terça-feira, 27 de dezembro de 2022

MARTELO, PREGOS E A NOVA BATALHA DE JUROS

Pedro Cafardo, Valor Econômico

Gastança financeira versus gastança fiscal, eis o debate

Para um homem que tem um martelo na mão, tudo parece prego. Não é porque o Federal Reserve tem um martelo que vai sair por aí destruindo a economia.

O parágrafo acima é do economista americano Joseph Stiglitz, inspirado em frase do psicólogo também americano Abraham Meslow (1908-1970). Em artigo recente, Stiglitz detonou o Fed e outros bancos centrais que, a pretexto de domar a inflação, estão anunciando novos aumentos de juros, insensíveis às previsões de uma possível recessão econômica global.

O aperto monetário, segundo o economista, que ganhou o Prêmio Nobel em 2001, deixará cicatrizes duradouras, causará mais sofrimento que benefícios e atingirá principalmente os pobres nos Estados Unidos e pelo mundo afora. A inflação global já está diminuindo e continuará nesse ritmo mesmo sem mais aumentos de taxas de juros. Apesar da continuidade da guerra na Ucrânia, os preços do petróleo também estão em queda e o mesmo ocorre com automóveis e outros produtos dependentes de chips fabricados nas cadeias globais de abastecimento.

Stiglitz refuta o argumento de que a inflação de hoje se deve aos gastos excessivos com a pandemia e de que para reduzi-la seria necessário promover recessão e desemprego. Diz que a inflação não foi impulsionada pela demanda, porque isso só ocorre quando a demanda agregada excede a oferta agregada potencial, o que não é o caso atual. “A pandemia deu origem a inúmeras restrições setoriais de oferta e mudanças de demandas que se tornaram os principais motores do crescimento dos preços.”

É bom prestar atenção nesse conflito dos juros lá de fora porque ele certamente vai voltar em breve à pauta brasileira. Nos últimos anos, com as taxas baixas fixadas pelo Banco Central, principalmente no auge da pandemia, o assunto sumiu do debate. Ontem, em artigo no Valor, o economista André Lara Resende já deu um sinal: protestar contra gastos autorizados pela PEC da Transição, que alguns chamam de PEC da Gastança, e simultaneamente defender a manutenção das absurdas taxas de juros fixadas pelo Banco Central é algo que desafia a lógica. “As despesas públicas, sejam elas primárias ou vinculadas ao serviço da dívida, expandem a demanda agregada e podem vir a pressionar a inflação.”

Com a autonomia recebida por lei, nos dois últimos anos o Banco Central nadou de braçada no ambiente econômico ultraliberal do governo Jair Bolsonaro, usando o seu martelo com liberdade total e praticamente sem contestações. A Selic, taxa básica, foi elevada de 2% ao ano em meados de 2020 para os atuais 13,75%.

Agora, os pregos ameaçados começam a se precaver. O proximo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem um temperamento moderado e civilizado, mas está longe de discordar da ideias de Stiglitz e Lara Resende. Claro que ele e sua turma nem sonham em contestar a concessão de autonomia ao BC, mas certamente não ficarão quietinhos em seus cantos se a autoridade monetária se mostrar, na expressão de Stiglitz, com uma “determinação inabalável” de manter os juros elevados enquanto a economia caminha para a recessão.

Os juros no Brasil estão bastante altos, os maiores do mundo. A taxa real, que o economista do Valor Robinson Moraes calcula todas as segundas-feiras, está em 7,88% quando medida pela diferença entre o Swap 360 (13,56%) e a previsão da mediana do IPCA (5,27%) para 12 meses. Há um ano, a taxa real era de 6,70% e há dois anos era negativa, de -0,30%.

Preparemo-nos, portanto, para a volta do debate acalorado sobre os juros. A ala heterodoxa, que deve dominar o novo Ministério da Fazenda a partir da próxima semana, vai sempre achar que as taxas estão altas demais. E o competente presidente do BC, Roberto Campos Neto, terá dias menos tranquilos.

O jogo nessa área, em geral, é pesado. Para Campos Neto, assim como aparentemente para os presidentes de Bancos Centrais do mundo desenvolvido, é necessário evitar um aumento muito significativo do consumo interno, porque a inflação continua a ameaçar a economia. A heterodoxia pensa diferentemente. Entende que a atual política monetária brasileira transfere impunemente trilhões de reais para bancos e rentistas e cita números. Em 2021, por exemplo, com a alta da taxa Selic, o governo federal gastou R$ 1,96 trilhão com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Sozinho, o Tesouro Nacional gasta mais que as áreas de saúde, educação, previdência, ciência, tecnologia, e segurança juntas. Cerca de 50% do orçamento federal foram destinados a pagar despesas a rentistas, principalmente instituições financeiras e fundos de investimentos. Apesar disso, a dívida pública aumentou cerca de R$ 700 bilhões, passando de R$ 6,9 trilhões para R$ 7,6 trilhões.

Depois dos juros, que levam metade do orçamento, a segunda maior despesa da União é com a Previdência Social, que consome cerca de 19,6%. Assim, dizem os heterodoxos, o filé mignon dos recursos da sociedade vai para o bolso dos rentistas.

Claro que essa gastança financeira incomoda o novo governo, principalmente num momento em que precisou empenhar o capital político adquirido nas urnas para implorar ao Congresso a aprovação de um “extrateto” de até R$ 169 bilhões que venha a suprir despesas do Bolsa Família e de alguns investimentos urgentes em áreas sociais.

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Nesse ponto da discussão, cabe citar duas perguntas de Joseph Stiglitz que o professor Lauro Gonzales leu para seus alunos na FGV: os juros mais altos aumentarão a oferta de chips ou a oferta de petróleo? Reduzirão o preços dos alimentos? O próprio Stiglitz responde: claro que não. Ao contrário, os juros mais altos dificultarão a mobilização de investimentos que poderiam aliviar a escassez de oferta.

A regra vale para o Brasil. Juros altos pouco farão para reduzir a inflação, que não é de demanda, mas serão fatais para inibir investimentos, crescimento da produção e geração de empregos. Não existe investimento que se justifique quando a aplicação financeira dá um rendimento real de quase 8% ao ano. O Banco Central, acusado pela gastança financeira, está de olho na gastança fiscal, que poderá empurrar a inflação para longe das metas. E o BC só tem um instrumento para combatê-la, a taxa de juros. Vai continuar usando o martelo. Os pregos e similares que se defendam. Vem aí a nova batalha dos juros.

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