segunda-feira, 30 de outubro de 2023

ADAM SMITH, TRIBUTAÇÃO E CASHBACK

Eduardo Fleury*, Valor Econômico

O sentimento de injustiça decorrente da cobrança de impostos fez com que a “ciência” da tributação evoluísse razoavelmente ao longo da história

Consta no Evangelho de São Marcos que Jesus se reuniu à mesa com cobradores de impostos, entre eles Mateus, que viria a se tornar seu discípulo. Ouvindo reclamação dos escribas por se reunir com este “tipo” de pessoa, Jesus respondeu: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores”.

Justiça e tributos parecem não caber na mesma frase (ou mesa) desde os tempos de Cristo. A fim de esclarecer melhor a posição de Jesus na questão tributária, cabe citar o próprio São Mateus. Jesus quando questionado se era lícito pagar “tributo a César, ou não”, respondeu prontamente: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

O sentimento de injustiça decorrente da cobrança de impostos fez com que a “ciência” da tributação evoluísse razoavelmente ao longo da história. Adam Smith há quase 250 anos já definia em seu livro “A Riqueza das Nações” (1776) princípios de tributação que são, ou deveriam ser, a base para um sistema tributário justo e eficiente. É sobre estes princípios que gostaria de fazer comentários e mostrar o quanto são importantes para o Brasil no momento em que estamos discutindo a reforma no sistema de tributação.

Adam Smith analisa os tipos de impostos existentes à época. No entanto, ele dá muita atenção aos princípios tributários que chama de máximas. O primeiro deles estipula que a contribuição (tributo) para custear o governo deve ser, no máximo possível, proporcional às habilidades do contribuinte. Quase 200 anos depois (1976) o prêmio Nobel J.E. Stiglitz e A.B. Atkinson ainda buscavam uma forma de medir as habilidades a fim de determinar a tributação ótima. Adam Smith sugeriu medir a habilidade a partir da a receita obtida sobre a “proteção daquele estado”. Temos este princípio refletido no texto da Constituição Federal onde os “os impostos... serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Adam Smith conclui que a observação ou não deste princípio seria a diferença entre equidade ou iniquidade do sistema tributário.

De quebra, o autor institui o princípio da territorialidade quando diz que o Estado tem direito de tributar o resultado daquilo obtido sobre a sua “proteção”.

Adam Smith diz que o tributo deve ser cobrado no tempo e na forma que seja a mais conveniente para o contribuinte pagar. Assim, contribuinte deveria gastar pouco tempo para pagar e declarar o tributo. Tão básico, mas ainda não aprendemos

A próxima máxima proclamada pelo autor é que o imposto deve ser certo e não arbitrário. Isto é, a regra de cobrança deve ser previamente estabelecida e a cobrança do imposto será feita na forma e no tempo determinado. Para aqueles que acham que a definição de tributo pelo nosso Código Tributário (CTN) foi algo pensado profundamente pelos seus autores, digo que podem estar enganados. Bastava passar os olhos nos dizeres de Adam Smith para definir tributo como uma prestação compulsória instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (regrada), como consta no CTN.

O fundador da ciência econômica acrescenta que a cobrança deve ser clara e simples, em outras palavras, nada de obscurantismo tributário que gere incertezas tributárias (e contencioso). Fazendo um julgamento de valor ele afirma que mesmo um grau considerável de desigualdade na tributação é melhor do que um pequeno grau de incerteza. Para ele, a incerteza e por consequência a arbitrariedade é o pior dos males.

O terceiro enunciado de Adam Smith diz que o tributo deve ser cobrado no tempo e na forma que seja a mais conveniente para o contribuinte pagar. Seguindo este princípio, o contribuinte deveria gastar pouco tempo para pagar e declarar o tributo. O compliance tributário deve ser o menor possível para facilitar a vida do contribuinte. Tão básico, mas ainda não aprendemos.

Interessante é que no mesmo enunciado, o autor afirma que a cobrança do imposto sobre o consumo é mais conveniente para o consumidor-contribuinte. A ideia por trás desta afirmação é a de que ao contrário de tributar lucros e salários, que já reduz imediatamente o recurso na mão do indivíduo, o tributo sobre o consumo só é pago na medida que a pessoa decide comprar. Aqui podemos sentir um “cheiro” da ideia de que tributo sobre o consumo não influencia a decisão de poupar do indivíduo.

Adam Smith ainda adiciona um quarto princípio onde ele se preocupa com o processo de arrecadação de tributos. O dinheiro que é retirado do bolso do contribuinte deve ser o mais próximo possível daquele que entra nos cofres públicos. Uma máquina arrecadadora cara levaria a um aumento do imposto cobrado para cobrir os custos de cobrança.

A cobrança de multas sobre aqueles que tentam sonegar pode levar a empresa a ruína pondo um fim ao benefício econômico gerado por aquele empreendimento. Em uma forma mais contemporânea de analisar esta afirmação pode nos levar à conclusão de que penalidades elevadas e, muitas vezes, desproporcionais, não são justas e são ineficazes em prevenir infrações. O autor ainda faz uma curiosa afirmação sobre este assunto: a lei tributária, contra qualquer senso comum de justiça, cria a tentação e depois pune aqueles que se rendem a ela.

Falando ainda da administração tributária, Adam Smith passa perto do princípio do sigilo fiscal, ao afirmar que frequentes visitas da fiscalização podem levar a situação vexatória para o contribuinte, o que atrapalharia os negócios.

Além dos princípios básicos da tributação, o autor ao descrever os tipos de impostos existentes acaba tirando conclusões bem atuais e aplicáveis à atual reforma tributária do consumo. Em uma destas passagens Adam Smiths conta que em 1727, na localidade de Montauban na França, o imposto sobre as terras estava sendo cobrado com base em um regime desatualizado e injusto. Segundo a descrição que consta no seu livro “A Riqueza das Nações”, dois distritos eram, pelo sistema antigo, igualmente tributados em mil livres (moeda à época). Porém, considerando a habilidade de pagamento, uma propriedade em um distrito deveria pagar 900 livres e a outra 1.100 livres. A solução encontrada pelo governo foi aplicar a tributação de 1.100 livres no distrito que tinha capacidade de pagamento e transferir 100 para o outro distrito fazendo com que este pagasse efetivamente os 900. Parece que o cashback não é uma novidade na área tributária com estamos alardeando recentemente.

*Eduardo Fleury é advogado e economista, consultor do Banco Mundial, sócio e head da área tributária de FCR Law, Mestre e Doutorando (S.J.D.) em Tributação pela Florida University (EUA), especialista em International Tax Planning pela Leiden University (Holanda), Especialista em Direito Empresarial nos EUA pela Harvard Extension School.

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