Difícil será fechar a fenda que cindiu a sociedade por ação deliberada da extrema-direita
O relatório final do Gabinete de Transição Governamental dá conta do estrago provocado pelo governo que enfim acaba neste sábado (1°). Embora alentado, o documento não traz propriamente informações novas. Seu mérito é proporcionar uma visão panorâmica daquilo que o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, coordenador da empreitada, definiu à perfeição: "Desmonte do Estado brasileiro."
Tão danosa quanto o legado de desgoverno é a herança de polarização política patrocinada pelo presidente de extrema-direita. Sua cara mais visível são os grupelhos que fecharam estradas, se instalaram às portas dos quarteis a pedir intervenção militar e tramaram atos terroristas com o que foi recentemente abortado em Brasília. O fanatismo que os move se nutre, de um lado, da complacência dos agentes da ordem e, de outro, do silêncio cúmplice de quem cultiva a ambiguidade com a recusa a reconhecer a derrota das urnas.
Os aprendizes de terroristas provavelmente serão dispersados quando o país voltar a ter governo, de hoje a três dias. Mais difícil será fechar a fenda que cindiu a sociedade por ação deliberada da extrema-direita. Pois, se diferenças de valores, preferências políticas e simpatias partidárias existem em qualquer agrupamento humano, sua metamorfose em hostilidade mútua e antagonismos irredutíveis é obra de quem aposta tudo na radicalização.
Recente pesquisa da Genial-Quaest —"O Brasil que queremos"— indica que 9 em 10 cidadãos pensam que o país saiu mais dividido das eleições de outubro passado. Parcela significativa deles se reconhece como anti-PT (40%) ou pró-PT (35%).
Os dois grupos habitam universos díspares a mais não poder: buscam informações em mídias diferentes ou em redes sociais, se inquietam com assuntos distintos. A rejeição das cotas raciais; da expressão pública de afeto entre pessoas do mesmo sexo; da expansão dos direitos das mulheres; e a demanda pela posse e porte de armas povoam a cabeça dos antipetistas.
Ainda assim, para além das suas diferenças gritantes, parece haver extensa e talvez surpreendente área de convergência entre os dois grupos adversários. Une-os o apoio à ação do governo para controlar a inflação, reduzir desigualdades, gerar empregos e atuar fortemente na educação; tratar o crime com mão dura e não avançar no direito ao aborto. É do interesse nacional reduzir a polarização —o que requer boa gestão econômica, robusta política social, mas também muita criatividade nas políticas de segurança pública e diversidade, que despolitizem essas agendas sem reduzir direitos.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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