Tragédia dos Yanomami se configura como genocídio e pode levar Bolsonaro a tribunal internacional
‘‘Acavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esses problemas em seu país.” Este é um trecho de discurso de Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB-RJ, na Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 1998. Dessa frase, até atos e omissões que fecharam seu mandato de presidente da República em dezembro de 2022, Jair Bolsonaro ofereceu provas contra si próprio. Virou um poço aterrado por acusações, que transbordou com as imagens chocantes, e divulgadas no mundo inteiro, da condição degradante imposta ao povo Yanomami.
As fotos de Yanomamis desnutridos, praticamente pele e osso, são revoltantes. Lembram as fotos dos prisioneiros dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. As imagens ganharam repercussão com a visita do presidente Lula à região, no sábado (21). Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, nos últimos quatro anos 570 crianças Yanomamis morreram por contaminação de mercúrio, desnutrição e fome. Além de dar declarações preconceituosas e mentirosas sobre indígenas desde antes de seu mandato presidencial, Bolsonaro dedicou seu governo a facilitar a entrada de garimpeiros na região.
Uma vez estabelecido, o garimpo contamina os rios com mercúrio, afasta a caça local e, controlando pistas de pouso e transportadores em ação na região, impede a chegada de alimentos e remédios para a população Yanomami. A Polícia Federal abriu na quarta-feira (25) investigação para apurar crimes de omissão e genocídio ligados à crise humanitária na população Yanomami. A superintendência da PF em Roraima quer levantar possíveis omissões de agentes públicos no combate aos problemas enfrentados pelos indígenas e também a atuação de operadores e financiadores do garimpo ilegal.
A investigação foi um pedido do ministro da Justiça, Flávio Dino. Para ele, há indícios do crime de genocídio contra o povo Yanomami. “Eu não tenho nenhuma dúvida técnica, embora não me caiba julgar, de que há indícios fortíssimos de materialidade do crime de genocídio. E é disso que se trata.” Segundo Dino, integrantes do governo Bolsonaro podem ser enquadrados. “Genocídio não é só matar. Violar a integridade física e mental também é uma forma de genocídio. O que a lei brasileira trata é que ele fica caracterizado quando se busca medidas comissivas e omissivas de levar ao extermínio de um povo.”
Dino anunciou duas ações tomadas por seu ministério: apurar a responsabilidade de agentes públicos do governo Bolsonaro e montar uma grande operação da Polícia Federal para fazer a retirada dos milhares de garimpeiros ilegais da terra Yanomami.
Em nota, o Ministério Público Federal reiterou o compromisso no combate ao garimpo no território. Para Mario Bonsaglia, subprocurador-geral da República, “essa reação estatal, de natureza policial e contando também com o necessário apoio das Forças Armadas para fazer valer as decisões e as recomendações do MPF, precisa vir com urgência”, afirmou. “Isso ocorre diante não só da ilegalidade em si da atividade garimpeira, mas principalmente em face da grande devastação ambiental que acarreta, com reflexos diretos e imediatos sobre a saúde e a vida das populações indígenas. Ou seja, a retirada dos garimpeiros, inclusive mediante o uso da força necessária, é inegociável”.
A situação de emergência sanitária será incluída em ação já levada ao Tribunal Penal Internacional de Haia pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abid) em 2021, denunciando Bolsonaro por genocídio e crimes contra a humanidade, e já ampliada no fim do mesmo ano para incluir avanços do desmatamento e do garimpo ilegal em terras indígenas. Esses crimes, se caracterizados como genocídio (extermínio deliberado, parcial ou total de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso; destruição de populações ou povos), podem levar o ex-presidente brasileiro a julgamento e a penas de detenção, além de multa e perda de bens.
Para o coordenador jurídico da Abid, Maurício Tenara, “foi uma política de morte, que visava questões prejudiciais”. Ele considera que a denúncia enviada a Haia “tem materialidade probatória para condenar Bolsonaro por genocídio”. Conforme o advogado Cássio Schneider Bemvenuti, coordenador do Curso de Direito da Universidade Feevale, “há elementos óbvios, claros e nítidos de que o governo no mandato anterior não agia na proteção desses indígenas”, afirmou. “Caracterizar a não intervenção do governo como genocídio pressupõe que houve dolo do governante. Ou seja, que além de omisso, de não cumprir o seu dever e ser negligente, ele também agiu com o objetivo de eliminar determinado grupo étnico, no caso, essa população Yanomami. Cabe a apuração de provas que demonstrem o elemento subjetivo do dolo.” O Ministério da Saúde decretou situação de emergência no território. A titular da pasta, Nísia Trindade, declarou que Jair Bolsonaro foi omisso. “Houve omissão em relação aos Yanomamis e outros povos”, disse a ministra, afirmando que o garimpo ilegal de ouro na região é a principal causa da crise de saúde. “Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão.”
Em reunião com a ministra, o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Antonio Barra Torres comparou as imagens da crise de saúde dos Yanomamis com fotos do Holocausto conduzido pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial.
Lula também ficou impressionado com o que viu. “Adultos com peso de crianças, crianças morrendo por desnutrição, malária, diarreia e outras doenças. Os poucos dados disponíveis apontam que ao menos 570 crianças menores de cinco anos perderam a vida no território Yanomami nos últimos quatro anos, com doenças que poderiam ser evitadas”, declarou em Boa Vista.
Bate-boca
No dia seguinte, Lula publicou em suas redes sociais: “Mais que uma crise humanitária, o que vi em Roraima foi um genocídio. Um crime premeditado contra os Yanomamis, cometido por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro”. No mesmo dia, em sua conta no Telegram, Bolsonaro revidou: “Contra mais uma farsa da esquerda, a verdade: os cuidados com a saúde indígena são uma das prioridades do governo federal. De 2019 a novembro de 2022, o Ministério da Saúde prestou mais de 53 milhões de atendimentos de atenção básica aos povos tradicionais”.
Na verdade, é farta a participação da tropa de Bolsonaro em ações que provocaram e agravaram o sofrimento dos Yanomamis. Em 2020, a senadora eleita Damares Alves, então ministra dos Direitos Humanos, pediu a Bolsonaro veto à entrega de leitos de UTI e de água potável aos Yanomamis durante a pandemia de Covid-19. O veto se estendeu a equipamentos hospitalares, como respiradores, material de higiene pessoal e limpeza.
O deputado federal eleito Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, deixou a pasta em junho de 2021, sob acusações de participação em extração e venda ilegal de madeira e de compactuar com o garimpo ilegal, chegando a transportar garimpeiros em aviões do governo. Poucos dias antes do fim do mandato de Bolsonaro, em 14 de dezembro, o general da reserva Augusto Heleno, ainda no cargo de ministro do Gabinete de Segurança Institucional, autorizou o garimpo em uma área de quase dez mil hectares, a menos de oito quilômetros da fronteira com a reserva.
Em setembro de 2020, na ONU, Bolsonaro culpou os indígenas pelas queimadas na Amazônia. Mas a pressão de órgãos internacionais a respeito da questão indígena no Brasil se tornou constante e questionamentos da ONU receberam respostas que fogem à realidade. Em 27 de julho de 2021, o governo brasileiro respondeu com um relato, sem detalhes, de “operações exitosas” contra garimpeiros.
No ano passado, parlamentares aprovaram urgência para a votação do projeto de lei 191/2020, que autoriza o garimpo em terras indígenas, uma proposta que o Ministério Público Federal havia considerado inconstitucional. Quando anunciou o projeto, ainda em 2019, Bolsonaro disse a lideranças indígenas: “em Roraima tem R$ 3 trilhões embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”.
O governo fez uma distribuição inicial de quatro toneladas de cestas-básicas com aviões e helicópteros da FAB. A vice-presidente da comissão da União Europeia, Frans Timmermans, anunciou um repasse de 500 mil euros com fins de ajuda humanitária. Após decretar emergência no território, o governo Lula promoveu 38 exonerações e cinco dispensas na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). No total, até a última quarta (25), 54 servidores foram afastados de cargos ligados à saúde e à assistência aos povos indígenas.
Os Yanomamis são considerados um tesouro nacional do Brasil. Sua cultura exibe características exuberantes e suas comunidades têm traços únicos, devido ao pouco contato de seus integrantes com outros povos até poucas décadas atrás. Em 1992, foi demarcada a Terra do Povo Yanomami, cerca de dez milhões de hectares em Roraima, entrando pela fronteira com Venezuela e Amazonas. Apresentava então 370 aldeias e 30 mil indígenas vivendo isolados, com difícil acesso, mas já com alguma intervenção de fora. Nos últimos anos, a invasão do território chegou a 20 mil garimpeiros, com equipamento e logística, apoiados por organizações criminosas na região.
Apoio ao garimpo
De 2018 a 2021, a área de garimpo na terra Yanomami cresceu de 1.200 para 3.272 hectares. Segundo Ana Carolina Bragança, procuradora da República no Amazonas, que já trabalhou em Roraima e no Mato Grosso, vários fatores dificultam o combate ao garimpo. “Não é necessariamente financeiro o apoio político nessas regiões. Se um político local defender a regularização do garimpo, isso já tem um efeito social de incentivo.” Segundo ela, a participação da extração ilegal na economia local aproxima a elite política dos garimpeiros. “Tem muita gente nisso, e muita gente quer dizer muito voto.” Ela destaca que é preciso levar em consideração a incorporação do ouro no mercado. “Se tem quem extrai, tem quem compra. É fácil regularizar ouro de origem ilegal porque a fiscalização é muito falha.”
Em abril de 2022, relatório da Associação Hutukara contabilizou que garimpeiros haviam tomado postos de saúde indígena, numa ação que teria deixado um quinto dos 30 mil Yanomamis sem nenhuma assistência. Somente a Hutukara enviou 21 ofícios a autoridades competentes (Exército, Ministério Público, Funai e Polícia Federal) nos últimos dois anos, denunciando atrocidades e crimes de garimpeiros, sem que nenhuma providência efetiva tenha sido tomada. Segundo o Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), cinco dos 78 postos de saúde do território ficam em áreas invadidas e foram fechados por garimpeiros.
Em novembro de 2021, garimpeiros tomaram e fecharam uma UBSI (Unidade Básica de Saúde Indígena) em Homoxi, impedindo pouso de missões de saúde e ameaçando a empresa que conduzia os voos na região. Em maio de 2022, a Justiça Federal de Roraima determinou o uso da Força Nacional de Segurança Pública para garantir a reabertura da unidade e retomar o atendimento à população. A decisão também determinou a retirada dos garimpeiros que invadiram a terra dos Yanomamis. O juiz federal Felipe Bouzada Viana incluiu no texto de sua decisão a expressão “risco de genocídio”. O governo Bolsonaro não cumpriu nenhuma das decisões judiciais que determinavam a retirada dos invasores.
A unidade foi incendiada pelos garimpeiros em dezembro, último mês da gestão Bolsonaro. O Ministério Público Federal em Roraima lista 26 investigações de casos de violência contra povos indígenas. O de maior repercussão foi registrado em abril do ano passado, na comunidade Aracaçá, quando uma menina de 12 anos teria sido estuprada e morta por garimpeiros. Segundo relatos, seu corpo foi jogado no rio.
Avanço da malária
A crise humanitária tem como principal mazela a desnutrição e as infecções respiratórias em cinco mil crianças. Do primeiro dia do ano até a última segunda-feira (23), 11.530 novos casos de malária foram confirmados no território. O número pode ser bem maior devido à dificuldade de notificações de óbitos nas comunidades indígenas. No domingo (22), uma mulher morreu de desnutrição depois de ter sua foto compartilhada nas redes. O avanço da malária também carrega outro efeito nocivo da ação do governo. A distribuição nacional de cloroquina durante a pandemia de Covid-19, apesar desse remédio originalmente indicado para malária não ter efeito comprovado contra o coronavírus, teria comprometido a entrega de kits contra a doença aos indígenas.
“Os adultos não têm mais força para abrir uma roça e plantar. Também não há mais peixe e camarão para pescar, porque os garimpeiros estão destruindo os rios. Também quase não tem mais proteína, porque o barulho das máquinas no garimpo faz as caças fugirem para longe”, disse Junior Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami.
O secretário de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe Tapeba, definiu as ações de atendimento ao povo Yanomami desde a semana passada como “uma operação de guerra”. “Fizemos o resgate de pelo menos 16 pacientes com quadro de desnutrição muito avançada, isso apenas em uma comunidade. É uma operação de guerra, uma grande área do território está ocupada por garimpeiros armados.” Foi iniciada na terça (24) a construção de um hospital de campanha em Boa Vista. Tapeba propôs ao Ministério da Saúde a implantação de um outro hospital de campanha dentro da reserva, para abrigar também cozinha comunitária.
Segundo Tapeba, equipes do Ministério da Saúde fizeram uma operação emergencial entre os dias 16 e 23 de janeiro. “Nós acreditamos que mais de mil indígenas foram resgatados para não morrer nessses nesses últimos dias”, afirmou. Em uma semana, o único hospital infantil do estado, em Boa Vista, recebeu 29 crianças, totalizando 47 Yanomamis de até 13 anos internados na instituição.
Mandante do crime
Outro episódio ligado à violência na Amazônia teve desdobramentos nesta semana. Preso em julho de 2022 sob acusação de uso de documento falso e suspeita de envolvimento em pesca ilegal no Vale do Javari, no Amazonas, Ruben Dario da Silva Villar, o traficante “Colômbia”, foi liberado em outubro depois de pagar fiança de R$ 15 mil. Mas voltou para a cadeia em dezembro, “por descumprir condições impostas pela Justiça para a liberdade provisória”. Na segunda (23), foi apresentado pela Polícia Federal como mandante do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho de 2022. Foi indiciado.
De acordo com a PF, além de fornecer munição e embarcações para o crime, há ligação telefônica de “Colômbia” para suspeitos na véspera, e várias outras para um dos criminosos no mesmo dia das mortes. Também estão presos Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado” (com advogado pago por “Colômbia”) e Jefferson da Silva Lima, que confessaram ter atirado em Bruno e Dom; Oseney da Costa Oliveira, irmão de Amarildo e que nega participação no crime, e mais um irmão, Edvaldo, indiciado por participação nas mortes.
*Estagiária sob supervisão de Thales de Menezes
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