Derrotas em pautas históricas no plano federal e estratégia que favorece a direita na oposição são desafios para os progressistas
A esquerda brasileira tem diante de si uma série de contradições e desafios que dizem respeito às reivindicações históricas de seus diferentes grupos e às dificuldades de exercer essa militância perante o governo que ela própria apoia, de Lula, os governos de direita nos estados e as pautas globais.
Não são poucos os temas que colocam para os grupos progressistas a necessidade de, por vezes, calar e aquiescer diante de decisões do governo federal que contrariam compromissos de reparação, equidade e promoção de políticas públicas prometidas na campanha.
A mais recente dessas ocasiões foi o desfecho da novela da indicação para a vaga de Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal. Como esperado e antecipado pela imprensa, Lula indicou um homem para a vaga. Foi Flávio Dino, mas havia outros dois homens brancos cotados. Nunca houve a cogitação de designar uma mulher negra.
Confirmada a expectativa, o protesto ficou bem aquém do que seria qualquer que fosse o presidente que ignorasse solenemente, sem nem se sentir compelido a justificar perante a militância, um compromisso de tal magnitude como promover ao menos uma mínima redução da desigualdade de gênero na mais alta Corte de Justiça do país.
Agora, a aprovação de Dino terá de passar pelo Senado. Uma das negociações de bastidores inclui a concessão de licença para que a Petrobras promova os estudos para explorar petróleo na Margem Equatorial, na foz do Amazonas, pleito caro ao poderoso presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre. O próprio Lula pende para o lado dos que acreditam que se devem promover os estudos, para que depois o governo decida se explorará eventuais jazidas nessa nova fronteira. Como reagirá a militância ambiental se houver essa troca?
Mas não é só nas contendas em seu próprio campo que os grupos da esquerda tradicional encontram dificuldade de se mover, num mundo em que a disputa ideológica com a direita se acirrou e se sofisticou.
A questão da privatização da Sabesp, iniciada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, levou os sindicatos da própria companhia e também do Metrô e da CPTM a empreender, em três ocasiões muito próximas, paralisações que atingiram sobretudo o transporte público, com graves transtornos na vida justamente dos cidadãos mais pobres, que usam esse tipo de serviço.
É inteligente levar uma disputa que deveria ser política e até judicial, travada, portanto, nas urnas (em que prevaleceu a proposta do governador, diga-se), na Justiça e no Legislativo para o dia a dia de quem não tem como prescindir do metrô e do trem para trabalhar e estudar? Isso ajudará a população a ficar contrária à privatização?
Alternância de poder, com a possibilidade de coexistência de um governo de esquerda no plano federal e administrações de direita nos estados, é um dos pilares da democracia. Agir em negação à possibilidade democrática de que um governo eleito tente levar a cabo seu programa de governo é demonstração de incompreensão profunda dessa dinâmica.
No caso de São Paulo, Tarcísio venceu a batalha da comunicação e conseguiu pespegar nos sindicatos a pecha de que sabotam a vida da população em nome de interesses políticos, decididos em assembleias com baixa representatividade. Na luta política, o governador se sentirá mais cacifado, e não menos, para levar adiante as etapas do projeto de privatização, quando a oposição poderia atuar para cobrar transparência do modelo, questionar suas regras e outras ações bem mais eficazes.
Ser ao mesmo tempo situação no território nacional e oposição nos entes federados implica necessariamente cobrança de adoção de dois pesos e duas medidas em temas correlatos. O primeiro ano de volta ao poder não tem sido simples para a esquerda se adequar ao duplo papel.
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