quarta-feira, 30 de novembro de 2022

CHINA EM TRANSE

Editorial O Estado de S.Paulo

Que a política chinesa “covid-zero” seria um desastre econômico já era anunciado pelo Partido Comunista (PC) – “vidas primeiro” era o slogan oficial. Com o tempo, revelou-se um desastre sanitário. Agora, mostra-se um desastre político.

Os protestos que viralizam pela China são o maior desafio ao Partido desde as manifestações da Praça da Paz Celestial, em 1989. Seu gatilho foi um incêndio em um conjunto residencial. Com os bloqueios forçados, os moradores foram impedidos de sair e os bombeiros, de entrar. Dez pessoas – incluindo uma criança – morreram e dez saíram feridas.

A política “covid-zero” era especialmente estratégica para o culto à personalidade que vem sendo confeccionado por Xi Jinping, exaltado pela mídia estatal como “comandante em chefe da guerra contra a covid”. Ela foi projetada para contrastar a liderança de Xi e a paciência do povo chinês com os governos “caóticos” e o “individualismo” das democracias ocidentais. Além disso, era uma oportunidade de ouro para o Partido expandir seu aparato de controle social. Mas a paciência do povo está se esgotando e, por trás da muralha de repressão, o caos está fermentando.

A se confiar nas estatísticas chinesas, as quarentenas draconianas levaram a menos mortes. Mas causaram uma brutal desaceleração econômica. As classes média e baixa, impedidas de trabalhar, sofrem mais. O desemprego para os jovens bate os 20%.

Xi se encurralou em um dilema. Flexibilizar os lockdowns traria alívio econômico. Mas, além de admitir o fracasso de sua política sanitária, isso significaria aquiescer aos protestos e abrir as portas à disseminação do vírus em uma população vulnerável, seja pelas baixas taxas de imunidade natural, seja porque, aferrado a seu credo nacionalista, o governo se recusou a adquirir vacinas internacionais mais modernas – as chinesas são insuficientes e ineficazes, e os hospitais estão mal equipados para uma onda de internações. A outra opção é redobrar a repressão. Mas isso aumentará o risco de intensificar a revolta popular.

Em ambos os casos, as fissuras no mito da infalibilidade do “timoneiro”, como Xi é chamado, se aprofundarão. Já agora há manifestações sem precedentes pedindo sua “queda”: “Não queremos um líder vitalício”, clamaram manifestantes em Chengdu. “Não queremos um imperador.”

O fracasso serve de advertência às lideranças ocidentais enamoradas do autoritarismo chinês. O presidente eleito Lula da Silva, por exemplo, exaltou o “poder do comando” de um partido “forte”, que “estabeleceu um modelo de desenvolvimento para o mundo inteiro”. Mas, se as democracias podem ser – como muitas vezes foram na pandemia – erráticas, elas oferecem à população a oportunidade de criticar seus líderes, trocá-los e mudar de rumos.

Nesse momento, centenas de milhões de chineses trancafiados em suas casas assistem pela TV a multidões de todo o mundo se aglomerando no Catar, sem máscaras nem medo, para celebrar suas seleções. Como disse o “Super-homem de Chongqing”, manifestante chinês em um vídeo que viralizou, “sem liberdade e mais pobres, eis onde estamos hoje”.

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