Que tal nos arriscarmos na compreensão do processo macroeconômico de formação da renda, lucros e receita do Estado?
A semana foi ilustrada por reações dos mercados e de seus economistas às palavras do presidente Lula. No proscênio das indignações e desconfianças brilhava um conhecido personagem da tragicomédia econômica, o “déficit zero”. Manchetes, editoriais e comentários na mídia corporativa destilaram críticas contundentes.
As expectativas dos mercados financeiros passam a se orientar por suposições acerca da evolução da “crise financeira do Estado”. Nos próximos meses, é preciso acompanhar a avaliação dos detentores e gestores da riqueza sobre os rumos da política fiscal e do endividamento público. Há sinais de que os senhores da finança já desconfiam da trajetória do déficit fiscal e da dívida pública.
Apoiado no linguista John Austin, Christian Marazzi, em seu livro Capital e Linguagem, cuida das marchas e contramarchas da finança dos últimos 30 anos. Marazzi sublinha a natureza performativa da linguagem do dinheiro e dos mercados financeiros. Performativo quer dizer que a linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve, muito menos “analisa”, um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente formas de compreensão que geram as irrealidades do “real”. O poder das ideias são as ideias do poder.
Para escapar às (in?)certezas do poder, seria conveniente buscar as dúvidas e contestações daqueles que ousaram e ousam pensar “fora da caixinha”. Para começar, vamos nos arriscar na compreensão do processo “macroeconômico” de formação da renda, dos lucros e da receita fiscal do Estado. Consideremos a questão de forma simplificada: empresas, famílias e governo realizam gastos de consumo e de investimento. Nesse momento de “confiança”, empresas, famílias e governo estão incorrendo em “déficit” financiado pelos bancos e por outros intermediários financeiros. O aumento do gasto promove o crescimento da renda. Assim, a evolução da renda das empresas, famílias e governos “gastadores” permite a geração de um “superávit”. Superávit expresso na acumulação de lucros empresariais, no aumento da poupança familiar e, no caso dos governos, no superávit fiscal.
Parênteses: o economista austríaco Joseph Schumpeter, autor do clássico Teoria do Desenvolvimento Capitalista, atribuiu o desenvolvimento econômico ao papel sistêmico de duas personificações estratégicas: o banqueiro que administra o sistema de crédito adianta dinheiro novo para outro protagonista crucial, o empresário inovador. O crédito e a inovação rompem o fluxo circular, ou seja, o estado da economia que reproduz simplesmente o que existe.
O fluxo de lucros e a poupança, privada e pública, cuidam de garantir o serviço e a estabilidade do valor das dívidas e dos custos financeiros. As poupanças decorrentes do novo fluxo de renda vão abastecer os bancos e o mercado de capitais, que se arriscaram em adiantar o crédito (criação de moeda) para viabilizar os gastos de investimento e de consumo.
O aumento do investimento, do consumo e do endividamento enseja a hierarquização dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade conforme os preços, à vista e futuros, estabelecidos diariamente nos mercados secundários. Isto significa que a economia deve gerar “déficit” e liquidez no presente para que as dívidas (novas e já existentes), assim como os direitos de propriedade, possam ser “precificadas” conforme o estado de convenções prevalecente. Os bons resultados do presente aplacam o medo do futuro.
A economia monetária (e necessariamente financeira) em que prevalecem as relações de débito e crédito pode ser concebida como grande painel de balanços inter-relacionados. As decisões privadas e públicas de gasto apoiadas no adiantamento de liquidez são variáveis cruciais. A disposição de bancos de prover liquidez a empresas, famílias e governos promove a geração do fluxo de renda agregada da economia. Sobre a renda já criada (salários, lucros e demais rendimentos) incidem as decisões de poupar que modificam a distribuição dos estoques de direitos sobre a riqueza e, portanto, a situação patrimonial dos protagonistas.
Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação risco/rendimento dos ativos sucumbem diante do medo do futuro. A obscuridade total paralisa as decisões e nega os novos fluxos de gastos. Em tais circunstâncias, a tentativa de redução do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio patrimonial é uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico, mas danosa para o conjunto da economia, pois leva necessariamente à ulterior deterioração dos balanços. É o paradoxo da “desalavancagem”.
A lógica é simples: João não vende. Se não vende, não compra de José, que, por sua vez, não encomenda os produtos de Mário. Mário deixa de produzir e dispensa seus operários. Os trabalhadores, despojados dos salários, não compram de João. João reduz ainda mais suas compras de José. Nessa embalada da contração do circuito mercantil, a economia afunda e o dinheiro some.
Diante da expectativa da continuidade da queda das vendas e dos preços dos bens, o dinheiro torna-se “escasso” e a turma corre desesperadamente atrás da grana. Diriam os economistas: sobe o valor presente de uma determinada soma de dinheiro. Ou seja, eleva-se o rendimento esperado da posse da riqueza sob a forma líquida. Como foi dito, precipitam-se as expectativas de uma queda cumulativa de vendas e preços, de uma interrupção de pagamentos e de crise aguda do sistema bancário. A cambulhada pega duro nos ativos financeiros distribuídos entre bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de pensão e fundos de hedge, ameaçando as poupanças de ricos, pobres e remediados.
Diante da fuga desatinada para a liquidez e para a segurança, tornam-se inevitáveis o desequilíbrio fiscal, a ampliação do espectro de ativos privados a serem absorvidos pelo balanço do Banco Central e o crescimento do débito público na composição dos patrimônios privados. Resta torcer para que essas “formas grosseiras” impeçam o avanço do credit crunch, o aprofundamento da deflação de ativos e a queda da produção e do emprego.
Em período de baixo crescimento, o gasto público impede a queda acelerada da produção
Nas recessões que afetam as economias capitalistas periodicamente, tanto os problemas relativos à geração de lucro, renda, e emprego quanto os patrimoniais (assim como o grau de endividamento e o risco das posições ativas e passivas) têm origem nas variações dos fluxos do gasto privado de consumo e de investimento. Tais flutuações provocam movimentos de ajuste na composição e no rendimento dos ativos que podem agravar o declínio do gasto produtivo. Mas esses movimentos cíclicos apresentam sensibilidade à atuação das políticas anticíclicas que se destinam a defender os fluxos de produção, os preços dos ativos e a validade das dívidas mediante a sustentação da liquidez dos mercados e o lucro das empresas.
Keynes procurou demonstrar que, em uma situação de ruptura do estado convencional de expectativas, torna-se aguda a contradição entre o enriquecimento privado e a criação da nova riqueza para a sociedade (crescimento das inversões em capital real). A crise leva ao limite o impulso de enriquecimento privado, ao ponto de torná-lo antissocial, devido à preferência pela liquidez que impõe a paralisia ao investimento e ao consumo, isto é, à formação da renda e ao emprego. Numa conjuntura de redução do investimento e do consumo privados, as empresas e os consumidores buscam desesperadamente reduzir o endividamento e aumentar as reservas monetárias.
Em uma economia que atravessa período de baixo crescimento e incertezas, diante de antecipações pessimistas do setor privado, o gasto do governo consegue impedir a queda acelerada da produção e evitar o agravamento da deflação de ativos. •
*Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
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