quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

DE DR. VASCO PARA MAURO VIEIRA

Elio Gaspari, O Globo

Remover servidores é prerrogativa dos ministros e dos presidentes. Satanizá-los antes da remoção é coisa de bruxos

Estimado colega,

Daqui a quatro dias Vosmicê vai para a cadeira que eu ocupei, como ministro das Relações Exteriores, nos borrascosos anos de 1964 a 1966. Daqui onde estou, sei que estão armando uma caça às bruxas no Itamaraty. Remover servidores é prerrogativa dos ministros e dos presidentes. Satanizá-los antes da remoção é coisa de bruxos. Removê-los depois de terem sido satanizados é tibieza. Conhecemos nossa Casa e sabemos que seu terreno é fértil para ervas venenosas.

Para ser preciso, relembrarei um caso ocorrido em fevereiro de 1974, pouco antes da posse do general Ernesto Geisel. Outro dia ele riu muito quando mencionei o episódio.

Um diplomata fez chegar ao gabinete do presidente eleito uma folha de papel sem assinatura, devastando a vida de seis possíveis chanceleres de seu governo.

A respeito do embaixador Azeredo da Silveira, o Silveirinha, dizia o seguinte:

— Não encontrou, até hoje, quem lhe dissesse que ‘de modo que’ e ‘de maneira que’ são locuções invariáveis. Insiste, para suplício dos interlocutores, enunciar que ‘de modos que’, ‘de maneiras que’. [Um de seus colaboradores] pede, no particular, para ser acareado com o embaixador Silveira e afirma que pode fazer revelações estarrecedoras a respeito da cooperação que, no cargo [cônsul-geral em Paris], o embaixador Silveira prestou aos assuntos particulares do presidente Goulart.

A sorte faltou ao diplomata e alguém identificou-o no verso do papelucho.

Uma semana depois, o mesmo servidor fez chegar ao gabinete de Geisel outro papel, desta vez assinado. Nele, qualificava Silveira:

—Grande inteligência, perspicácia, capacidade de trabalho e experiência na política multilateral e bilateral.

Silveira foi o chanceler de Geisel e fez um memorável trabalho.

Eu impedi que as bruxas entrassem no Itamaraty. Numa época em que se cassavam servidores aos lotes, limitei o expurgo a meia dúzia. Isso num regime de exceção.

Mas não estou aqui para falar bem de mim. Em 1968, o embaixador Araújo Castro, último chanceler de João Goulart, foi nomeado embaixador do Brasil nas Nações Unidas e, logo depois, em Washington.

Quando a prática de torturas de presos eram denunciadas pelo mundo afora, alguns de nossos mais ilustres embaixadores escreviam cartas a jornais negando que elas ocorressem. Um deles classificou a acusação de “caluniosa”. Era a instrução que tinham. Pio Corrêa cumpria essa ordem. Como cavalheiro que era, em 1971 escreveu ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Alfredo Malan, denunciando a tortura e lastimando ter sido levado a mentir.

A satanização de servidores é geralmente produto de malquerenças ou cobiças explicáveis pelas diferenças de caráter que acompanham o gênero humano. Nada podemos fazer para extingui-las, mas, sentados naquela cadeira, devemos contê-las. Um de seus antecessores prenunciou o desastre que seria a gestão dele ao remover Vosmicê do cargo de ex-chanceler para a embaixada na Croácia.

O Brasil de hoje não é o das ditaduras. A conduta dos servidores deve ser avaliada pela métrica do serviço público, e só. O marechal Castello Branco mandou para Paris um diplomata da sua estima. Quando ele ofendeu essa métrica, transferimo-lo para Jacarta.

Saudações fraternais

Vasco Leitão da Cunha

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