quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A CAATINGA VAI VIRAR TERROIR

Lianne Ceará, PIAUÍ

O sonho de um produtor de espumante de caju

Termo francês caro à enologia, terroir define mais do que apenas a terra onde as vinhas foram plantadas: engloba a geologia, o clima, a história e a cultura do local. A rigor, só os bons vinhos têm terroir, embora se reivindique tal privilégio também para bebidas como o uísque. O gerente de produto Vicente Monteiro, um cearense de 43 anos, ambiciona conquistar a distinção para um fruto típico de seu estado: o caju. Monteiro é o fundador do projeto Alquimista da Caatinga, que se dedica à produção de bebidas enraizadas na cultura regional.

Seu primeiro lançamento, em 2020, foi um espumante de caju chamado Cauina. O nome faz referência à cultura indígena: vem de cauim, bebida alcoólica obtida da fermentação de mandioca ou de cereais misturados ao suco de fruta pelos povos tupis-guaranis. A memória histórica se faz presente no rótulo do Cauina, assinado pelo artista Wilson Neto e inspirado em uma gravura de 1558 na qual o frade franciscano e explorador francês André Thevet (1502-90) retratou a colheita do caju feita por indígenas.

A dedicação a cervejas e espumantes representou um desafio pessoal para Monteiro: em sua casa, as bebidas estavam interditadas, por causa do histórico de alcoolismo de seu pai. “Eu tinha aprendido que o álcool era apenas um mal que existia no mundo e que era necessário evitar”, ele conta. “Com as minhas pesquisas, vi que o álcool faz parte de todas as culturas humanas.”

Monteiro chegou a estudar psicologia na Universidade de Fortaleza, mas largou o curso para se dedicar aos estudos etílicos. Quando seu pai morreu, em 2016, Monteiro vendeu o carro para estudar cervejaria na Alemanha. O dinheiro, porém, não foi suficiente. Ele permaneceu no Ceará e investiu na produção de uma cerveja artesanal que incorporava frutas nativas entre os ingredientes.

Em 2019, Monteiro apresentou dois projetos de pesquisa em um edital do Laboratório da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, em Fortaleza. A proposta de criar uma cerveja com mandacaru nativo do litoral cearense não foi aceita, mas a escola aprovou a busca por leveduras (fungos que promovem a fermentação) naturais da Caatinga aptos a serem usados na fabricação de bebidas alcoólicas, pães e outros produtos. Ao longo de sete meses, Monteiro coletou as leveduras com a ajuda de mestres da mata e especialistas do laboratório.

Depois dessa pesquisa, ele montou o projeto Alquimista da Caatinga. Sua ideia original era fermentar o espumante de caju com uma levedura da Caatinga, o que ainda não foi possível. “Não tivemos investimento e tecnologia para isso”, diz. Na produção do Cauina foi preciso usar um outro tipo de levedura, já consagrado na indústria tradicional de vinhos. O Alquimista da Caatinga hoje produz 3,5 mil garrafas por ano desse espumante de caju, que é comercializado em bares e restaurantes de várias regiões do país.

Ofarmacêutico e escritor baiano Rodolfo Teófilo, radicado no Ceará, registrou na Junta Comercial, no final do século XIX, uma bebida que se incorporou à cultura do Nordeste e dá título até mesmo a uma canção de Caetano Veloso: a cajuína. Elaborada com a técnica francesa de pasteurização, a bebida foi registrada para coibir imitações (que, apesar disso, foram feitas). Com adição de gás, a cajuína virou refrigerante e, embora tenha sido criada no Ceará por um baiano, acabou associada ao Piauí.

O Ceará ainda é o maior produtor de castanha-de-caju do Brasil, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Junto da pequena castanha – que é o verdadeiro fruto –, encontra-se o chamado pedúnculo ou pseudofruto (o próprio caju), que costuma ser descartado, mas é de onde se extrai o suco utilizado na produção da cajuína e do Cauina. De acordo com estimativa da Embrapa, o Brasil desperdiça anualmente cerca de 80% do caju, cuja produção total no país chegou a 1,1 milhão de toneladas em 2021.

“Além de estudar sobre a cajucultura, comecei a consumir o caju de fato e figurativamente”, conta Monteiro. De fato, porque, durante a elaboração do espumante, ele passou a comer a polpa fibrosa do pseudofruto, evitando o desperdício. “Lembrei da minha infância, quando a gente comia no café da manhã, e voltei a fazer a mesma coisa.” O tal consumo figurativo se deu pela via musical. “Relembrei canções que citavam o fruto, como o samba Cajueiro Velho, de João Carlos, consagrado na voz de Alcione, e o baião de mesmo nome gravado por Luiz Gonzaga.” O Alquimista da Caatinga está iniciando agora os testes para uma nova bebida feita de outra planta nativa, a jurema.

No futuro, Monteiro quer que seu espumante seja feito com tecnologia 100% nordestina e que cada produtor tenha seu próprio terroir. Ele aspira colocar suas criações “no mais alto lugar de requinte do mundo das bebidas”. “É onde eu acho que as plantas da Caatinga merecem estar”, diz.

Monteiro pontua que, na Índia, uma bebida feita de coco ou caju já tem reconhecimento e indicação geográfica. “E o caju não é nativo da Índia. É nativo do Brasil, mas é a Índia que está dando mais atenção a ele.”

Em 2014, a produção e as práticas associadas à cajuína do Piauí foram oficialmente reconhecidas como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas, para se comprovar o terroir de uma bebida – um atestado de sua singularidade geográfica e cultural –, exige-se bem mais. “A busca desse terroir não é um capricho”, diz Monteiro. Trata-se, para ele, de associar um produto ao povo que o criou e à história desse povo. Reconhecer o terroir é um modo de preservar a memória coletiva do apagamento.

Lianne Ceará

Jornalista e autora de Memórias Interrompidas: testemunhos do sertão que virou mar. Foi estagiária de jornalismo na piauí e também já contribuiu com Universa Uol, G1 Ceará e Diário do Nordeste.

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