada por diferentes vetores, perde qualidade e parece abandonada pelos cidadãos. O espectro da “crise da democracia” se agita por todos os cantos. O Brasil não é exceção.
Será assim mesmo? A democracia representativa conhece de fato uma crise?
Convivemos com um maremoto de imprecisões terminológicas e de entendimentos dissonantes na linguagem da vida cotidiana. É o que acontece, por exemplo, quando se confunde democracia com liberdade ou quando se pensa que democracia significa ausência de regras, limites e obrigações. A democracia é vista como irmã xifópaga do liberalismo, mas não se valorizam com igual desenvoltura seus laços fundamentais com a reforma social, o socialismo e a social-democracia, que foram igualmente estratégicos para os avanços da ideia democrática no último século.
A situação atual está cortada por uma crise de assimilação. A democracia representativa está com dificuldade de acompanhar as mudanças aceleradas da vida moderna, que a desafiam. Precisa se adaptar a elas, mas nem sempre consegue fazer isso de maneira criteriosa, com reformas corajosas, ou seja, de maneira ativa e criativa, sem resignação e fatalismo.
Antes de tudo, a democracia sente os efeitos da mercantilização geral da vida, da prevalência unilateral do mercado como cultura, fator de organização e valor. Tudo se converte num sistema de “trocas” e vantagens competitivas, dissolvendo as ações de tipo cooperativo. Os próprios custos das transações políticas são extrapolados e não ajudam a que se governe melhor.
A democracia não é somente um “método” para que se tomem decisões coletivas e um sistema de representação baseado em normas e procedimentos. Também é um sistema de participação, que depende de cidadãos politicamente educados. Ressente-se quando mudam os modos de agir e pensar dos cidadãos, impulsionados por uma grande transformação social.
São, portanto, os próprios termos do jogo arbitrado pelo capitalismo financeiro global que travam a democracia. A saída é enfrentar os arranjos sistêmicos estabelecidos, projetando ao mesmo tempo os valores e as instituições que deverão prevalecer numa democracia requalificada.
O problema é que não há, a rigor, atores capacitados para levar a cabo a empreitada e assumir a responsabilidade pelos efeitos que dela advirão.
No fundo, a política está em crise, não impulsiona o sistema democrático. A democracia não ganha institucionalidade adequada, deixando de funcionar como ambiente capaz de apresentar respostas positivas para os problemas coletivos. Falta-lhe uma reforma que a alargue e oxigene, que a reconecte com as ruas e a torne mais receptiva ao modo como se vive. Tudo indica que será preciso ir além da representação política tradicional, dos sistemas verticais, das organizações pesadas e burocráticas, dos partidos centralizados. O caminho é uma democracia de massas e dos indivíduos, que complemente a democracia representativa, dando-lhe melhores condições para processar as demandas sociais, e não somente os temas da estabilidade e do crescimento.
Hoje a democracia convive com sociedades hiperfragmentadas e individualizadas, desprovidas dos grandes grupos e classes sociais que, no passado recente, davam coesão à vida coletiva e ajudavam a organizar as demandas sociais. A proliferação de novos atores de direitos, os nichos identitários que se multiplicam sem cessar, a persistência da miséria, os carecimentos brutais, o desemprego estrutural, as ondas migratórias – tudo impacta os sistemas representativos, prejudicando seu desempenho.
A democracia não é uma panaceia nem uma terra sem lei, livre de falhas, erros e restrições. É um corpo em movimento, que dialoga com sociedades dinâmicas e mutáveis. Continua a ser a força que move o mundo em direção a um futuro melhor: um valor universal, que ora brilha com fulgor, ora parece esmaecido, mas que se repõe continuamente. Sua sorte, porém, está atrelada à capacidade de “domesticar” e civilizar o capitalismo, reforçando os parâmetros com que chegou aos dias atuais: liberdade, tolerância, fraternidade, igualdade, reconhecimento e dignidade.
A revitalização da democracia não cairá do céu nem virá pela repetição de dogmas ou por simples proclamações de vontade. Necessitará de sujeitos que ajudem a reformular o arranjo sistêmico e a potencializar a presença cidadã nos espaços públicos. Mas tudo será mais difícil se não houver uma recuperação das posições democráticas em termos políticos e culturais, não só em termos de poder e governo.
Os valores democráticos não foram dissolvidos pela barafunda de disputas ideológicas. Continuam ativos e operantes. Se levados à prática e se institucionalizarem, serão decisivos para soltar a democracia das limitações neoliberais, por um lado, e da oligarquização, da corrupção e da degradação ética, por outro.
Muito depende, portanto, da capacidade que tiverem os democratas de defender e aprofundar a própria democracia.
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PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP
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