Mal terminava a apuração dos votos do primeiro turno das eleições deste ano, já estava em curso uma avalanche de pesadas críticas às pesquisas eleitoras, a maioria oriunda de setores alinhados ao bolsonarismo. Ato contínuo, no dia 6 de outubro, o líder do governo na Câmara, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), apresentou projeto de lei (PL) cujo objetivo seria a criminalização, sob certas circunstâncias, tanto dos institutos de pesquisas eleitorais quanto do estatístico responsável, bem como, ainda, do contratante.
A pena seria “exemplar”, podendo alcançar até dez anos de reclusão – bem superior, pasmem, à do crime de homicídio culposo, cujo máximo é de três anos, e equivalente à do crime de estupro, cujo máximo é também de uma década. Uma clara desproporção, como se observa. Entretanto, não seria qualquer pesquisa eleitoral que poderia gerar a responsabilidade criminal em questão, mas apenas aquela que, publicizada na reta final da corrida eleitoral – especificamente nos últimos 15 dias antes da votação –, tivesse excedido a margem de erro prometida quando comparada com o resultado do pleito. Caso assim ocorresse, os envolvidos teriam, segundo o autor do projeto, de demonstrar que não tiveram a intenção de manipular a pesquisa a favor de um candidato, sob pena de incidirem no crime em questão. Todavia, e isso é crucial, mesmo o erro não intencional estaria criminalizado, ainda que com redução na pena aplicada.
Pergunta-se: o projeto de lei deve ser aprovado? Evidente que não. É constitucional, tal como redigido? Seguramente, não. Em primeiro lugar, precisamos abandonar o infeliz costume de, diante de um aparente problema, recorrer a respostas penais. Por que todo e qualquer novo conflito, tensão ou desconforto no âmbito da sociedade civil é objeto de proposta de criminalização? Fato é que essa resposta legislativa criminalizadora é, em regra, falaciosa, porque não resolve o conflito, antes o sufoca, enterrando qualquer possibilidade de um debate real sobre a questão problemática.
Além do problema geral do recurso injustificado e, sobretudo, monótono à criminalização, há um problema específico relativo à conduta que aqui se pretenderia criminalizar. Ora, uma coisa é divulgar porcentuais de intenção de votos que são sabidamente inventados e que, por isso, representam uma (des)informação ardilosamente fraudada, exemplar fake news. Essa conduta, parece-me, já estaria potencialmente abarcada no crime do art. 323 do Código Eleitoral. Agora, outra situação, muito diversa, é a divulgação de pesquisas eleitorais produzidas com método, ou seja, por amostragem feita com critérios estatísticos reputados cientificamente válidos. Essas duas situações narradas absolutamente nada têm em comum.
O fato de uma pesquisa eleitoral feita nos moldes do meu segundo exemplo eventualmente ter apresentado, à luz do resultado eleitoral, “erro na margem de erro” não é razão bastante para que sejam criminalizados os que a elaboraram, tampouco os que a contrataram. O motivo é simples: pesquisas de intenção de voto são altamente dependentes de uma variável não plenamente previsível, a saber, o comportamento dos “entrevistados”. Estes tanto podem não ser sinceros quanto um estrato específico deles pode se recusar a participar, contexto em que, por óbvio, a pesquisa não apresentará uma prognose eleitoral precisa, inclusive no tocante à margem de erro. Ademais, eleitores mudam seu voto às vésperas da eleição ou, simplesmente, deixam de votar pelos mais imponderáveis motivos. “Intenção de votos” não significa, pois, “confirmação de votos”.
É claro que as pesquisas eleitorais devem buscar, ao máximo, captar todas essas peculiaridades do pleito que examinam. No entanto, não podemos delas exigir mais do que são capazes de nos ofertar: estatísticas relativas ao comportamento humano nunca preverão o futuro, nem assim podem pretender. O que as pesquisas nos ofertam é uma prognose embasada, cuja finalidade é produzir informação qualificada para a sociedade civil. Daí que uma eventual extrapolação da margem de erro da pesquisa divulgada não justifica a sua criminalização, tampouco a equipara à perniciosa desinformação. A fake news – esta, sim, merecedora de sanção penal – é um ataque frontal, uma agressão direta e maliciosa a fatos verídicos. Não é uma imprecisão ou um erro – de baixa evitabilidade, como explicado – no juízo de prognose de votos.
Diante de um pleito com grande agitação, como o atual, em que setores do bolsonarismo questionaram insistentemente a segurança das urnas, com claro intuito de desestabilizar o processo eleitoral, nada mais natural que as pesquisas não tenham conseguido captar e prever, de modo pleno, o comportamento dos eleitores. Portanto, a proposta de criminalização do “erro na margem de erro” é mais um capítulo da grave e insistente tentativa de desacreditar quase tudo o que envolve esta eleição. De uma vez por todas, deixem-na em paz.
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ADVOGADA CRIMINALISTA E PROFESSORA DA FGV DIREITO SP
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