Os homens se unem por uma proteção comum — diz Hobbes no Leviatã — “por medo de morte e feridas”. É para isso que vivemos num Estado e fazemos um pacto social. Queremos acreditar que ele vale e podemos viver sem medo, mas infelizmente sabemos que a insegurança pública atinge a todos em nosso País. É o que repete sempre o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Os números deste ano confirmam a lenta diminuição dos crimes de morte violenta desde a implantação do Estatuto do Desarmamento. Entretanto eles ainda são escandalosos, pois estamos na faixa de 48 mil mortes anuais, das quais mais de seis mil por policiais. Não é o caso de somar a elas, mas certamente grande parte dos 34 mil desaparecidos não localizados é de mortos que não entraram nos registros policiais; e houve mais de 30 mil tentativas de homicídio e 9,5 mil mortes não esclarecidas, como o “encontro de cadáveres”. Um entre cinco assassinatos no mundo é no Brasil, e aí houve crescimento, pois em 2019 éramos responsáveis por 15% deles — lembrando que nossa população é de 2,7% da mundial.
Não se pode deixar de registrar que 80% das vítimas eram negros e jovens. Até entre os policiais mortos — 190 — 68% eram negros. Já a polícia, quando mata, tem faixa etária precisa: 44% das vítimas tinham entre 18 e 24 anos, 84% negros. As armas de fogo foram usadas em 76% do total dos casos.
Há grande aumento do número de armas de fogo, que nos dá medo de que haja em breve uma reversão da discreta redução dos números totais. Como está amplamente demonstrado, a defesa armada feita pela própria pessoa é malsucedida na imensa maioria dos casos. Alguns dados impressionantes: nos últimos cinco anos é dez vezes maior o número de “CACs, caçadores, atiradores e colecionadores”, que têm quase um milhão de armas. Isso quando é proibido caçar! O “atirador esportivo”, título que dá licença para ter até 60 armas e 180 mil munições, tem mais armas — 765 mil — que as polícias militares — 650 mil. As armas pessoais de policiais e militares são 825 mil. Tudo bem controlado pelos 72 psicólogos que podem certificar a capacidade de se usar arma de fogo. Ah!, foram vendidas em 2021 cerca de 400 milhões de munições!
Tenho que registrar também os graves problemas em relação às mulheres e aos menores. O número de denúncias de violência doméstica feitas pelo telefone de assistência foi de mais de 600 mil. E um dado ainda mais terrível: houve o registro de 45 mil estupros de vulneráveis, 85% com meninas; e 15 mil outros estupros. Entre todos os estupros, 32% acontecem com crianças de 10 a 13 anos. Oitenta por cento deles são cometidos por familiar ou conhecido. Os especialistas acreditam que, no entanto, os casos beiram os 300 mil, a grande maioria deles guardados pelas vítimas em traumático silêncio.
A violência tem vítimas diretas e vítimas indiretas, mães, pais, irmãs, irmãos, filhas, filhos e todos os que compõem o seu círculo familiar e social. E aí está outra grande falha de nossa sociedade, que, além de não impedir toda essa barbaridade, não estende uma mão protetora para tentar diminuir o terrível choque de quem perde ou vê sofrer um parente próximo. Vai fazer vinte anos que apresentei um projeto para regular os direitos das vítimas estabelecido no artigo 245 da Constituição, que passa em brancas — sangrentas — nuvens. Está há 18 anos parado na Câmara dos Deputados. Minha tribuna, hoje, é apenas essa coluna. Mas, aqui, nela, deixo a minha preocupação com este estado de insegurança em que vivemos e morremos.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileia de Letras
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