Lula demarcou o terreno entre seu governo democrático e o projeto autoritário de Bolsonaro
A cerimônia de posse de um presidente da República é um rito de passagem, que simboliza na democracia a ideia de um governo do povo para o povo. O papel das percepções sociais e das expectativas tem importância muito grande, porque o poder não deriva apenas da posse e do uso dos recursos do Estado, assegurados no plano institucional. A imagem social do governo exerce influência sobre o poder real. Há muitas leituras possíveis sobre a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem. Podemos enumerar as principais, sem grandes dificuldades.
Nesse aspecto, subliminarmente, caracterizou-se uma ruptura entre o governo Bolsonaro, que projetava a tutela das Forças Armadas sobre as instituições da democracia, e o restabelecimento pleno da ordem democrática, com a reencarnação do poder civil pela Presidência. Foram muitas as simbologias. O fato de ter desfilado em carro aberto ao lado da primeira-dama Janja e do vice Geraldo Alckmin, acompanhado da mulher Lu Alckmin, contrariou os que defendiam que fizesse o trajeto da Catedral de Brasília ao Congresso num carro blindado, Lula não renunciou ao calor humano da grande massa de militantes petistas que ocupou a Esplanada.
Venceu o medo de que houvesse um atentado, disseminado pelos bolsonaristas radicais, desde o frustrado atentado a bomba num caminhão tanque cheio de gasolina de aviação, nas imediações do Aeroporto de Brasília. Confiou no planejamento de segurança adotado em sua posse, na qual o Comando Militar do Planalto teve um papel fundamental. Entretanto, a escolta de Lula não foi feita por agentes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), mas pela Polícia Federal. Os batedores que abriram o cortejo presidencial eram motociclistas da Polícia Militar do Distrito Federal, e não do Batalhão de Guarda Presidencial ou do Corpo de Fuzileiros Navais.
No Plenário da Câmara, Lula reafirmou o compromisso com o combate às desigualdades e foi muito claro em demarcar terreno entre o seu governo, que simboliza o resgate do poder civil e a plenitude da democracia, e o projeto autoritário de Bolsonaro, que tinha a simpatia dos seus comandantes militares. Significativa foi ausência dos canhões da histórica Bateria Caiena, na cerimônia de passagem em vista dos destacamentos da Marinha, Exército e Aeronáutica. Os tradicionais tiros de canhão, que abrilhantavam a posse, supostamente não ocorreram para não assustar a cadela Resistência, adotada por Janja durante a vigília feita pelos petistas em Curitiba, em solidariedade a Lula quando estava preso.
Resistência subiu a rampa do Palácio do Planalto com Lula, ao lado de representantes dos movimentos identitários e populares. Mas quem roubou a cena foi o velho cacique kayapó Raoni Metuktire, desafeto de Bolsonaro e reverenciado internacionalmente. A imagem do presidente ao lado do maior líder indígena do país deve correr mundo, destacada pelos jornais e telejornais internacionais. Depois da nomeação de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, nada é mais simbólico do compromisso de Lula com a questão ambiental do que a aliança com Raoni.
Além do cacique, mais sete representantes de movimentos sociais subiram a rampa, como a catadora Aline Sousa, que pôs a faixa presidencial em Lula, e o menino negro Francisco, de 10 anos. Aline trabalha recolhendo resíduos para reciclagem desde os 14 anos e é da terceira geração de catadores da família. Foi o momento mais emocionante da posse.
Convergência
Um capítulo à parte foi o longo discurso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Confrontado com o discurso de Lula, ambos foram convergentes, mas estabeleceu uma agenda para o Congresso que servirá de balizamento para as relações do novo governo com o Parlamento. Sem dúvida, a principal linha de resistência do presidente à oposição é a base do governo no Senado.
Enquanto Pacheco assume a posição de aliado principal, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é um adversário à espreita, que pode inviabilizar o governo se Lula errar a mão na relação com o Centrão. Lira não conseguiu emplacar o deputado Elmar Nascimento (União-BA) no Ministério da Integração Nacional e tentou emparedar Lula na votação da PEC da Transição, mas acabou enfraquecido pela decisão do Supremo Tribunal Federal, que acabou com o chamado orçamento secreto. A presidente do STF, Rosa Weber, esbanjou sorrisos na posse, ao contrário do procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro.
Ontem mesmo, Lula começou a usar a caneta cheia de tinta que ganhou de um petista do Piauí, na campanha eleitoral de 1989. Logo após tomar posse, revogou o decreto que permitia o garimpo em áreas indígenas e de proteção ambiental; suspendeu os sigilos sobre informações e documentos da administração pública na gestão Bolsonaro; e determinou a retirada do processo de privatização de estatais empresas — Empresa Brasil de Comunicação, Correios e Petrobras.
Também adotou medidas de caráter administrativo, como a nova organização da Presidência da República e dos ministérios; a ampliação do pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil (que volta a se chamar Bolsa Família) para as famílias mais pobres; a prorrogação da desoneração sobre os combustíveis; o restabelecimento do Fundo Amazônia e o combate ao desmatamento; e a garantia de inclusão à educação.
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