O samba vencedor de 1991 do Bloco de Segunda foi um dos melhores do Carnaval carioca daquele ano, empolgando a multidão que desfilou pelas ruas do Humaitá já na concentração dos foliões, a área de descarga dos caminhões que abastecem a Cobal de Botafogo. Era o início da chamada Era Collor de Mello, o breve, que havia sido eleito com a discurso de por o Brasil em sintonia com o mundo moderno. Progresso, civilização, o jovem presidente propunha ao Brasil retomar o rumo do futuro, a partir da abertura comercial e da ultrapassagem do velho modelo de substituição das importações pela integração competitiva à economia mundial.
Estado mínimo, privatizações, modelo de acumulação flexível, sua agenda neoliberal era polêmica, mas fracassou. O que não faltava para os blocos de rua, que ressurgiam com força por todo o Rio de Janeiro, era assunto para sambas e marchinhas. Por exemplo, o confisco da poupança, que fez naufragar o plano econômico da então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, e do presidente do Banco Central (BC), Ibrahim Eris.
1991 foi também o ano da Guerra do Golfo (1991), ou seja, da invasão do Kuwait pelas tropas do Iraque, por ordem do ditador Saddam Hussein, cujo Exército era equipado com carros de combate brasileiros e mísseis Scud, de origem soviética. “Parece inusitado, mas o enredo estava dado. O samba ganhador consegue dar conta desse conjunto de informações fragmentadas que a mídia reproduzia e o faz com absoluta naturalidade”, descreve o argentino Jorge Sapia, em parceria com Andréa Estevão, em “Narradores e narrativas do carnaval de rua carioca”, ele próprio um folião de raça:
“A um passo da Modernidade / Ultrapassado nós tratamos com desdém / Coisa mais antiga que Riad / Só o turco Eris, o Sírio de Belém / O bloco de Segunda qualidade / Canta o futuro, acredita e diz amém / Se os jovens aliados só dão uma / Sem muito esforço Saddam dá mais de cem / O Scud quem minha senhora / Esses Scuds são de quem? / Dos patriotas que alumiam as noites de Jerusalém” — a multidão cantava, com malícia.
É carnaval
A Guerra do Golfo Pérsico, entre 1990 e 1991, foi um dos maiores conflitos armados da região e a maior investida aérea até então. O Conselho de Segurança da ONU pediu que o Iraque se retirasse do Kuwait e impôs uma proibição mundial ao comércio com o Iraque. Saddam subestimou a comunidade internacional e anexou formalmente o Kuwait. Como a pressão internacional não foi o suficiente, uma coalizão liderada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, sob comando do então George W. Bush (o “pai”) e a premiê britânica Margareth Thatcher, realizou cinco semanas de bombardeios sobre as tropas iraquianas, para apenas 100 horas de ataques terrestres. Saddam Hussein aceitou um cessar-fogo com o rabo entre as pernas.
Entretanto, o ajuste de contas final viria em 2003, quando os Estados Unidos e o Reino Unido iniciaram a Guerra do Iraque com um objetivo de destruir “armas de destruição em massa” que nunca existiram. O presidente George Bush, o filho, vingou o pai: Saddam foi preso, julgado, condenado por genocídio e executado. O Iraque, porém, virou um caos. Em 2011, quando as tropas americanas se retiraram, jihadistas criaram um Califado, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que ocupou boa parte do território do Iraque e da Síria. Somente foram derrotados em 2017, mas o Iraque se tornou um país falido e instável. O ditador sírio Bashar Hafez al-Assad só permaneceu no poder graças ao apoio da Rússia. Essa guerra causou grande ressentimento contra o Ocidente em boa parte das populações árabe e muçulmana.
No sábado, numa sátira à crise na Ucrânia e à proibição da prefeitura a desfiles dos blocos de carnaval de rua por conta da pandemia, um bloco rebelde se organizou pelas redes sociais e desfilou pelas ruas da região portuária do Rio de Janeiro: “Não adianta ficar Putin”, era seu nome. A folia começou às 8h e foi encerrada às 11h no Boulevard Olímpico. Flyers nos grupos de WhatsApp mobilizaram para o cortejo clandestino, que reuniu cerca de 100 pessoas, todas sem máscaras. O grupo tático da Guarda Municipal dispersou os foliões sem violência, por causa da pandemia. Zero solidariedade ao presidente da Rússia, Vladimir Putin.
Com toda certeza, se não houvesse a proibição do carnaval, Putin e o presidente Jair Bolsonaro estariam passando os piores momentos na boca do povo, nos blocos de carnaval. A pandemia desmobilizou os foliões. Política e moralmente, diante da crescente reação internacional à invasão da Ucrânia, o presidente russo já está derrotado; pode até ocupar Kiev, a capital ucraniana e berço histórico da própria Rússia, porém, cedo ou tarde, terá que bater em retirada, como Napoleão Bonaparte, depois de ocupar Moscou em 1812. Pior, o mundo nunca mais será o mesmo, a invasão está legitimando a expansão da Otan, revigorou o mito fundador da Ucrânia como nação e os ressentimentos contra a Rússia.
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