sábado, 17 de setembro de 2022

AMEAÇA FARDADA

Ana Viriato, Marcos Strecker, ISTOÉ

Militares fazem jogo duplo e alimentam teses conspiratórias de Bolsonaro

Militares fazem jogo duplo há um ano e alimentam teses conspiratórias de Jair Bolsonaro contra a votação eletrônica. Em nome da pacificação, o TSE cedeu e permitiu acesso privilegiado às Forças Armadas na avaliação das urnas, como queria o presidente. Mas o Judiciário precisa se manter irredutível na defesa da democracia, impedindo que as Forças Armadas se coloquem como árbitros do processo eleitoral

Aduas semanas da eleição, o presidente conseguiu novamente trazer as urnas eletrônicas para o centro do debate eleitoral. Como queria, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atendeu a pleitos dos militares para averiguar a “integridade” das urnas fora do prazo de modificações e contra a orientação dos técnicos. Isso pode não apenas criar uma tensão adicional a um pleito que já está com níveis de polarização e violência inéditos, mas também abastecer teorias conspiratórias que já são difundidas pelos bolsonaristas.

A pressão do presidente, por meio do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, surtiu efeito mesmo após a Justiça Eleitoral ter se mostrado firme. Em meio à cruzada de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas, todos os três ministros que ascenderam à presidência do TSE ao longo do último ano buscaram formas de reforçar a sensação de segurança em torno do sistema eletrônico de votação. O empenho jamais teve o objetivo, por si só, de restaurar a paz com o Palácio do Planalto, mas de evitar que os argumentos furados do capitão grudassem no imaginário da população e de criar uma vacina contra as declarações de fraude que virão à baila, caso ele seja derrotado pelo voto popular. Posicionada no contra-ataque, a corte abriu, de boa-fé, as portas para as Forças Armadas acompanharem de perto o desenrolar de todas as etapas das eleições em nome da transparência. O tempo, porém, demonstrou que a estratégia teve efeito contrário. Empoderados, os militares próximos a Bolsonaro têm usado o espaço conquistado para alimentar a narrativa golpista do presidente. Os fardados já semearam dúvidas infundadas sobre a confiabilidade do sistema eleitoral, atacaram ministros e, agora, no auge do acinte, prometem uma “apuração paralela” do resultado das urnas.

Sob a batuta de Nogueira, serão enviados militares a seções eleitorais para averiguar de 385 a 400 boletins de urna — comprovantes que mostram os totais de comparecimento de eleitores e de votos por candidato. Os fardados deverão fotografar os documentos e encaminhá-los ao Centro de Defesa Cibernética do Exército, onde será conferido se os números dos boletins são os mesmos divulgados pelo TSE no portal que detalha a totalização de votos. Os dados são públicos e, portanto, qualquer um pode fazer o mesmo. Mas, quando as Forças Armadas se engajam em um processo como esse, acabam por dar à apuração paralela ares de uma contabilização oficial, o que não lhes cabe constitucionalmente. Além disso, a ação dos militares tem maior potencial de gerar dúvidas do que de assegurar a confiabilidade do resultado.

“Se eles se atentarem única e somente à conferência, não haverá distorções. A grande questão é que o risco não está na quantidade de boletins analisados, mas na maneira pela qual serão selecionados. O mais provável é que a proporção ali dentro seja diferente da nacional, apontada nas 577 mil urnas, porque a escolha dos equipamentos não vai respeitar os pesos e as proporções estatísticas de religião, classe social, renda familiar e educação. No fundo, uma urna representa, com fidelidade, apenas a situação de um bairro, não do País”, explica Fábio Prates Machado, chefe do Departamento de Estatística da Universidade de São Paulo. A apuração paralela, portanto, seria um prato cheio para teses de fraude, que já vêm sendo alimentadas ao lado do questionamento sobre as pesquisas eleitorais.

‘Grande risco’

Realizar modificações no processo eleitoral neste momento é um “grande risco”, declarou Giuseppe Janino, que foi por 15 anos secretário de TI do TSE e é conhecido como “pai das urnas eletrônicas”. Para ele, uma mudança decidida a 20 dias do pleito é temerária porque não haveria tempo hábil para “verificação, exercitação de procedimentos, de recursos de software e treinamento de pessoas”. É preciso levar em conta, ainda, a probabilidade de divergências entre os boletins de urna e os dados da contagem do TSE por erro humano. Isso porque, pela ideia inicial, os fardados enviarão imagens do QR Code dos boletins de urna para o Exército. Contudo, se o reconhecimento do código falhar, eles serão obrigados a recorrer a outros métodos e os números poderão, por exemplo, passar por uma transcrição da fotografia para um sistema. Como a contabilização da Força não ocorrerá de forma automática, em uma plataforma já consolidada como a do tribunal e deve ser divulgada ainda em 2 de outubro, são grandes as margens para problemas. Na Corte, suspeita-se que qualquer distorção identificada, por mínima que seja, não passaria por confirmação antes de ser sacada por Bolsonaro para levantar questionamentos de forma leviana a respeito da confiabilidade das urnas e apontar uma suposta parcialidade do TSE.

“A implantação do projeto-piloto está dentro do espírito que a Justiça Eleitoral sempre teve de aprimorar a fiscalização” Alexandre de Moraes, presidente do TSE

O plano dos militares foi noticiado na última terça-feira em primeira mão pelo jornal Folha de S.Paulo, que publicou, ainda, que os fardados teriam acesso a dados brutos da votação e que a apuração paralela seria fruto de um acordo fechado em 31 de agosto com o TSE. As informações provocaram a irritação do presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, que chegou a classificá-las como “fake news” a interlocutores e ordenou uma reação imediata. Um rascunho de resposta chegou a ser redigido pelos funcionários da Corte, mas foi do gabinete do ministro que saíram os trechos mais ácidos da nota oficial, como o que aponta que “qualquer interessado poderá ir às seções eleitorais e somar livremente os BUs [boletins de urnas] de uma urna específica, de dez, de trezentas ou de todas as urnas”. Contrariado, Moraes ainda cancelou uma reunião prevista para ocorrer no dia seguinte com o ministro da Defesa.

O presidente do TSE considera que a implementação do teste-piloto coloca fim a um longo processo de embates com as Forças Armadas. É preciso averiguar se essa tese se confirmará, o que é desmentido até hoje pelo histórico do mandatário. No tête-à-tête do último dia 31, estavam presentes, além de Moraes, o secretário-geral do TSE, José Levi; o secretário de Tecnologia da Informação, Júlio Valente, Paulo Sérgio Nogueira e um braço-direito do general, o coronel Marcelo Nogueira de Souza, que, em julho, declarou durante uma audiência no Senado que não havia informações que comprovassem a segurança das urnas contra uma “ameaça interna”. Nomes presentes na reunião asseguram que, na ocasião, em nenhum momento o tribunal recebeu o pedido ou assentiu à disponibilização de dados privilegiados aos militares, sobretudo porque as informações brutas, por não passarem pelo devido filtro, levam em conta votos em políticos que tiveram as candidaturas impugnadas, que desistiram de concorrer no meio do caminho ou que estão mortos, por exemplo.

A disponibilização do material, portanto, poderia resultar numa confusão no momento de contagem dos sufrágios pelos fardados. No tribunal, sob reserva, diz-se que o assunto já tinha sido debatido e descartado durante a gestão de Edson Fachin. A divulgação de uma “contagem paralela” neste momento é creditada a militares interessados em tumultuar o processo.

O encontro do dia 31 serviu, na verdade, para escancarar as portas para que TSE atendesse a outro pedido da Defesa: o teste de integridade das urnas com biometria. O projeto-piloto acabou levado por Moraes ao plenário na quarta-feira, mesmo após o mal-estar com a Defesa, e recebeu a chancela de todos os ministros. Na votação relâmpago, o presidente do tribunal mandou um recado ao sublinhar que a proposta será implementada “dentro do espírito que a Justiça Eleitoral sempre teve de aprimorar a fiscalização”. O projeto, no entanto, nem de longe desperta o entusiasmo da área técnica do tribunal, que o classifica como “político”. Até as eleições de 2020, o teste de integridade era realizado nos TREs no mesmo dia do pleito, com o acompanhamento de uma empresa de auditoria externa, em urnas sorteadas no dia anterior. Das 8h às 17h, servidores da Justiça digitavam nas urnas, um a um, números anotados em cédulas previamente preenchidas. Paralelamente, os votos em papel também eram registrados em um computador. Ao final, havia uma comparação.

Neste ano, a metodologia será diferente em 56 das 640 urnas destacadas para auditoria pelo País. O processo com a biometria deve ocorrer em 18 estados e no Distrito Federal. Depois de votar, alguns eleitores serão convidados a participar do teste na própria seção eleitoral, e não em um TRE. Se aceitarem, cederão a digital somente para destravar o equipamento reservado para teste. Na sequência, poderão deixar o local. O processo será filmado, como ocorria antigamente. A mudança não foi vista com bons olhos pela área técnica, sobretudo, porque haverá pouco tempo para viabilizar o novo teste. Uma das preocupações é convencer os eleitores, num ambiente polarizado e contaminado pela violência política, a participar do teste inédito, o que tende até mesmo a gerar algum tumulto nos locais de votação. Servidores comemoraram, porém, o fato de os eleitores não terem de participar de todo o processo, como desejavam os militares. Havia receio de que o sigilo do voto acabasse fragilizado, já que eram grandes as chances de, diante das câmeras, os cidadãos repetirem o voto dado no seu candidato.

O projeto-piloto faz parte de uma extensa lista de concessões feitas pelo TSE aos fardados. A primeira ocorreu em setembro do ano passado, quando o ministro Luís Roberto Barroso criou a Comissão de Transparência das Eleições e incluiu as Forças Armadas. No mesmo ano, a Defesa demonstrou que o gesto havia sido um tiro no pé. Indicado ao colegiado por Walter Braga Netto, o general Heber Garcia Portella elencou 80 questionamentos e, depois, fez 15 propostas de “aperfeiçoamento”. Sucessor de Barroso, Fachin analisou as sugestões e esclareceu que, do total, 10 foram acolhidas — sob o comando dele, o tribunal chegou até mesmo a ampliar de 100 para 640 o número de urnas submetidas a testes de integridade. O ministro, no entanto, fechou portas para o Exército depois de perceber que o assento da Força estava sendo usado para desacreditar o tribunal. Fachin ficou enfurecido, principalmente, após, apesar de todos os gestos, Paulo Sérgio Nogueira declarar que as Forças Armadas não se sentiam “devidamente prestigiadas”.

No TSE, a avaliação de ministros é que, como Barroso e Fachin, Moraes acabou envolvido no jogo duplo das Forças Armadas. Em menos de um mês, ele restabeleceu o diálogo pausado por Fachin com a Defesa. Recebeu Paulo Sérgio Nogueira duas vezes e, com o teste de integridade por biometria, deu um trunfo aos militares, que nunca agiram no verdadeiro propósito de ampliar a segurança, mas para satisfazer aos planos do presidente. “A apuração paralela pelos militares vai nos transformando gradualmente naquilo que o preconceito internacional chama de República de bananas”, criticou, com razão, Ciro Gomes. “Permitir que militares interfiram nesse tema equivale a fraquejar, ceder. O que eles querem é criar o mínimo pretexto para perpetrar o golpe. Olho vivo neles!”, tuitou o ex-presidente do STF Joaquim Barbosa.

Risco de sublevação

Ao questionar a confiabilidade do processo eleitoral, Bolsonaro apenas busca uma narrativa para questionar o resultado das urnas. Ele já havia sugerido que os militares deveriam fazer sua própria contagem de votos e não esperar o resultado proclamado “por meia dúzia de técnicos” em uma “sala secreta”. A tese estapafúrdia foi divulgada nas redes sociais por seus apoiadores. O mandatário não se preocupa em ter razão ou mesmo argumentos fortes. Basta instilar a dúvida e insistir em uma mentira até a exaustão, que radicais que o apoiam transformarão em “verdade”. É assim que Donald Trump, o grande modelo para o brasileiro, agiu nos EUA. O americano até agora não reconheceu a derrota em 2020 e incitou a invasão do Capitólio, que deixou cinco mortos. No Brasil, um dos temores é uma sublevação após a divulgação do resultado. Por isso, o pleito está cercado de cuidados excepcionais. O número de missões estrangeiras que vão acompanhar o processo será o maior da história: estão previstas sete delegações. E, por causa da tensão, diversas entidades já denunciaram os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral à ONU.

Bolsonaro conta com os militares para seu projeto de poder. Além de preencher a administração federal com seis mil fardados, estimulou oficiais a descumprirem o estatuto militar. Na própria Comissão de Transparência do TSE, o chefe do Comando de Defesa Cibernética do Exército, Ricardo Sant’Ana, foi flagrado nas redes sociais divulgando mensagens contra o TSE e as urnas. Afastado por Fachin, não foi punido pela corporação. Conceder às Forças Armadas privilégios especiais equivale a tornar os militares agentes políticos. É assim que funciona em ditaduras como Cuba e Venezuela.

“Sem Judiciário forte não há democracia. E de descumprimento de ordens judiciais sequer se cogite em um Estado democrático de Direito” Rosa Weber, presidente do STF

Com a última concessão, Moraes, que tem sido um defensor exemplar da democracia contra as investidas autocráticas, viu os fardados darem corpo a uma nova investida para dar fôlego à sanha golpista do mandatário. É necessário que ele continue agindo com firmeza. Nesse sentido, é positiva a manifestação da ministra Rosa Weber, ao assumir a presidência do STF, na última segunda-feira. Ela defendeu o Estado de Direito e criticou o discurso de ódio, fazendo uma advertência velada: “Que não se cogite descumprir ordem judicial”. Isso vale para toda a ordem institucional, começando pelo direito ao voto. Como manda a Constituição, o poder de fiscalização das eleições cabe ao TSE — e somente a ele.

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