Lições não se resumem aos mecanismos de formar maioria: dizem respeito também à inclinação ideológica divergente entre governo e Congresso
Há muitos ensinamentos a tirar da derrota sofrida pelo governo na derrubada de trechos de dois decretos assinados por Lula para alterar o Marco do Saneamento Básico. O erro será ficar na mais imediata e rasa das leituras: que falta interlocução política para compor a base, e o caminho para resolver isso é só a liberação de emendas parlamentares. Em partes, portanto.
Começando pela superfície. Arthur Lira havia cantado a bola do perigo que rondava o Executivo quando houvesse uma votação que testasse se existe mesmo uma base aliada com esse nome.
Para o presidente da Câmara, o modelo de montagem do governo, de concessão de ministérios a partidos para que eles garantam os votos nas duas Casas do Congresso, está vencido. O caminho seria uma espécie de orçamento secreto 2.0, em que um esquema bem montado de emendas garantiria o apoio aos projetos do governo.
Sim, é necessário criar mecanismos eficazes para que o presidente e o palácio não sejam surpreendidos a cada abertura de contagem do painel eletrônico de votações da Câmara e do Senado. Também é verdade que Lira tem se mostrado disposto a garantir esses votos — e ele, hoje, é capaz disso muito mais que os ministros palacianos e os representantes dos partidos na Esplanada —, desde que esse mecanismo que ele defende seja azeitado.
Pode funcionar de uma maneira geral e nos casos menos polêmicos. Mas o nó da governabilidade de Lula é bem mais cego que esse, e até aqui a questão tem passado ao largo das cobranças do presidente, das atenções de seus auxiliares e de uma reflexão mais madura e realista dos partidos que integram a coalizão governista.
E este nó é que o eleitor escolheu um presidente de esquerda, mas colocou no Congresso uma maioria de centro-direita. Essas duas forças— ambas eleitas democraticamente, representando anseios legítimos da sociedade — precisam encontrar uma maneira de fazer passar os projetos que a população escolheu ao chancelar Lula no lugar de Bolsonaro, mas sem passar por cima do que o Congresso de perfil mais conservador já decidiu em questões sobretudo econômicas.
Lula parece alheio de forma preocupante a essa questão crucial para o sucesso de seu governo. Insistir em agendas como ajuda à Argentina ou rasgar o novo ensino médio para atender a corporações resultará em derrotas como a sofrida com uma revisão por decreto — portanto antidemocrática, depois de tanta crítica à mania de Bolsonaro de governar por essa modalidade — do Marco do Saneamento para atender a pleitos de empresas estaduais.
Não houve uma alma viva a alertar o governo sobre o fato de que seria um desgaste desnecessário, se o Congresso aprovasse o marco do saneamento, tentar lhe dar um passa-moleque?
Agora, diante da derrota numa semana em que o governo só não perdeu de 7 x 0 pela revelação do esquema de fraude de Bolsonaro e sua trupe nos certificados de vacinação da Covid-19, os líderes aliados tentam minimizar a importância das mudanças na Lei do Saneamento e dizer que o importante mesmo é o marco fiscal.
Se não era importante, de novo: por que então mexer nisso por decreto? E, se o que vale mesmo para efeito de auferir o tamanho da base é o marco fiscal, convém arregaçar as mangas, compreender para onde o vento sopra e não correr riscos de nova derrota.
Se PT e demais siglas de esquerda tentarem esticar a corda do arcabouço fiscal para afrouxá-lo, correm o risco de ver aprovada uma proposta mais dura que a de Fernando Haddad. Aliás, uma impressão generalizada na Câmara foi que Haddad não quis se desgastar mais ainda com seu partido e deixou alguns parafusos para o relator do Centrão apertar. E ele deverá fazer isso, aliás, em benefício da eficácia da proposta, para ganhar a confiança da tal centro-direita que Lula precisa atrair, mas que parece disposto, até aqui, apenas a repelir e a empurrar para o colo do combalido, mas não morto, Bolsonaro.
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