Ao deixar em aberto o esforço fiscal que pretende fazer, o governo insinua que ele também será objeto de barganha política
Ao reunir-se ontem com os líderes e presidentes de partidos da base governista na Câmara dos Deputados, o presidente Lula disse que não quer gastar mais, só não pretende contingenciar - isto é, gastar menos. Entre aumentar ou diminuir despesas encontra-se a meta fiscal. Pelo novo regime, elas crescerão até 2,5% além da inflação (teto), sem que, entretanto, ultrapassem 70% das receitas primárias. Quanto mais perto da zeragem do déficit ela estiver, maior terá de ser a receita em relação aos gastos. Em outras circunstâncias, haveria a possibilidade de cortes dos dispêndios para equilibrar as contas. No regime aprovado, isso só ocorrerá se a meta correr o risco de ser descumprida. É o que o presidente Lula quer evitar, ao desdenhar publicamente da importância do resultado primário. Com isso, o presidente deslocou o pêndulo do esforço político de seu próprio governo e das expectativas dos partidos supostamente aliados no Congresso.
Minoritário no Legislativo, o governo tinha um norte claro em suas relações com o Centrão, indicado pela pauta econômica regida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e baseada no aumento da arrecadação tributária. Ela financiaria dentro de certos limites fixos a expansão de gastos e investimentos, e os investidores refizeram suas expectativas diante da austeridade “possível” no governo atual, um cenário menos ruim do que a gastança irrefreada defendido pela ala dura do PT. Essa premissa alinhava também os líderes do Centrão e colocava algumas restrições a seu apetite de apropriação orçamentária.
Parecia a repetição habitual da forma com que o Executivo conduz a pauta no Congresso, sob o signo da economia, orientando os rumos da votação em direção a seus objetivos expressos. A maneira usual de governar, porém, foi corroída pelo desgaste do PT com os escândalos de corrupção, que o levaram a uma vitória por ínfima margem em relação a Bolsonaro e pelo preenchimento do vácuo por forças fisiológicas do Centrão, que deu um protagonismo ímpar ao Congresso. Esse equilíbrio, escudado no novo regime fiscal, na reforma tributária e nas medidas para aumento das receitas, foi gravemente danificado pela entrevista de Lula, ao dizer que a meta não precisaria ser cumprida e insinuar que isso para ele não tinha importância alguma.
A reação do relator da Lei de Diretrizes Orçamentária, Danilo Forte (União-CE), foi imediata e significativa. Ele disse que o presidente “jogara a toalha” e que o sinal viera de cima para mudar a meta fiscal. O alívio do relator foi sentido pela ala petista do governo, vocalizado com estridência pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e com voz bem baixa pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa.
O presidente Lula gosta de ouvir vozes divergentes em seu governo, como mostrou no passado, e de ser árbitro nas disputas. Ainda assim, na maior parte das vezes, esse era um processo de decisão intramuros, mesmo com os inevitáveis vazamentos. Raras vezes, porém, o presidente desautorizou ao vivo e em cores seu principal ministro em público, colocando um enorme senão nas principais diretrizes que vinham sendo seguidas pelo seu próprio governo. Tudo isso poderia ser resolvido a seu tempo e com uma conversa tranquila com poucos interlocutores. A atitude de Lula foi desastrosa.
Os novos ventos que o Planalto sopra para o Centrão são de que não haverá cortes orçamentários que prejudiquem os acordos de repartição de verbas em emendas e projetos do Congresso. É surpreendente o fato de que o Centrão apertava o cerco ao governo em várias frentes, da ampliação de emendas impositivas à ocupação de cargos na Caixa, Funasa e estatais, mas não a respeito da meta fiscal. Com a barganha, a Câmara acabara de aprovar as mudanças na taxação de fundos offshore e exclusivos, ampliando as receitas pelas quais Haddad se esforçava por obter. Lula pediu ontem aos líderes da base que se esforcem para aprovar os projetos do governo que aumentem as receitas tributárias. O pedido agora, depois de dinamitar o déficit zero, tem outro sentido. Como o aumento de despesas é uma proporção fixa do aumento de receitas, o presidente procura espaço para ampliar gastos. Uma meta de déficit camarada pode limitar o esforço fiscal ao mesmo tempo que impedir seu descumprimento, que acarretaria, no exercício seguinte, uma série de restrições, entre elas a redução da expansão de gastos a 50% das receitas.
A definição da meta terá consequências no resto do mandato. Ao defender o equilíbrio fiscal, Haddad, em acordo com Lula, daria a indicação de que o governo seguiria uma trilha previsível, capaz de diminuir o passo do endividamento, trazer a inflação de volta para a meta, reduzir os juros insustentáveis e criar um ambiente mais favorável ao crescimento. Mas o presidente mudou de ideia. Com isso, piorou as expectativas sobre o ritmo da queda de juros e da inflação, o grau de endividamento e o próprio crescimento da economia.
Ao deixar em aberto o esforço fiscal que pretende fazer, o governo insinua que ele também será de certa forma objeto de barganha política, um passo errado e arriscado demais tendo em vista a fragilidade de sua representação no Congresso.
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