No mundo ideal preconizado por alguns manuais de direito, autoridades não têm a opção de deixar barato. Se existe a suspeita de que um crime foi cometido, o Estado precisa investigá-lo e, se for o caso, processar e condenar seus autores. No mundo sublunar, sabemos que não é bem assim. Por bons e maus motivos, autoridades frequentemente fecham os olhos para algumas situações.
Em breve, Jair Bolsonaro perderá imunidades e o foro especial. Ele deve ser responsabilizado pelos delitos que cometeu? Penso que sim, mas isso não é motivo para não examinarmos a argumentação dos que defendem o contrário. E ela é essencialmente política. Cassar os direitos políticos de Bolsonaro e colocá-lo na cadeia o transformariam numa espécie de mártir para seus seguidores, acentuando ainda mais a polarização.
Para uma corrente da ciência política, o que faz a democracia funcionar é justamente o fato de os derrotados nas urnas nunca perderem muito, o que torna entregar o poder pacificamente e aguardar uma oportunidade de voltar pelo voto a opção mais racional.
Embora os panos quentes possam facilitar a administração dos rancores políticos nos próximos tempos, eles criariam, acredito, precedentes que, no longo prazo, tendem a ser muito negativos, mesmo numa avaliação consequencialista. Bolsonaro não barbarizou só na pandemia, um evento que talvez não se repita tão cedo. Ele também fustigou as instituições e afundou as contas públicas para se reeleger. Se isso ficar sem punição, todas as autoridades se sentirão livres para fazer o mesmo a cada quatro anos.
Há complicadores. Bolsonaro não agiu só. Baluartes do Legislativo, que já vão se bandeando para o lado do futuro governo, foram no mínimo cúmplices do atual presidente. Alguém acha que serão punidos?
A administração da justiça como preconizam os manuais talvez seja uma impossibilidade, se não teórica, prática.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
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