sábado, 31 de dezembro de 2022

O FUTURO DA CONSTITUIÇÃO

Oscar Vilhena Vieira*, Folha de S. Paulo

O sucesso depende de sua capacidade de articular estabilidade e mudança

Muito antes de Darwin, Maquiavel já preconizava —em seus "Discursos"— ser a capacidade de adaptação a principal responsável pela sobrevivência da República. Associada à diversidade e à liberdade dos cidadãos, a disposição para mudar permitiria à República se adaptar às novas circunstâncias, preservando o cerne de sua Constituição.

As constituições modernas são dispositivos institucionais que buscam contribuir para que as Repúblicas sejam capazes de se adaptar, ao estabelecer a liberdade, o pluralismo e a alternância no poder como suas regras essenciais; criando obstáculos, no entanto, para que os que venham a exercer o poder não possam colocar em risco as premissas fundamentais para a sobrevivência da própria República.

O sucesso de uma Constituição depende, nesse sentido, de sua capacidade de articular estabilidade e mudança. Estabilidade do jogo democrático e dos direitos que lhe são constitutivos, com a flexibilidade necessária para as constantes correções de rumo. Correções de rumo voltadas a atender as próprias promessas de dignidade, justiça ou bem-estar, que levam os diversos setores da sociedade a aderir ao pacto constitucional.

Em um período de frenética transformação, como o que vivemos, manter os canais democráticos desobstruídos é fundamental para que as transformações sociais, tecnológicas ou econômicas possam ser processadas, sem violência e ruptura do sistema político.

A ideia romântica de Thomas Jefferson de que cada geração deveria se dar uma nova Constituição, para não ficar submetida ao "governo dos mortos", tem se demonstrado cada vez mais custosa. As dificuldades de coordenar um novo pacto político em sociedades contemporâneas, altamente complexas, são enormes.

Nesse sentido, temos que zelar pelos pilares de nosso patrimônio constitucional, pois eles é que assegurarão as condições políticas para que as mudanças institucionais necessárias possam ser feitas, com o objetivo de que as promessas de uma vida melhor feitas pela Constituição possam ser cumpridas. Quando essas promessas não são cumpridas, as Constituições ficam vulneráveis a ataques de populistas e oportunistas autoritários, como os que sofremos nos últimos quatro anos.

Torço para que o governo que agora se instala tenha a ousadia de promover as reformas necessárias para que as promessas constitucionais possam ser cumpridas. Como é final de ano —e retomada do processo democrático—, tomo a liberdade de apresentar minha lista de desejos constitucionais para o próximo quadriênio. O primeiro desejo é que sejam eliminados privilégios indefensáveis entrincheirados na Constituição, assim como uma reforma tributária voltada a fomentar mais prosperidade e reduzir a obscena desigualdade que estrutura a sociedade brasileira.

Em segundo lugar, desejo que as políticas públicas, especialmente nas áreas de educação, saúde, moradia e meio ambiente, devastadas pelo desgoverno que foge, sejam reformuladas, para que os setores mais vulneráveis tenham as condições e capacidades necessárias para viver, com autonomia, num mundo cada vez mais competitivo e desafiador.

Meu terceiro desejo é a modernização de nosso sistema de aplicação da lei, com o objetivo de reduzir a desigualdade e o arbítrio a que muitos cidadãos são submetidos diariamente, em função de sua raça ou condição social. De quebra, as reformas poderiam contribuir para aumentar a segurança jurídica, a transparência e reduzir a impunidade.

O fato de a Constituição ter sobrevivido ao bolsonarismo não significa que o seu futuro esteja assegurado. Para sobreviver, precisará se transformar.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

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