A dor e a humilhação da derrota costumam ser atenuadas quando se cumpre, com rigor e dignidade, a liturgia da passagem do bastão
O silêncio de Bolsonaro nas últimas semanas me impressiona mais que suas palavras como presidente. Daquilo que disse nessa travessia, pouca coisa merece ser guardada e lembrada. É orador medíocre e parece não se dar conta de que suas formulações são quase sempre uma versão requentada do que já foi dito por outros líderes populistas com a mesma vocação autoritária.
A decifração do atual silêncio de Bolsonaro é desafio irresistível para uma “mídia” que ele soube manipular durante seus anos no Palácio da Alvorada. Usando mais uma das técnicas copiadas do playbook de Trump, nosso já quase ex-presidente procuraria agora conservar algum espaço no grande palco da política e se fazer mais interessante em sua recente encarnação como ator trágico e enigmático.
Estamos assistindo, em Brasília, àquela feira das vaidades e ambições que cada governo que chega deve enfrentar. Lula tem a impossível tarefa de procurar satisfazer às expectativas dos que o apoiaram e buscam agora recompensa, espaço e poder. A situação do candidato derrotado deveria ser, em princípio, bem mais simples. Cabe a ele, essencialmente, ir embora. A dor e a humilhação da derrota costumam ser atenuadas quando se cumpre, com rigor e dignidade, a liturgia da passagem do bastão. Não é,certamente, ao que estamos assistindo.
Obedecer a um comprovado cerimonial consola quem sai e ajuda a moderar a exuberância de quem chega. Permite, sobretudo, que de forma decorosa um capítulo se encerre e que a vida continue. Bolsonaro — com seu silêncio e virtual reclusão — faz com que perdure intensa inquietação sobre seus verdadeiros sentimentos e intenções. Permanecem, assim, acesas as esperanças ilegítimas de muitos de seus seguidores, que continuam na porta dos quartéis ou em espaços religiosos, esperando provocar uma intervenção militar, ou até mesmo divina, para corrigir o que foi visto mundo afora como um exemplar exercício eleitoral.
Todos os lutos, mesmo os do bolsonarismo, existem para ser temporários e progressivamente aliviados. Vou procurar resistir à tentação de prever quando e como isso acontecerá.
Chego assim até Shakespeare, sempre relevante, que acredito encontraria no atual momento brasileiro ampla e fértil matéria para sua criação. Ele disse lá atrás que somos todos apenas atores e que o mundo é um vasto palco, onde se representa uma trama cheia de som e fúria, contada por idiotas, que não significa nada. Em várias de suas peças, mostrou como o poder era desmontado e seu titular humilhado. A ambição desmedida e criminosa de Macbeth é punida; o Rei Lear vaga solitário por um reino que não é mais seu; e Ricardo III espera ainda trocar o trono que está a ponto de perder por um cavalo que não encontra e que, talvez, simplesmente não exista. Estou muito longe de esgotar os exemplos relevantes em sua imensa obra, mas imagino que o velho bardo não deixaria de aproveitar um personagem como Bolsonaro. Saberia reconhecer que nosso momento e circunstância oferecem matéria-prima para uma imaginária obra sua que — e aí reside a questão — talvez não terminasse bem.
Os acertos de Bolsonaro serão, acredito, incorporados à trama da nossa História. Seus erros, corrigidos e, espero, superados. Ao começar a fazer as contas do que foram os anos de seu governo, gostaria de pensar que nós, brasileiros, por sermos quem somos, saberemos encerrar logo este capítulo de rancor e polarização e saberemos expressar o mais cordial e indulgente desejo: que Jair Bolsonaro possa sair finalmente de seu labirinto, se reconciliar com os fatos e ser feliz. É de gestos de generosidade e bom senso, parte inseparável da maneira brasileira de ser, que temos sentido, nestes últimos tempos, tanta falta. Para estes transes, um pouco de Shakespeare também ajuda.
*Marcos Azambuja é diplomata, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e foi secretário-geral do Itamaraty
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