Músico, artista plástico, crítico e pesquisador de arte
O historiador Valério Arcary (1952), autor de "Ninguém Disse que Seria fácil" (Boitempo Editorial, 2022), tem afirmado que as eleições deste ano ofereceram um novo desafio analítico à esquerda. O ostensivo êxito da extrema direita nos pleitos de outubro não seria desdobramento de um fenômeno chamado antipetismo. O que ocorreu nas urnas —e tem transcorrido silenciosamente nos veios subterrâneos do imaginário do país— seria a adesão orgânica de grande parte da sociedade a um programa econômico e cultural fascista.
Esse programa poderia ser resumido pela ideia de que o explorado de ontem, por um arranjo que privilegia a liberdade, o emprego sem amarras estatais e o empreendedorismo, poderia gozar de ser o explorador de amanhã. Esse é um programa que se sustentaria numa distopia complexa e numa violência entorpecente.
A fantasia desse explorado vai sendo reconstruída pelos circuitos linguísticos que se enredam no ambiente público. A exploração e a desigualdade são ressignificadas e desejadas como "liberdade" e mérito pessoal; a "liberdade" e o mérito próprio, por sua vez, ressignificados e desejados como conquista civilizatória. Direitos democráticos universais são caros e antiquados demais.
O fascismo teria ligação com um ramo da violência de massa. Contudo, como demonstram teóricos de várias gerações, de Antonio Negri (1933) a Michael Hardt (1960), o fascismo em seu estilo primordial é a exaltação terminal da individualidade, a celebração de uma hegemonia das células privatistas às quais está destinado o patrimônio financeiro de uma nação. O que Arcary sugere é que a sociedade brasileira teria enfim incorporado um verdadeiro "choque de capitalismo", um rastro elétrico "sismológico" com reverberações culturais e mentais profundas.
O escritor Mark Fisher (1968-2017), autor de "Realismo Capitalista", formula que o capitalismo, para cumprir seu projeto, teria se constituído como uma doença sistêmica da angústia individualizada. Uma trama para que o cérebro humano padeça e, no processo, impossibilite o indivíduo de sair do ciclo do padecimento e se enxergar dentro de um circuito de sofrimento estrutural: dentro da humanidade. Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior concluem em "Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico" que "estamos diante de um quadro de medicina que propõe melhoramento humano como artigo de mercadoria". As pessoas, assim, vão se tratar para funcionar. Funcionar para sobreviver e vivenciar a supremacia dos desejos no campo do consumo.
O que se percebe na produção de símbolos das últimas décadas é uma mercadologização intensiva das experiências brasileiras. No universo sertanejo, por exemplo, prótese musical do agrobusiness, que por sua vez é plataforma do movimento reacionário nacional, foi sendo composto no tempo um arco de referências existenciais e estéticas alusivas a um patrimonialismo específico.
Nesse sistema, vigoram recombinações infinitas de uma musicalidade da pasteurização consumista agressiva, e uma poética das conquistas frustradas ou repossuídas. Nas zonas secretas desse hemisfério cultural individualista, há a exaltação da arma que liberta, invade e confere potência à masculinidade insegura e vingadora. A rigor, reconstituído o todo, o que se forjou é uma constelação de patrimônios sonoros e comportamentais em decomposição simbólica, a emergência de um neolatifundiarismo predatório, e a engenharia psíquica de um continente mental brasileiro inaudito. Um Texas espalhado pelo ar por transmissões neurais e psíquicas. Essa musicalidade e a fabulação desse Texas não estão em desacordo com um outro enredamento de conexões cerebrais, o ecossistema das fake news.
A direita, depois da fase antipetista, definiu um projeto mais nítido: uma nação de torturados e torturadores futuros, de enfermos individuais e individualizados —inclusive as vítimas de sequelas de Covid-19, encorajadas a notar a pandemia como uma "cruzada contra o lucro". Uma reunião de escravizados desabrigados e escravizadores destinados, inflamados pela ideia da individualidade privada e sagrada. Não é tarde para assumir que os triunfos recentes do fascismo foram vitórias estruturais do capitalismo.
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