Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
Durante a última década se firmou na cultura do Brasil-colônia uma prática cuja jequice vem pronta: encontros da elite econômica e magistocrática, em cidade estrangeira glamourosa, na presença somente de brasileiros, sob o pretexto de se discutir tema nacional. Fora do país fica suspensa a noção republicana de "conflito de interesses", que busca regular interações entre estado, mercado e funções institucionais.
Para celebrar a Proclamação da República, seis ministros do STF (além de um ex-ministro e um ministro do TCU cotado a cadeira no STF) participarão da "Lide Brazil Conference", em Nova York. Como se sabe, o "Lide - Grupo de Líderes Empresariais", integrante do Grupo Doria, é empresa de João Doria dedicada a "fazer pontes" entre o mundo corporativo e o mundo público. Não precisa chamar de lobby se tiver apego ao eufemismo.
Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, além de Carlos Ayres Brito e Bruno Dantas, sob e moderação de Merval Pereira, antecedidos pelo "opening speaker" Michel Temer, irão falar sobre o tema "O Brasil e o respeito à liberdade e à democracia". Para que não faltasse verniz acadêmico nem estrangeirismo, o "meeting" ocorre no "Harvard Club", espaço ligado à comunidade Harvard.
Tudo bem que a Proclamação da República, como evento histórico, não foi das coisas mais republicanas. Mas a data ao menos ecoa um ideal, entre outras coisas, de separar o público do privado, do decoro, da imparcialidade, do combate à falta de noção. Podiam pelo menos combinar data menos irônica.
O "Lide Brazil Conference", com a presença de ministros, é um obelisco do ethos antirrepublicano da magistocracia. Por múltiplas razões. Enumero seis para começar.
Primeiro, é evento empresarial. Patrocinado por gigantes das finanças, da construção civil e da celulose: Banco Master, Acciona, Binance, Bracell, CNseg, Cosan, Eletra, J&F, Febraban, JHSF, Bradesco, Coelho da Fonseca, Grupo Safra. Um "branding" plural.
Pesquise conexões dessas empresas com Bolsonaro, com PT, com centrão, com valores constitucionais, com STF, com ministros do STF. Tem muita coisa. Cada patrocinador tem interesses presentes e futuros no STF. Mas não é só isso. O evento emite sinal grave sobre indiferença ética.
Segundo, supondo que presença de um ministro já não ferisse princípios da ética judicial, não pega mal ter a presença de seis? Da maioria do colegiado? Um não era suficiente para falar "em nome" do STF? Há limite na disneylândia do patrimonialismo magistocrático?
Terceiro, escancara como a riqueza tem absoluto privilégio sobre a pobreza na pauta do STF. Se quiser entender como o STF trata a pobreza, conte as rejeições de habeas corpus em defesa de miseráveis. Ou como julga políticas públicas que atendem aos vulneráveis. Não houve ministro em encontro nacional da população de rua, semanas atrás em Maceió. Apenas Cármen Lúcia é aguardada no da defensoria, nessa semana em Goiânia. A riqueza o STF encontra em jantares em Nova York.
Quarto, juízes precisam proteger a corte, não jogar contra ela. Quanto mais permitem individualizar o tribunal, desinstitucionalizá-lo e identificá-lo a pessoas particulares, mais abrem espaço para o tipo de ataque desferido por Bolsonaro. Crise de legitimidade passa a depender de um peteleco. Fazem o jogo de Bolsonaro.
Quinto, quem paga as despesas? Se for o Lide, está errado. Se for o orçamento do STF, mais errado. Pagam do próprio bolso? Não resolveria. São remunerados? Se sim, temos um problema enorme. Se não, o problema enorme continua.
Sexto, uma dica: o "all-white-male panel" já não pega bem nem no Harvard Club nem na Harvard University. Nove homens brancos e uma mulher não fazem um ambiente inclusivo. Ideologia de gênero?
Não há corte constitucional respeitável no mundo que aceite conduta similar. Se quiserem um modelo, basta olhar para Edson Fachin e Rosa Weber, os que mais bem praticam esses parâmetros universais de ética judicial. Se a "fumaça do bom direito" depende da "fumaça do bom juiz", a presença no Lide Conference produz fumaça tóxica.
Na semana passada descrevi formas de Bolsonaro sair vitorioso após derrota eleitoral. Naturalizar a promiscuidade é uma dessas formas. Quem prefere ser chaveirinho do poder econômico se deslegitima perante os que questionam sua imparcialidade e sua autoridade.
Lide com isso.
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