Onde devemos buscar as ‘raízes’ da estagnação em que estamos enredados há mais de 20 anos?
Por volta de 1950, o Produto Interno Bruto (PIB) anual per capita brasileiro ocupava a 73.ª posição numa classificação de 141 países. Posição bem baixa, sem dúvida, mas substancialmente mais alta que a da República da Coreia, hoje um país altamente desenvolvido, e mais alta até que a da China continental. Esta, embora ainda conviva com enormes desigualdades, caminha para se tornar a maior economia do planeta. Os dados mencionados estão no livro Nacionalismo e Comunicação Social, obra de Karl Deutsch publicada pela MIT Press em 1953, um indiscutível clássico da ciência política.
A referência à posição do Brasil na metade do século passado – modesta, mas superior às da Coreia e da China – torna imperativa uma reflexão sobre o nosso desempenho durante o século 20 e sobre o inequívoco fundo de poço em que caímos. Antes, no entanto, é mister descartar certos clichês que ainda consumimos em doses cavalares. O mais conhecido é o dos “grilhões do passado”, como se a colonização portuguesa explicasse todas as nossas mazelas.
Dói tomar como exemplo o livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, um clássico de nossa literatura. Dá-se, entretanto, que a reflexão de Sérgio Buarque é de 1936, época em que a maioria de nossa população, dispersa e desarmada, vivia em pequenas comunidades interioranas. Atualmente, tendo já ultrapassado a marca dos 200 milhões, o que a caracteriza não é a dispersão, e sim um altíssimo grau de concentração em grandes metrópoles. Tampouco está desarmada. O indivíduo que vai à rua à noite, a pé ou de automóvel, vai com medo, e o que ele teme não são apenas adultos furibundos. Pode ser um adolescente de 16 ou até de 14 anos, que poderia estar se divertindo ou passeando com a namorada, mas que, bem ao contrário, tem à mão um revólver e exige que você lhe entregue seu celular. Temos turismo? Não, temos um enorme potencial turístico, que não se materializa como riqueza para os brasileiros exatamente porque a criminalidade segue em vigorosa marcha ascendente.
Outro clichê que já deu o que tinha a dar é o da “fartura de recursos naturais”. Na revista Istoé Dinheiro datada de 29/11/2023, o celebrado professor Mangabeira Unger volta a martelar essa tecla, sabidamente eivada de equívocos. Ao longo de três páginas, ele explica que “a fartura de recursos naturais acomoda o Brasil”.
Ora, recursos naturais não chegam à nossa mesa por iniciativa própria. Todos nos vêm como resultado do trabalho mediante o qual os produzimos e colhemos. A não ser pelo mamão, que de fato prescinde de nossa intervenção para cair da árvore, todos os outros requerem um esforço de nossa parte. Nenhum peixe sai da água e vem, cantarolando, para a nossa panela.
Salta aos olhos que as commodities – soja, carne, minério – se tornaram o esteio de nossa economia graças a um gigantesco investimento empresarial feito na produção e no aproveitamento de oportunidades comerciais (notadamente nas que a China nos oferece). Para expandir e aprimorar nosso rebanho pecuário, os fazendeiros do Triângulo Mineiro tiveram de buscar na Índia as matrizes zebuínas, enfrentando, para tanto, até a má vontade que o ditador Getúlio Vargas não fazia nenhuma questão de disfarçar. Ou seja, não há como compreender a importância dos “recursos naturais” sem situá-los nas estruturas sociais e políticas dentro das quais ela se configura.
Onde, então, devemos buscar as raízes da estagnação em que estamos enredados há mais de 20 anos, desde que Lula deu de ombros para o grande avanço feito nos anos 90 – o controle de uma superinflação que já durava três décadas?
Primeiro, creio eu, na exiguidade, ou virtual inexistência, de uma elite (no sentido neutro, sociológico do termo). Elite, nesse sentido, é uma parcela social minoritária, mas culta, competente e, sobretudo, disposta a se dedicar de corpo e alma ao bem coletivo, contribuindo para a fixação de prioridades racionais e alavancando os recursos necessários para as levar à prática. Isso o Brasil decididamente não tem. Temos uma cúpula formada por supersuperbilionários do setor privado e um conluio entre o Congresso Nacional e superburocratas do Executivo, que põem e dispõem sobre os recursos públicos.
Podemos dizer, sem medo de errar, que essa pseudoelite, que não chega a 10% dos brasileiros, controla a metade da riqueza do País. Abaixo dela, temos a chamada “classe média”, semelhante a diáfanas nuvens horizontais, incapaz até de defender seus interesses – salvo pelo perverso caminho do corporativismo, ou seja, por meio do valor absurdo das aposentadorias públicas, das normas de promoção escondidas na legislação dos três níveis de governo, da universidade pública gratuita até para os filhos de famílias abastadas, e por aí afora. Daí para baixo, os 50% que pouco contam, por falta de recursos, de escolaridade e pela singela razão de que vivem da mão para a boca.
Durante quanto tempo o Brasil suportará esse quadro cruel sem se deparar com convulsões graves? Uma, duas décadas?
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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