Sociedade civil se posiciona contra as insinuações golpistas e as novas ameaças de Bolsonaro
Por meio de documento forjado pelo PL, Bolsonaro volta a desacreditar o processo eleitoral. Busca com isso se antecipar a um revés no pleito e preparar a contestação do veredito popular, já que os resultados devem ser desfavoráveis a ele no dia 2. Mas a reação da sociedade em defesa da democracia, a firmeza do Judiciário e a transparência garantida pelo TSE diminuíram as chances de sublevação. O desfecho no domingo terá impacto internacional
O País está diante de uma das eleições mais importantes da história. A tensão gerada pelas ameaças golpistas do presidente, que continuam levando a episódios isolados de violência, ainda cercam o pleito. Mas a reação da sociedade foi fundamental para que ele ocorra dentro da normalidade e, principalmente, para que o resultado seja aceito sem contestações, seja no próprio dia 2, seja no segundo turno, dia 30. Os eventos organizados por juristas e representantes da sociedade na Faculdade de Direito no Largo São Francisco, no dia 13 de agosto, mostraram que a cúpula do Judiciário conta com amplo respaldo.
Inúmeras manifestações se seguiram desde então. A imprensa conseguiu combater as fake news, mostrando que a desinformação espalhada pelo presidente não tem respaldo suficiente para subverter o processo. Para reforçar essa disposição em defesa das instituições, o economista Roberto Giannetti da Fonseca organizou um novo manifesto em defesa do respeito ao resultado das urnas, o Pacto Nacional pelas Eleições Livres, Seguras e Democráticas (www.tinyurl.com/docdemocracia), que já tem as assinaturas de Lula, Simone Tebet, Geraldo Alckmin e Michel Temer, além de juristas, empresários e personalidades. “É necessário que a sociedade civil se coloque em apoio à normalidade democrática, em apoio às eleições“, diz Giannetti. Um dos idealizadores da carta, o general Santos Cruz diz que a população e as autoridades “não podem aceitar que o fanatismo leve à violência”.
“A atuação firme do TSE vai assegurar que nada tumultue a escolha livre e consciente dos cidadãos brasileiros. É o absoluto respeito ao processo democrático” Rosa Weber, presidente do STF
“Na democracia, as urnas são soberanas. Quem desacredita das decisões das urnas não deveria nem concorrer à eleição”, diz Geraldo Alckmin, candidato a vice na chapa de Lula. “O Brasil não aceitará que um aprendiz de ditador, como Bolsonaro, tente colocar em dúvida o resultado da eleição”, afirma Carlos Lupi, presidente do PDT. “A absurda hipótese de não acatamento ao resultado afronta o Estado Democrático de Direito, pois viola a lei e mutila a própria democracia. Todos devem respeitar o resultado das urnas”, enfatiza Luiz Flávio Borges D’Urso, ex-presidente da OAB-SP. “Bolsonaro ainda se nega a dizer se vai deixar o poder, caso seja derrotado. A manifestação é condizente com sua história de desprezo à democracria”, acrescenta Carlos Siqueira, presidente do PSB.
Não se descarta que haverá tentativas de subverter o processo, que deverá se encerrar no próprio domingo à noite e de forma até mais célere do que nos últimos pleitos, já que foram unificados os horários de votação em todo o País, independentemente de fuso horário. E uma das ameaças vem da própria legenda do mandatário. Um suspeito documento divulgado pelo PL apontou a quatro dias da abertura das urnas que “o quadro de atraso encontrado no TSE, referente à implantação de medidas de segurança da informação mínimas necessárias, gera vulnerabilidades relevantes. Isto poderá resultar em invasão interna ou externa nos sistemas eleitorais, com grave impacto nos resultados das eleições de outubro”. A empresa que produziu a peça, IVL (Instituto Voto Legal), recebeu R$ 225 mil da legenda e diz que foram identificadas “24 falhas”. O texto foi imediatamente espalhado pelos canais bolsonaristas. O TSE acusou o partido de Bolsonaro de fabricar um relatório “falso e mentiroso” para tumultuar a eleição. O ministro Alexandre de Moraes afirmou que idealizadores do documento serão investigados no inquérito das fake news do STF, incluindo o próprio PL, e serão alvos de processo no TSE. O torpedo mostra a atitude ambígua do presidente do partido de Bolsonaro, Valdemar de Costa Neto, que abastece a estratégia golpista do mandatário ao mesmo tempo em que tenta manter uma relação amistosa com a corte eleitoral.
Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral na última segunda-feira, em entrevista à TV Record, e a insinuar que pode não aceitar o veredito das urnas, dizendo que antes disso vai “esperar o desfecho da disputa” e averiguar se foram “eleições limpas”. Com isso, estimulou ainda mais iniciativas de radicais. Apesar de todo o cuidado da Justiça Eleitoral, e de uma relativa colaboração das empresas de redes sociais, voltaram a correr pela internet fake news e mensagens ameaçando a votação. “Vai dar Bolsonaro no primeiro turno! Senão, vamos à rua para protestar! Vamos invadir o Congresso e o STF! Presidente Bolsonaro conta com todos nós!!”, dizia um texto apócrifo disparado 324 mil vezes na noite do dia 23 por meio de um número de telefone antes usado pelo Detran do Paraná. O governo local diz que está investigando.
É esse tipo de discurso que pode ser sacado pelos bolsonaristas após a totalização dos votos para tentar questionar a legitimidade da eleição. Foi isso o que o presidente fez no dia 18 de julho para o corpo diplomático em Brasília, ainda que, na posse de Alexandre de Moraes na presidência do TSE, poucos dias depois, o número de embaixadores presentes tenha sido maior, mostrando de forma contundente que a iniciativa de desacreditar as eleições não terá eco no exterior. As investidas do presidente levaram a que o número de delegações estrangeiras seja recorde para fiscalizar o pleito. Haverá pelo menos 160 observadores internacionais – em 2018, foram 50. Uma das primeiras delegações a chegar foi a da Organização dos Estados Americanos (OEA), chefiada pelo ex-chanceler do Paraguai Rubén Lezcano. Ele foi recebido no Palácio do Planalto e, depois, no TSE, pelo ministro Alexandre de Moraes. Mostrando o incômodo com o holofote internacional, Bolsonaro chegou a ironizar o encontro antes de falar com o diplomata: “Ele vem observar o quê?” Além da OEA, outras sete entidades internacionais enviaram observadores. Diversas entidades, como a OAB, participarão da fiscalização da votação.
O reconhecimento internacional do resultado das eleições é uma etapa importante em caso de contestação. Por isso, os EUA já sinalizaram que deverão ser rápidos. Na última terça-feira, a secretária de imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou que seu governo vai “monitorar de perto as eleições” e reafirmou que os EUA “confiam na fortaleza das instituições democráticas do Brasil”. Em julho, o governo dos EUA já havia afirmado que as eleições brasileiras “servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. O Senado norte-americano aprovou na tarde da quarta-feira de forma unânime uma resolução em favor do respeito à democracia no Brasil, por iniciativa de parlamentares democratas, e pede que Joe Biden reconheça automaticamente o resultado do pleito – e que reveja as relações entre os países em caso de golpe.
Na Europa, 50 deputados do Parlamento Europeu enviaram uma carta à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, solicitando que o bloco monitore as eleições. Em caso de descumprimento do rito democrático, sugerem sanções comerciais ao País. O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos também fez um alerta sobre os ataques contra o processo eleitoral e divulgou que a entidade está “muito preocupada” com a violência política. “Notamos que existem tentativas repetidas de despertar dúvidas sobre a credibilidade do sistema eleitoral e ameaças de não reconhecer os resultados da eleição. Isso representa um sério risco para o processo democrático”, disse a porta-voz desse órgão da ONU, Ravina Shamdasani.
Nunca a eleição brasileira despertou tanta atenção internacional. Do ponto de vista externo, a lisura do processo que movimentará 156 milhões de eleitores não vai determinar apenas o rumo do País a partir de 2023. Vai sinalizar se as próprias democracias ocidentais estão se mostrando resilientes diante do assédio de populistas de extrema direita liderados pelo ex-presidente Donald Trump – a maior referência para Jair Bolsonaro.
A resposta mais forte capaz de impedir as tentativas de subverter o resultado das urnas, no entanto, vem da sociedade civil. É amplo e generalizado nos diversos setores o apoio ao processo eleitoral, contra as tentativas de intimidação. “Pacificar o Brasil é cumprir a Constituição. Obedecer o resultado eleitoral é a revelação do espírito democrático e portanto de obediência ao texto constitucional. Simples assim”, diz Michel Temer, que já havia desanuviado o ambiente institucional após as ameaças feitas por Bolsonaro no Sete de Setembro do ano passado, quando declarou que não acataria mais decisões de ministros do STF. “Não tenho dúvidas de que temos instituições fortes e suficientemente unidas para barrar qualquer ação antidemocrática por parte de quem quer que seja”, diz Simone Tebet, a candidata do MDB. “Não acredito em episódios de extremistas em massa, como ocorreu no Capitólio, nos EUA. O povo brasileiro acredita e apoia a democracia. O brasileiro está cheio dessa polarização, desse ódio.”
O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, que presidiu a eleição de 2008, ressalta que o modelo brasileiro de urna eletrônica é o mais seguro do mundo. Segundo ele, para se fraudar as eleições, seria necessário combinar “com os russos”: sete ministros do TSE, todo o corpo de funcionários técnicos do tribunal, os 27 presidentes dos tribunais estaduais e todos os partidos políticos que fiscalizam as eleições. Ou seja, seria preciso a conivência de um gigantesco sistema eleitoral. “A Covid odeia a vacina, e a fraude eleitoral odeia a urna eletrônica”, ironiza.
Embora esteja mais fragilizado do que esteve até recentemente, Bolsonaro seguirá tentando dar um golpe sem aceitar o resultado das urnas, acredita um dos principais dirigentes do PSDB. “Em que pese essa movimentação nas casernas a partir de um grupo pequeno de militares que ainda ouvem generais de pijama, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos, Lula deveria ter habilidade para neutralizar qualquer ação articulada pelos fardados anunciando que o seu ministro da Defesa será Nelson Jobim ou Raul Jungmann, que são nomes muito respeitados nos quartéis”, argumenta. E para desmobilizar qualquer insatisfação de empresários com sua eleição, o petista poderia anunciar que o seu ministro da Fazenda será Henrique Meirelles, avalia. “Jobim e Meirelles, que já foram ministros de Lula no passado e são muito admirados por todos, chancelariam o futuro governo do PT e anulariam qualquer manobra de Bolsonaro no sentido de desestabilizar as instituições”, diz o tucano.
Mas Lula, até o momento, não tem sinalizado seus planos no sentido de uma pacificação, em caso de vitória. Sua aposta é liquidar a fatura no dia 2. As últimas pesquisas eleitorais mostram a possibilidade real de o petista vencer no primeiro turno. A mais recente pesquisa Ipec (ex-Ibope), dia 26, mostrou Lula com 48% dos votos, contra 31% de Bolsonaro. A diferença entre os dois, de 17 pontos percentuais, é a maior já aferida pelo instituto. Esses números ampliaram a crise na campanha de Bolsonaro, com a troca de acusações entre o Centrão e a ala ideológica pela responsabilidade no fracasso. Ciro Nogueira chegou a anunciar que deixaria a reta final da disputa para cuidar do seu reduto eleitoral no Piauí, mas teve que voltar atrás após a péssima repercussão. O nervosismo do chefe do Executivo ainda aumentou porque membros da sua equipe passaram a cortejar Lula.
O último momento decisivo para a campanha, na noite da quinta-feira, foi o debate televisionado entre os candidatos. Com pouca probabilidade de mudar o rumo da votação, o evento, por outro lado, pode determinar se o processo se estenderá até o dia 30. No mesmo dia, o TSE decidiu proibir o transporte de armas e munições por colecionadores (CACs) na véspera do dia das eleições e nas 24 horas do dia seguinte ao pleito, sob pena de prisão em flagrante. A corte já havia vetado o porte de arma nos arredores das seções eleitorais, excetuando apenas os policiais convocados por uma autoridade eleitoral. São iniciativas que confirmam o fato de que a Justiça conseguiu se manter inflexível na defesa das instituições e da soberania popular.
E esse papel, inclusive didático,teve um alcance inédito. Extensos rituais providenciados pelo TSE mostrando a transparência da contagem dos votos serviram para assegurar a dezenas de entidades e especialistas, além de todos os partidos políticos e candidatos, que há pouca margem para dúvidas. Na última quarta-feira, o TSE promoveu uma visita à sala de totalização dos votos, com a presença do titular da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e de Valdemar Costa Neto, que precisou reconhecer que a sala “não é mais secreta, agora é aberta” (Bolsonaro repetiu várias vezes teorias conspiratórias sobre uma “sala secreta” no tribunal). Foi também limitado o assédio do Exército, ordenado por Bolsonaro por meio de seus ministros fardados. O Ministério da Defesa fará uma checagem improvisada por amostragem de urnas, sem respaldo científico, que servirá para contentar o chefe do Executivo, mas tem pouca chance de abrir caminho para contestações. Essa iniciativa foi neutralizada pela ação do Tribunal de Contas da União, que indagou os critérios e o objetivo dessa averiguação paralela (a pasta da Defesa adiou para dois dias antes do pleito a resposta oficial). Já o TCU, que aponta a segurança do processo, também anunciou teste semelhante e mais abrangente. Com iniciativas como essa, tudo indica, Bolsonaro terá pouco espaço para suas tentativas intimidatórias, além de instigar os próprios apoiadores. Mas isso não é suficiente para afrontar o veredito dos eleitores.
Colaboraram Ana Viriato, Gabriela Rölke e Mirela Luiz
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