Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Sempre que leio notícias sobre um assassinato com motivações políticas, fico pensando na cabeça do homicida. Não na cabeça dele antes e durante o infame ato. Depois, só depois.
Fechado na cela, longe da família, com a vida devidamente destruída, que pensará ele? "O político X mereceu esse meu grande sacrifício pela sua causa?" "Voltaria a fazer o mesmo, dessa vez com redobrado entusiasmo?"
É duvidoso: não estamos em Nuremberg, lidando com altas patentes do Terceiro Reich. Falamos de peixe miúdo, apanhado na rede do ódio que outros lançaram às águas pestilentas da política contemporânea. Todos podemos matar, é certo.
E alguns crimes, por mais condenáveis que sejam, podem ter as suas atenuantes. Como escreveu Albert Camus ao criticar a pena de morte, só a matança a sangue frio é uma degradação irredimível da nossa humanidade.
Mas matar em nome de um político oportunista que está pouco se lixando para o "grande sacrifício" que fazemos por ele é o grau zero na escala da inteligência humana. Podemos perder a vida por delicadeza, para citar o poeta; mas por estupidez?
Quando isso acontece, é impossível não lembrar Georgi Vladimov (1931-2003), esse esquecidíssimo autor ucraniano, nascido em Kharkiv, e que nunca teve o reconhecimento merecido. Nem em vida, nem depois da morte.
É pena. O seu "Faithful Ruslan", ou fiel Ruslan, que li na tradução inglesa, é o mais devastador retrato que conheço sobre o crente político quando é abandonado pelo seu dono.
Estamos na União Soviética de Nikita Kruschev. Os crimes do camarada Stálin já foram denunciados no famoso discurso que Kruschev proferiu no 20º congresso do Partido Comunista. O país conhece uns ares de abertura e 8 milhões de prisioneiros do gulag são libertados.
É nesse ponto que encontramos Ruslan, um cachorro feroz que ajuda a guardar um dos campos siberianos.
É através dos seus olhos crédulos, confusos, animalescos que toda a história é contada.
Certo dia, Ruslan acorda e encontra o campo silencioso e coberto de neve.
Estranha aquela paz. Não há gritos, não há choros, não há disparos. O que aconteceu?
Sai do barracão e vê os portões abertos. Pensa o óbvio, os prisioneiros fugiram. É hora de os perseguir e despedaçar, sem misericórdia.
As páginas em que Ruslan descreve esse processo —a adrenalina da caçada, o êxtase da violência— são de uma proeza literária que dificilmente se esquece.
Mas o seu dono, que é um dos guardas do campo, está estranhamente calmo, quase resignado, como se tudo aquilo fosse normal. Ruslan não entende a passividade.
Com a sua inteligência de cachorro fiel, ele é incapaz de perceber que o seu dono, em rigor, já não é dono de nada. E que ele, Ruslan, só por um vago sentimento de piedade não foi abatido no bosque, como aconteceu com todos os outros cachorros sem préstimo.
Escorraçado do campo prisional, Ruslan está condenado a uma vida de errância, como um vira-lata. O velho sistema que ele serviu já não existe.
Mas ele recusa-se a aceitar a mudança, ou seja, a sua própria irrelevância no novo esquema das coisas. Ele ainda tem uma missão: encontrar os fugitivos, servir o dono, servir a causa. É essa obstinação que ditará o seu funesto destino.
Ler "Faithful Ruslan" vacina qualquer um contra os entusiasmos políticos. Porque o romance, obviamente proibido na União Soviética, não se limita a criticar a falsa abertura de Kruschev.
Para aquilo que me interessa, o livro oferece uma lição gélida aos seguidores caninos de qualquer líder oportunista —um cachorro é útil enquanto é útil. Quando seus latidos e sua ferocidade não são mais necessários, o que resta é uma vida de vira-lata.
Depois das próximas eleições no Brasil, milhões de Ruslans vão acordar sem dono. E alguns, os mais lúcidos, vão entender finalmente que o dono já virou a página, procurando uma outra vida, longe daqueles que tão fielmente o serviram.
Esses serão os casos felizes. Os casos infelizes estarão na prisão, fazendo o luto pelas famílias que destroçaram, e perguntando às sombras da madrugada: "Valeu a pena?".
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