quarta-feira, 31 de maio de 2023

IMPROVISOS E INDEFINIÇÕES NO CAMINHO DO CARRO POPULAR

Editorial Valor Econômico

Incrível que um governo que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento tente ressuscitar uma má ideia em circunstâncias tão inoportunas

O programa de incentivo ao carro popular foi ajeitado às pressas, sabe-se lá com que finalidade, e parece ter nascido morto. Ele foi concebido sem que se definam contrapartidas de receitas para a redução de impostos, que também não foram definidos - os mais cotados são IPI e PIS-Cofins, mas o IOF no crédito pode ser incluído. Mesmo com os descontos nos preços, os automóveis populares, ainda que passem a custar um pouco abaixo dos R$ 60 mil, continuarão inacessíveis. Eles seguirão três condicionantes, o que torna impossível estimar seu custo a priori. A conta dos especialistas varia de R$ 2 bilhões a R$ 8 bilhões, enquanto a do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fala em menos de R$ 1 bilhão. Os detalhes do plano, anunciado na semana passada, serão divulgados em 15 dias, mais um caso de uma ideia (ruim) anunciada, correndo depois atrás do dinheiro, que não se sabe se existe.

Em princípio, dentro da agenda passadista de Lula, havia a impressão de que se tratava de incentivar o carro popular a curto e médio prazos, aumentando as vendas hoje deprimidas da indústria automobilística e, com isso, as de toda sua enorme cadeia de fornecedores e de serviços. Se fosse isso já seria um grande equívoco, mas pelo visto, o erro será de curta duração. No dia em que Lula anunciou seu plano, Haddad mencionou que algumas medidas teriam de ficar para o ano que vem, por motivos óbvios, ou seja, porque o ministro da Fazenda corre contra o tempo para arrumar mais recursos e, assim, manter de pé o arcabouço fiscal recém aprovado pela Câmara, que depende sobretudo de aumento da arrecadação.

No dia seguinte, em entrevista à GloboNews, Fernando Haddad disse que o programa do carro popular terá duração de uns “três ou quatro meses”, enquanto representantes da indústria contavam com pelo menos um ano, prazo no qual acrescentariam vendas de 200 mil a 300 mil veículos. As intenções do governo tornaram-se ainda mais obscuras e incongruentes quando o ministro disse que o pouco tempo do incentivo era uma resposta imediata para desafogar os lotados pátios das montadoras, ou dar fluxo a estoques excessivos. É um mistério por que o Planalto está preocupado com o excesso de estoques apenas das montadoras quando sabe que outros setores da economia estão com o mesmo problema.

Haddad mencionou o crédito restritivo e os juros altos para explicar que, com a queda do custo do dinheiro e a retomada da economia, que ele estima para já, a redução de impostos não seria mais necessária. Ainda que assim fosse, há mais pontos nebulosos. Os descontos, como foi divulgado, variarão de 1,5% a 10,96%, uma gradação que depende do grau de nacionalização do veículo, de sua eficiência energética e do preço. No entanto, nenhum dos carros que poderiam ser considerados de “entrada” no mercado, mesmo com o abatimento máximo, custaria menos de R$ 61,4 mil (Folha de S. Paulo, 26 de maio).

É possível que sejam então fabricados novos carros, ainda mais simples, que ganharão o incentivo da redução de impostos. Então isso nada teria a ver com os estoques existentes, e daria um empurrão de um trimestre na produção, ou um pouco mais, para ser interrompido em seguida. As montadoras, no entanto, por várias razões, desembarcaram do carro popular há um bom tempo. Várias argumentaram que ele não era lucrativo, ou que suas margens de ganho eram bastante reduzidas. Concentraram-se em modelos mais caros.

Entre o auge do carro popular, em 2013, quando foram vendidos 3,57 milhões de veículos (total, não apenas dos modelos mais simples) e agora há um milhão de veículos a menos de vendas. Embaladas pelo avanço da demanda puxada pelos populares, as montadoras elevaram sua capacidade de produção para 4,5 milhões de unidades. A ociosidade hoje ronda os 50%, fábricas já vêm sendo fechadas e as indústrias tentam se adequar ao mercado que, para complicar um problema já complexo, está em completa transformação no mundo todo, com a chegada do carro elétrico, direção autônoma etc. Não foi à toa que, seja qual for o programa que finalmente sairá, as montadoras não se comprometeram com a manutenção dos empregos.

Entre o período de pico e o fim do carro popular, a economia mudou. Houve a maior recessão em quase 100 anos, perda significativa de renda da população, alta do desemprego e um aumento do endividamento das famílias, que ainda não parou de crescer. As chances de que a tentativa de impulsionar artificialmente a demanda dê errado são enormes. Além disso, o mundo caminha em outra direção, de revolucionar a mobilidade urbana, incentivando a redução do uso de transporte individual e ampliando a dos coletivos, eletrificados, com maior tecnologia, e, principalmente, minimizando ou, de preferência, dispensando o uso de combustíveis fósseis.

Parece incrível que um governo que lançou um programa que se apoia no aumento de receitas e que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento seja capaz de ressuscitar uma má ideia e, ainda mais, em circunstâncias tão inoportunas.

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