quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A LIBERDADE DE LULA NO PODER

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Escolhas sugerem que presidente eleito parece disposto a assumir o ônus da prova de que foi injustiçado

O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, um dos maiores feudos de interesses privados encastelados na administração pública do país, com um orçamento superior à quase totalidade dos Estados e dominado pelo Centrão há décadas, será entregue a Fernanda Pacobahyba. Aos 44 anos, intendente da Aeronáutica por 13 anos, doutora em direito tributário, funcionária de carreira da Fazenda do Ceará e atual secretária do órgão, Fernanda venceu os 15 processos que as máfias da sonegação lá incrustadas, moveram contra si. Está, para as políticas de controle, como a futura secretária-executiva do MEC, a governadora do Ceará, Izolda Cela, está para as de educação.

A lógica pode ser replicada para a escolha de Nísia Trindade, a socióloga que preside a Fiocruz e vai para a Saúde, outra caixa preta de lobbies privados entrelaçados no Congresso Nacional e nos tribunais. Ainda que o martelo não tenha sido batido, a ida do senador Jean Paul Prates (PT-RN) para a Petrobras é outro do mesmo quilate. Como ainda não foi anunciado, ainda não se sabe que pressões tem enfrentado na escolha de diretores, mas não há notícia de quem tenha entrado no gabinete do senador, ao longo dos últimos quatro anos, e presenciado escambos na redação de parágrafos, linhas, pontos e vírgulas de projetos de lei. A trinca exemplifica o zelo pela coisa pública como critério para a escolha do comando de grandes orçamentos da União.

A leva de ministros egressos da composição da base de apoio no Congresso ainda está por ser anunciada. Nesta lista se conhecerão os titulares de outras caixas-pretas, como a Codevasf, por exemplo, que está sob o abrigo do Ministério da Integração. O grupo que ambiciona a autarquia capitaneou os interesses do setor de gás que não apenas trafegaram com muita liberdade pela MP da Eletrobras, com votos de todos os partidos, como aí permanecem. Esperam encontrar a galinha dos ovos de ouro que financiará seus gasodutos.

O desmonte de parte do orçamento secreto, porém, devolveu ao Executivo uma fatia expressiva dos investimentos. Com isso, sua execução também estará sob o escrutínio das instituições de controle, o que não impede, mas mitiga as chances de assalto aos cofres públicos. A ida da senadora Simone Tebet (MDB-MS) para o Planejamento é outra tentativa de inserir, na alocação do Orçamento, uma mediadora cuja reputação foi construída no combate a interesses escusos. Junte-se a esses nomes aqueles da primeira leva de colaboradores que comporão o coração do governo, como Fernando Haddad e Flávio Dino, e tem-se uma configuração em que carreiras alicerçadas no compromisso com a probidade na gestão pública serão desafiadas a manter a rota para pavimentar ambições futuras.

Com a dieta a que foi submetido o Estado desde que o PT ocupou o poder, o diabo foi buscar abrigo na regulação. E seus detalhes continuarão a ser explorados à exaustão, a começar pelas pressões para que o futuro governo transforme os acordos de leniência fechados pelas empreiteiras envolvidas na Lava-Jato em parcerias público-privadas. É um enrosco que colocará em trincheiras concorrentes a CGU e o TCU, com a mediação concorrente do Ministério da Justiça e do Congresso. Da licitação ao capital de giro, não faltam constrangimentos à volta das antigas empreiteiras para a disputa das obras públicas.

O presidente eleito que volta ao poder 20 anos depois de sua primeira eleição conhece tudo isso pelo avesso. Se sua eleição foi uma vitória da frente antibolsonarista, a escolha de alguns nomes de seu ministério são uma demonstração de que o reconhecimento da injustiça de sua prisão não lhe basta. Ele parece disposto a assumir o ônus da prova. Se pouco se conhece do Luiz Inácio Lula da Silva que passou 580 dias encarcerado, é seu governo que o revelará.

Em mais de uma oportunidade, Lula disse que não se move por ressentimento mas que não esquece o que passou. A memória em modo alerta causou pelo menos um dano recente à sua equipe: o anúncio do futuro do presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, previamente à definição do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. O modo bravata inviabilizou a entrega da Pasta a um empresário de peso e sacrificou o vice-presidente Geraldo Alckmin, cuja expectativa, por definição do próprio Lula, era de atuar como chefe de governo para liberar o presidente a focar em sua atuação como chefe de Estado.

Só o tempo dirá o impacto da ausência, no núcleo mais próximo de Lula, de um contraponto como o de Alckmin, a quem costuma se referir como aquele que se deve respeitar porque derrotou o PT cinco vezes. O futuro ministro da Casa Civil, Rui Costa, é um tarefeiro organizado e aplicado que governou a Bahia por oito anos, mas ainda não foi testado em jurisdições ampliadas. Lula não terá um Palácio de contemporâneos na construção do PT, como José Dirceu ou Luiz Gushiken. Na penosa reaproximação com Marina Silva pesou a condição de futura ministra que ombreia com presidente. Do entorno de Lula, a única pessoa que não o chama de presidente - até publicamente - é a primeira-dama, Janja da Silva.

Três pessoas que conviveram com Lula em sua chegada ao poder 20 anos atrás e acompanham sua volta ao Palácio do Planalto convergem na percepção de um pavio mais curto. A impaciência revela, paradoxalmente, um presidente que enfrenta diariamente o peso físico da idade e, emocional, da prisão. A masmorra de Curitiba valorizou o passe de quem não saiu do seu lado e aumentou a expectativa de quem espera ter acesso pela via da bajulação.

A formação da equipe de governo revelou a prisão como fronteira inexpugnável do lulismo. Egressos do lavajatismo são tolerados, mas defensores da prisão, ainda que arrependidos, como o policial rodoviário Edmar Camata, desconvidado para dirigir a PRF, são vetados, como se todos os 60 milhões de eleitores de Lula tivessem chorado em 7 de abril de 2018.

Ao final da formação de governo, por outro lado, a Esplanada deverá estar povoada de apoiadores do impeachment de Dilma Rousseff. Só então será possível aquilatar o peso que os traumas pelos quais o PT passou nos últimos anos terá no próximo governo. Lula será tão melhor presidente quando mais livre estiver deles.

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