Foi uma carnificina deliberada. Típica dos mais abomináveis genocídios. Aldeias inteiras à mercê do crime organizado. Por ação e omissão, o governo Bolsonaro colocou em ameaça sistemática o povo Yanomami, que está vivendo agora uma tragédia sem precedentes, morrendo pela fome e por doenças em um contexto de ataques ilegais de garimpeiros que foram avançando, sem controle, floresta adentro, destruindo tudo que viam pela frente – os indígenas, inclusive. Na prática, os agentes invasores das terras demarcadas buscaram o extermínio sistemático, recorrendo às formas mais torpes possíveis. Os relatos que chegam da região são estarrecedores. O desespero de crianças esquálidas sem ter o que comer, a falta de remédios, destruição de postos médicos, o aliciamento covarde por drogas e até estupros e assassinatos por afogamento chocam o País e o mundo. Os exploradores barbarizaram ao arrepio da Lei.
No governo Bolsonaro, cerca de 20 mil garimpeiros dominaram a população de 28 mil Yanomamis registrados. Caos e desespero viraram uma constante. O Ministério Público Federal está de posse de áudios que demonstram o drama local. O absurdo é reforçado pela lembrança de que o governo Bolsonaro promoveu a distribuição de cloroquina (medicamento para a malária, que vem vitimando essa população) no tratamento ineficaz da Covid-19, durante a pandemia, enquanto negava e não destinava os mesmos remédios aos centros de saúde que tanto necessitavam para o socorro nos casos de maleita. O ministro da Justiça, Flávio Dino, denunciou os “indícios fortíssimos de genocídio”. Em Roraima, muitos dos habitantes indígenas, idosos, adultos e bebês, estão pele e osso, a lembrar de maneira terrificante os presos de outrora em campos de concentração nazista.
A violação aberta e escancarada dos direitos mais elementares desses brasileiros constitui uma vergonha nacional. Invasores e seus mandantes, com o beneplácito e descaso das autoridades constituídas, contaminaram reservas com seus mercúrios, afogaram crianças com as suas dragas e perseguiram abertamente os Yanomamis como animais de caça. O horror está estampado ali. A terra devastada. As ocupações ilegais mais que triplicaram, segundo os recentes registros. De uma forma deplorável, o governo Bolsonaro concedeu aval inédito para a garimpagem. A omissão nas denúncias de operações ilegais era uma constante.
A Funai informa que ficou absolutamente sem recursos para oferecer o mínimo de proteção devida naqueles territórios. Sob Bolsonaro, tudo havia sido cortado.
A então ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, foi capaz – ela mesma – de vetar a expansão de leitos hospitalares e de água potável aos indígenas em 2020, em plena pandemia. O veto abrangia também o envio de material de limpeza e de higiene pessoal, bem como o de equipamentos sanitários e ventiladores pulmonares. É de assombrar tamanha violência por parte de alguém que, na teoria, deveria justamente zelar pela segurança de tais povos. Fato indiscutível: a crise humanitária, hoje em evidência, se estabeleceu pelo abandono constante da autoridade constituída. Os precursores dessa barbárie deveriam estar na cadeia. O espantoso cerco de garimpeiros que atearam fogo nas áreas demarcadas e impediram até o transporte de pacientes graves e de profissionais para atender à comunidade local se faz algo monstruoso e inacreditável.
No momento, a situação encontrada ali é de guerra. Falta o essencial. De alimentos a medicamentos básicos. O governo Lula informa ter resgatado ao menos mil Yanomamis nos últimos dias no limite da morte. A incidência de verminoses, infecções respiratórias, desnutrição e outras ocorrências – que seriam facilmente tratáveis, mas que foram desconsideradas nos últimos anos – compõem o quadro dramático da desassistência criminosa. Há denúncias de que os recursos destinados à saúde indígena foram repassados para organizações evangélicas simpáticas ao capitão. Uma delas teria chegado a receber mais de R$ 870 milhões dessa verba carimbada. A sociedade global, que passou a cobrar respostas urgentes ao tomar ciência do quadro, mostra-se mais uma vez estarrecida com as notícias que chegam do Brasil após a recente intentona extremista dos simpatizantes do ex-presidente. Dessa vez, governos estrangeiros e organizações multilaterais classificam como “assassinatos” os episódios revelados.
Descaradamente, em determinado momento, quando consultado pela ONU sobre a situação daquela etnia que estava sucumbindo à desnutrição, o governo Bolsonaro chegou a dizer que os Yanomamis vinham sendo atendidos. Escreveu cartas nesse sentido para as mais diversificadas entidades internacionais. Mentia, descaradamente, algo que se tornou praxe na equipe e nas versões do capitão. A realidade estampada venceu a narrativa falaciosa. De verdade, como saldo dos quatro anos terrificantes de desprezo à causa indígena, ao menos 570 crianças morreram de fome e 11 mil foram acometidas pela malária. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos das Nações Unidas, ainda durante o governo Bolsonaro, havia emitido nota exigindo providências para os relatos de problemas na região. Em vão. O mandatário, decerto, não queria dar. Ele, em pessoa, fez visitas a garimpos ilegais, concedendo uma espécie de aval informal à atividade.
O mesmo fez o seu então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que deixou sinais claros de conivência com a atividade dos madeireiros e garimpeiros ilícitos. O general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, autorizou a exploração de ouro em quase dez mil hectares vizinhos de aldeias Yanomamis. À mercê de políticas nefastas, vulneráveis, em condições degradantes que beiravam a calamidade, e sem qualquer assistência, os indígenas morreram. Parecia estar tudo arquitetado para o desastre que hoje se enxerga. Uma catástrofe anunciada. O ex-presidente e sua corja tentam agora se livrar das acusações e falam em “dados fantasiosos”. Mas as imagens cruéis, degradantes, corroboram o retrato do abandono. O favorecimento a toda sorte de usurpadores da terra foi uma constante na gestão pretérita e precisa ser apurado à luz da Lei. A responsabilidade da gestão bolsonarista na hecatombe Yanomami vai muito além da omissão.
Ela incentivou, direcionou estímulos, desmontou redes de proteção e deixou de agir diante dos crimes cometidos. O médico tropicalista da Fundação Oswaldo Cruz, André Siqueira, descreveu o quadro como “a pior situação humanitária que já vi”. A gênese de toda a irregularidade decorre da prepotência, ideologia tacanha, dos critérios tortos e deliberado descarte dos mecanismos de supervisão institucional que foram praticados por ordem direta do Planalto. Os técnicos responsáveis pela situação, constituídos e instruídos pela administração Bolsonaro, eram agentes sem nenhuma experiência na saúde pública ou em tratamento de indígenas. Seu único elo era com a política partidária. Receita para o flagelo que se verificou. O holocausto indígena é uma triste marca que mais uma vez mancha a nossa história. E a condenação dos culpados precisa ser exemplar.
Carlos José Marques é diretor editorial da Editora Três
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