domingo, 3 de julho de 2022

REPÚBLICA AVACALHADA

Editorial O Estado de S.Paulo

Ao tomar posse, o presidente Jair Bolsonaro prometeu respeitar a Constituição de 1988. Mas o que ele tem feito, ao longo desses três anos e meio, é o exato oposto do compromisso assumido no dia 1.º de janeiro de 2019, numa avacalhação sem precedentes da República. 

É um quadro gravíssimo, que se deteriora progressivamente, sem nenhum pudor, sem nenhum limite, sem nenhum respeito às regras do exercício de poder num Estado Democrático de Direito. Para piorar, a resistência a Jair Bolsonaro mostra-se muito aquém da gravidade e da dimensão dos ataques. Tal é a frequência de absurdos, que todos – órgãos de controle, partidos políticos e sociedade civil organizada, incluindo a própria opinião pública – parecem um tanto anestesiados com a esculhambação promovida cotidianamente pelo bolsonarismo. É preciso defender, com brios renovados, a integridade da República.

Elencar os ataques do governo Bolsonaro à legalidade e ao espírito republicano é tarefa inglória. Toda semana há uma nova agressão mais absurda, mais escrachada, mais indecorosa. Agora, o País tem assistido ao desenrolar da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, que, a rigor, merece ser chamada de PEC da Reeleição de Bolsonaro. O governo quer mexer na Constituição para poder dar dinheiro em ano eleitoral aos caminhoneiros. E ainda tenta impor a manobra atropelando todos os ritos legislativos, de forma a impedir o debate e o amadurecimento do tema.

A desfaçatez é de tal ordem que a PEC 1/2022 propõe incluir, como dispositivo constitucional, o reconhecimento de “estado de emergência” no País até o fim do ano. A única emergência que motiva essa PEC é a situação de Jair Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto. E os bolsonaristas ainda dizem que admiram os Estados Unidos com sua Constituição enxuta e pouco emendada. Na célebre definição de La Rochefoucauld, a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.

Entre os ataques do governo de Jair Bolsonaro contra a República, observam-se violações da legislação eleitoral e ambiental, violências contra o princípio federativo, tentativas de subjugar os órgãos de controle, manobras para dificultar a transparência dos atos da administração federal, ações para intimidar e censurar opositores políticos, manipulação de programas sociais para fins partidários, agressões contra o Judiciário e sua independência, campanha difamatória contra as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral, uso da máquina pública – em especial, da Receita Federal e Polícia Federal – para atender a interesses familiares, criação e difusão de desinformação, tentativas de interferência nas polícias estaduais, deturpação do sistema tributário para fins eleitorais, opacidade da gestão orçamentária e desprezo pelas regras de responsabilidade fiscal e pela segurança jurídica, com a PEC dos Precatórios. Isso sem falar das suspeitas de corrupção envolvendo os Ministérios da Educação e da Saúde, com denúncias de superfaturamento desde compra de vacina contra a covid até licitação de ônibus rurais escolares, além de toda atuação negacionista, desorientadora e desumana de Jair Bolsonaro na pandemia.

É a República ultrajada, como se não houvesse Constituição ou lei, como se o exercício do poder fosse mero arbítrio, como se tudo, rigorosamente tudo, estivesse à disposição dos interesses particulares do inquilino do Palácio do Planalto. Simplesmente, não é assim que funciona no Estado Democrático de Direito. Há separação de Poderes e delimitação de competências. Há normas que regem o funcionamento de cada cargo público.

É uma tremenda obviedade, mas com Jair Bolsonaro é necessário que se diga. A posse na Presidência da República não dá autorização para destruir o Estado brasileiro. Não é fácil acompanhar o ritmo de ataques contra a Constituição e o bom funcionamento da máquina pública operado pelo governo federal, mas é preciso resistir. Não basta contar os dias até 1.º de janeiro de 2023. Todos – órgãos de controle, partidos políticos e sociedade civil organizada – precisam atuar e frear o retrocesso. Há um País a ser preservado.

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