O trabalho avulso remunerado pela via dos aplicativos é uma realidade, porém não absorve o exército de desempregados e subempregados formado a partir da redução de seus postos de trabalho
O pior já passou, com o resgate da democracia e das políticas sociais após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ninguém se iluda: ainda vivemos tempos sombrios, de radicalização e totalitarismo, em contraposição à amizade e ao humanismo, como diria a filósofa judia alemã Hanna Arendt. Como há um século, o fenômeno nos remete ao fascismo e à guerra, tendo novamente como palco central a Europa. Novo é o contexto em que isso ocorre, de mudanças sem precedentes, impulsionadas pela tecnologia digital e pela inteligência artificial, que às vezes parecem opor o trabalho e o progresso à centralidade da democracia, o que é uma das raízes do totalitarismo.
Por óbvio, o pano de fundo dessas reflexões é o Primeiro de Maio, comemorado ontem por trabalhadores de todo o mundo. No Brasil, proposta pelas centrais sindicais, a relação entre o trabalho e as redes sociais migrou da agenda sindical para a de governo, às vésperas da votação na Câmara do substitutivo do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) que regulamenta a atuação das big techs, projeto vulgarmente chamado de Lei das Fake News, prevista para hoje. O presidente Lula criou um grupo de trabalho dentro do governo para discutir propostas de regulamentação do trabalho por aplicativos e de um plano nacional de igualdade salarial entre mulheres e homens.
O petista acolheu parte das reivindicações das centrais sindicais, no rastro de um pronunciamento no qual destacou seu compromisso com o mundo do trabalho: “Não importa a profissão ou o local de trabalho. O importante é que vocês são os responsáveis pela geração da riqueza do Brasil”.
Primeiro, retomar a política de valorização do salário-mínimo, com a mesma regra exitosa da política anterior, que promoveu um aumento real de mais de 78% desde 2004 e beneficiou cerca de 54 milhões de trabalhadores e aposentados (reajuste anual pelo INPC mais o aumento real correspondente à variação anual do PIB), com piso mínimo de aumento real anual de 2,4%.
Segundo, regulamentar as relações de trabalho em aplicativos e plataformas que ocupam espaços em múltiplas atividades econômicas, a começar pelo transporte de pessoas e mercadorias feitas por carros, motos e bicicletas. Para as centrais, esses trabalhadores devem ter direitos e proteções.
Ficaram de fora da agenda a atualização do sistema sindical e a revisão da reforma trabalhista, a pretexto de combater o trabalho análogo à escravidão, a terceirização e outras formas de precarização do trabalho. As centrais também pleiteiam um sistema autônomo para regular a organização sindical de trabalhadores e empresas, o sistema negocial e o seu custeio.
Novos paradigmas
No Brasil, a questão do trabalho tem um sentido especial. Muitas vezes é tratada como caso de polícia. O paradigma escravista, com sua violência estrutural, impregnou a estrutura social de tal forma que a discussão sobre as relações de trabalho se mantém como um conflito entre as elites políticas e a grande massa da população. Daí decorre na prática o desrespeito e a redução dos direitos sociais.
Não passamos pela construção de “uma ética do trabalho”, como assinalou o Antônio Cândido, em sua Dialética da malandragem. A péssima remuneração dos professores, cujo trabalho é considerado “vocação”, é um bom exemplo. Outro, em contrapartida, as altas remunerações do setor público desproporcionais aos serviços prestados à sociedade. O trabalho intelectual é desvalorizado, não apenas o trabalho manual.
Os aplicativos estão revolucionando as relações de trabalho no Brasil, mas o cenário é completamente diferente dos países desenvolvidos. A inserção social pela via do emprego já não é a única. O trabalho avulso remunerado pela via dos aplicativos é uma realidade, porém não absorve o exército de desempregados e subempregados formado a partir da extinção de profissões ou redução de seus postos de trabalho. O “chão de fábrica” como locus do trabalho produtivo é cada vez mais minoritário. Impossível fazer essa roda voltar para trás, mas a questão social que resulta dessa realidade está escancarada.
De acordo com o Banco Mundial, 64% da riqueza mundial advêm do conhecimento. Tais mudanças ocasionam um profundo impacto na nossa economia e na vida de milhões de brasileiros. É nesse contexto que o debate sobre a chamada Lei das Fake News impacta o mundo do trabalho. O desenvolvimento das redes sociais digitais, que são instrumentos de comunicação e formação de laços sociais, também é um mecanismo de formação de capital e apropriação do trabalho. O capital social criado pelas redes é um bem comum, que deve ser remunerado. Também é produto do nosso trabalho. E as redes sociais são parte e não eixo político da democracia
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