Supremo precisa suspender decreto natalino de Bolsonaro que beneficiou responsáveis pelo massacre em 1992
As linhas tortas do indulto de Natal concedido na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro tinham direção certa: policiais militares condenados pelo Massacre do Carandiru, matança que chocou o país e o mundo. Em 2 de outubro de 1992, 111 presos amotinados foram executados durante invasão da Casa de Detenção de São Paulo por forças policiais.
Oficialmente, o decreto concede perdão a agentes de segurança pública condenados por crime culposo (sem intenção de matar), desde que tenham cumprido pelo menos um sexto da pena; a militares condenados em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e — de modo inusitado— a policiais condenados, ainda que provisoriamente, por crime praticado há mais de 30 anos que não fosse considerado hediondo à época.
A lei proíbe o presidente de conceder indulto por crimes hediondos, e 30 anos atrás o homicídio qualificado ainda não era classificado como tal (só passou a ser dois anos depois). Na prática, portanto, foi um indulto sob medida para beneficiar os 69 PMs condenados pelo Massacre do Carandiru. Não demorou para que advogados de defesa dos PMs reivindicassem a extinção da ação que ainda tramita em São Paulo.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, fugiu ao papel de seguidor fiel dos roteiros traçados pelo Planalto e anunciou que questionará o indulto no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo ele, a Constituição veda o perdão para crimes hediondos, ainda que na época eles não fossem enquadrados assim. Entidades de defesa dos direitos humanos também apontaram falhas gritantes no decreto. O indulto natalino não pode beneficiar um grupo específico (no caso, os PMs condenados pela matança).
Juridicamente, o indulto é diferente da graça, perdão presidencial concedido num caso específico. No ano passado, Bolsonaro concedeu a graça ao então deputado Daniel Silveira (PTB), condenado pelo STF a oito anos e nove meses de prisão por ataques à Corte e a seus ministros. À época, Bolsonaro alegou que a sociedade estava em “comoção” pela condenação de Silveira e que a “liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade”. A “comoção” só existia nas hostes bolsonaristas.
Independentemente das discussões jurídicas sobre o indulto de Natal, não tem cabimento o perdão a condenados por um crime hediondo. Não importa se as vítimas eram criminosos que cumpriam pena. Estavam ali sob custódia do Estado, depois de julgados e condenados. Não poderiam ser executados por agentes que deveriam ser os primeiros a cumprir a lei.
Os PMs acusados pelo massacre foram a julgamento, com amplo direito de defesa. Condenados por cinco júris, receberam penas que variam de 48 a 624 anos de prisão. Os que estão vivos permanecem em liberdade. Com o indulto, não se sabe se continuarão respondendo à Justiça. O Supremo, a quem caberá a última palavra, precisa impedir essa afronta à Constituição que avilta a Justiça brasileira.
Tentar apagar a matança do Carandiru com um indulto oportunista e descabido, cujo único propósito é afagar categorias incensadas pelo bolsonarismo, em nada contribuirá para termos uma polícia melhor, prisões menos desumanas, uma Justiça mais eficaz e um país onde se cumpra a lei. Continuaremos sendo a terra da impunidade. Não aprendemos nada em 30 anos?
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