A desistência de Doria enterra a terceira via, beneficiando ainda mais Lula e Bolsonaro
A mais sólida chance de o País ter uma alternativa à polarização política se dissipou na última semana com a desistência de João Doria. O ex-governador paulista abriu mão da disputa à Presidência após ter seu caminho bloqueado pela direção tucana, que ameaçava cortar as verbas para seu escritório político. Poucos dias antes, a Executiva já havia selado o destino da legenda ao optar pelo apoio à chapa conjunta com MDB e Cidadania, tendo a senadora Simone Tebet como cabeça de chapa. Doria, como previsto, declinou do posto de vice.
Foi um revés em uma carreira meteórica na política, que e o levou desde 2016 a se eleger a prefeito e governador e a vencer as três prévias que disputou no PSDB, inclusive para a Presidência. Essa ascensão se chocou com a cúpula partidária, que tentou minar sua candidatura desde o início e usou o pretexto da alta rejeição. A história desse surpreendente suicídio político com traições explícitas entrará para os anais da política brasileira, mas não é inédita. O MDB já é um agrupamento de líderes regionais desde os anos 1990, e o próprio DEM, que foi o sócio conservador do PSDB nos anos 1990, diluiu-se no União Brasil em uma associação com o PSL, partido do baixo clero que elegeu Bolsonaro em 2018. A contraposição do PSDB e do PT, que marcou a redemocratização até 2018, acabou. É o fim de uma era. O bolsonarismo ocupou o espaço da centro-direita e da extrema direita. Passa a dividir o palco nacional com o PT, que permanece com ambição hegemônica na esquerda. Os algozes do PSDB operaram para submeter a legenda a essa lógica, apesar do discurso em contrário.
As forças que se beneficiam da polarização também impediram que outros nomes se viabilizassem. Sergio Moro, que alcançou 15% nas pesquisas quando se lançou, deu um passo em falso ao se filiar ao União Brasil, que vetou suas pretensões. Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde que teve atuação destacada na pandemia, foi abatido pelo bolsonarismo e também pelo União, que deseja circunscrevê-lo ao Mato Grosso do Sul. O apresentador Luciano Hulk ensaiou se candidatar, mas optou pela carreira na TV. O PSD de Gilberto Kassab tentou emplacar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que achou mais seguro investir na atual cadeira abrigado pelo Centrão e numa aliança com o PT. Kassab tentou emplacar ainda o ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que preferiu ficar no PSDB. Leite tentou se viabilizar unindo-se àqueles que minaram a candidatura de Doria até desistir e se voltar ao próprio estado, onde deve concorrer ao governo novamente. Ele tem sido sondado para ser o vice de Tebet, mas resiste, pois sabe que pode enfrentar o mesmo destino do paulista: ser rifado pelos próprios aliados.
Esse é o maior desafio que Tebet terá daqui para a frente. Apesar de ter sido avalizada pela Executiva do partido no dia 24 (no mesmo dia recebeu o endosso formal do Cidadania), nada indica que terá o apoio de fato da legenda. Nos bastidores, emedebistas dizem que ela tem um mês para decolar. A percepção é de que a senadora conseguiu ampliar num primeiro momento o arco de alianças internas em torno de seu nome, mesmo no Norte-Nordeste. Emedebistas citam, por exemplo, que o clã Sarney, que vinha sendo cortejado por Lula e se voltou a favor dela. Outras lideranças dessas regiões prometeram marchar ao lado dela, como os senadores Marcelo Castro, do Piauí, e Jarbas Vasconcelos, de Pernambuco. Presidentes estaduais do MDB fizeram o mesmo no dia 24. Mas outros caciques já apoiam Lula abertamente, como Renan Calheiros e Eunício Oliveira. E há dificuldade em palanques regionais. No Distrito Federal, Ibaneis Rocha assegura que fará campanha para Tebet. Ele, no entanto, terá em sua chapa Flávia Arruda, ex-ministra de Bolsonaro, como candidata ao Senado. O quadro se repete em diversos estados.
Desde os anos 1990, o MDB não caminha unido. Costuma abandonar seus candidatos e tudo indica que pode repetir a tradição mesmo que Tebet seja ratificada na convenção partidária. A legenda não deve impor represálias àqueles que embarcarem em outras candidaturas. “A tradição é ser tolerante, dada a diversidade intrapartidária”, confirma um deputado, sob reserva. Em outras siglas, como no União Brasil, a aposta é de que, apesar da fotografia positiva nos últimos dias, se Simone não deslanchar até o final de julho a candidatura não será homologada.
Depois da reviravolta dos últimos dias, empresários e personalidades assinaram um manifesto pró-Simone Tebet, como Candido Bracher (ex-presidente do Itaú Unibanco), Pedro Wongtschowski (Grupo Ultra) e Wolff Klabin (presidente do conselho da Klabin). Economistas de passado tucano (como Armínio Fraga, Andrea Calabi e Eliana Cardoso) também subscreveram, assim como Elena Landau (organizadora do programa econômico de Tebet) e Affonso Celso Pastore (colaborador da pré-campanha de Moro). “Minha maior missão é pacificar o Brasil. Vamos falar mais do Brasil e menos de Lula e Bolsonaro”, disse a candidata. Mas é muito difícil que a senadora sul-mato-grossense consiga o consenso no mercado e na sociedade – e os líderes partidários sabem disso.
Adesão a Bolsonaro
Doria era o nome mais forte para ocupar o espaço de centro. O presidente do PSDB, Bruno Araújo, que liderou o desmanche da candidatura tucana, passou a defender uma aglutinação de outros candidatos pela terceira via, citando Luciano Bivar (União) e Ciro Gomes (PDT). As chances são praticamente nulas. Bivar foi o primeiro a anunciar o fracasso da terceira via e deve lançar sua candidatura na terça-feira, 31. Ciro Gomes, em sua quarta disputa presidencial, novamente concorre com o PT no campo esquerdista. Por isso, tem reforçado os ataques a Lula. Mas não deve com isso roubar os votos do petista nem converter simpatizantes de Bolsonaro.
A fragilidade da terceira via ocorre, antes de mais nada, porque as cúpulas partidárias preferem aderir a Bolsonaro e Lula, um movimento catalisado pelo bilionário fundão eleitoral. A própria aposta em Tebet serve para o MDB reservar os recursos obrigatórios destinados às mulheres (30% do total), liberando o resto do dinheiro para os caciques. As movimentações de Bivar e Kassab, articuladores do Centro, nunca foram de fato no sentido de apontar um nome que superasse Bolsonaro e Lula. Ambos sempre miraram as candidaturas próprias como uma forma de liberar os diretórios para optarem por Bolsonaro ou Lula. Para isso, é necessário que o nome escolhido passe uma imagem positiva à legenda, sem ser realmente competitivo. Prova disso é que o PSD tende a apoiar Bolsonaro no primeiro turno em 12 estados, e Lula em outros 9. E Bivar deve ser escanteado pelo próprio vice do seu partido na Bahia, ACM Neto, que concorre ao governo estadual. É o risco que Simone Tebet corre. Transformar-se em uma candidata decorativa.
Com a virtual implosão do PSDB, o País deixa de ter uma alternativa de fato. A reunião da Executiva que deve chancelar Simone Tebet foi adiada para a próxima sexta-feira, 2. E a escolha do senador Tasso Jereissati ou de Leite para a vice de Tebet traz mais combustível para a desagregação. O partido já avisou que não pretende financiar a candidatura da emedebista. Depois da investida contra a candidatura Doria, agora é o acordo com o MDB e Cidadania que é alvo daqueles que pretendem atrelar os tucanos ao bolsonarismo. Aécio Neves é o maior nome dessa ala. Para Marcus Pestana, pré-candidato tucano ao governo de Minas, a possibilidade de aliança com o MDB “é um caminho que vai levar o PSDB à morte. Vai caminhar para ser um partido pequeno qualquer, sem personalidade”.
Seja qual for o desfecho, o PSDB deve na prática enfrentar o encolhimento ainda maior da sua bancada e ter uma trajetória apenas coadjuvante no cenário nacional. E uma fusão com o MDB, de onde saiu para fugir do fisiologismo, não está descartada. A investida contra Doria pode acabar levando de roldão a última fortaleza tucana, o estado de São Paulo. O sucessor de Doria, Rodrigo Garcia, que tenta fortalecer uma imagem própria para disputar a reeleição, pode dar um tiro no pé ao se afastar do seu antecessor, como ensaia fazer. Não é possível usar as vitrines da gestão Doria sem citar o arquiteto de benefícios como a Coronavac. A convicção interna é de que, se não tiver um projeto nacional e perder São Paulo e Rio Grande do Sul, o partido terá acabado. Ao ceder na prática à polarização em nível nacional, o PSDB ainda se arrisca a reproduzi-la no âmbito regional, já que Rodrigo Garcia aparece atrás de Fernando Haddad (PT) e o ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos) nas pesquisas. Na prática, o PSDB foi consumido pelo bolsonarismo.
É uma volta ao passado. Enquanto o PT tenta reescrever a história criminalizado o próprio juiz da Lava Jato, setores militares se alinham a Bolsonaro e projetam se manter o poder até 2035, conforme o “Projeto de Nação, O Brasil em 2035”, apoiado pelos Institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista e coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva,ex-presidente da ONG do coronel Brilhante Ustra. O centro sofre uma diáspora, e Lula e Bolsonaro triunfam.
* Colaboraram Ana Viriato e Denise Mirás
A dupla de uma chapa em formação
A guinada no PSDB pode não ter sido o capítulo final das negociações por um nome de consenso da terceira via. Quando decidiu abrir mão de sua candidatura, João Doria negociava com Michel Temer uma chapa que uniria o ex-presidente e o ex-governador paulista. Era o único arranjo em que Doria aceitaria o lugar de vice. O desenlace da última semana não enterrou essa possibilidade. Há nomes no entorno do ex-governador e personalidades da sociedade civil que veem a possibilidade de Temer despontar como um nome de consenso, tanto pela estatura nacional como pela habilidade de articulação, já que tem influência no MDB e nos partidos do Centrão. Além de ter presidido o País, Temer foi presidente da Câmara por três legislaturas.
Depois de deixar a Presidência em 2019, Temer ganhou protagonismo ao ajudar Jair Bolsonaro em sua “Carta à Nação”, quando o mandatário recuou das ameaças ao STF feitas no Sete de Setembro. Temer redigiu o documento, após ser convocado a Brasília. A peça trouxe tranquilidade em um momento de grande instabilidade institucional. Salvou Bolsonaro de uma tensão que ameaçava invadir o Congresso e levar a um possível processo de impeachment. Apesar de positivo, o desfecho também acendeu o alerta a Bolsonaro.
Em mensagem divulgada a aliados na última terça-feira em um grupo de WhatsApp, o presidente declarou que “Michel Temer será a terceira via, bem como teremos Alexandre de Moraes presidindo o TSE por ocasião das eleições. É uma luta do bem contra o mal”. Mensagens recentes de Temer no Twitter defendendo a “pacificação do País” já tinham alarmado os aliados do presidente. Acharam que ele se apresentava como alternativa contra a polarização. No mesmo dia, no entanto, Temer desmentiu. “Não sou o candidato da terceira via. Sou e sempre serei candidato a juntar os contrários em busca do bem comum”, divulgou. Aliados consideram que ele não quer se apresentar ao jogo, mas se posiciona à espera da evolução dos acontecimentos.
A negativa pode ser sincera, mas também demonstra a habilidade de Temer em escapar de armadilhas no jogo partidário. No imbróglio tucano, ele disse que Doria “realizou um extraordinário governo e revela, agora, desprendimento, praticando um gesto grandioso”. Também exaltou Simone Tebet e refutou que estivesse pleiteando o cargo. “Depois de tudo o que eu já fiz, posso dizer que isso não está no meu horizonte neste momento.”
Enquanto acompanhava sua candidatura ser minada no próprio partido, Doria via em Temer uma alternativa de fato. Os dois conversavam com frequência. Um dia depois de anunciar a renúncia, o ex-governador encontrou o sucessor Rodrigo Garcia em um evento do Lide, quando voltou a pregar o diálogo e a falar em conciliação. Seu coordenador de campanha, Marco Vinholi, diz que o destino de Doria é voltar para a iniciativa privada, e “o projeto agora é 2026”. Outros aliados consideram que ele fez tudo certo, ao realizar uma boa gestão e vencer as prévias, mas não soube avaliar o timing de uma eventual mudança de planos. Em sua renúncia, Doria concluiu dizendo que “nunca abandonarei o Brasil”. Para vários políticos, seu papel nessas eleições não está encerrado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário