Éramos jovens, ingênuos e sonhadores, acreditávamos na força do povo como instrumento de pressão
Passados 40 anos — no próximo 16 de abril —, o comício pelas Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, registra a maior frente ampla política ocorrida no Brasil. Para aquele milhão de brasileiros, ali reunidos, entre eles o Miguelzinho, uma nesga de esperança emanava dos discursos de diferentes personalidades, quase uma certeza para a minha geração: o país do futuro deixaria de ser uma promessa. Tínhamos apenas de derrubar a ditadura militar. Mas nos esquecemos de combinar com os russos.
Éramos jovens, ingênuos e sonhadores, acreditávamos na força do povo como instrumento de pressão e mudanças. Tá. A manifestação, antes e ainda hoje não superada em número e desejos, mirava a votação no Congresso da emenda Dante de Oliveira, que restabeleceria as eleições diretas, portanto enviaria os militares de volta aos quartéis. As passeatas, depois o palanque, traziam um elenco de oposicionistas sinceros, de quintas-colunas mal disfarçados e de oportunistas de quatro costados. Os russos em nossas camas.
Muitos deles vinham ali forçados pela grande mobilização popular, iniciada no ano anterior (a briga pela democracia, veja só, começou em Curitiba!), que mostrara a musculatura da oposição pela primeira vez ao reunir 300 mil pessoas na Praça da Sé, também em São Paulo, no 25 de janeiro de 1984.
Até o 16 de abril do Vale do Anhangabaú, o país se viu incendiado por centenas de comícios, passeatas. Até nas arenas de futebol pedia-se a volta da liberdade política. Vistos como alienados, os jogadores surpreenderam com o lançamento da Democracia Corinthiana, capitaneada por Sócrates, Casagrande e Wladimir. Imagine o estádio do Morumbi, com 60 mil torcedores, exigindo eleições diretas. No meio do campo, uma faixa: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. No Maracanã, num jogo entre Flamengo e Santos, ao lado da temperatura (27graus), o painel eletrônico escandia: “Diretas Já”.
É, parecia um sonho. Era só derrubar a ditadura para que a modernidade e a urbanidade vestissem o Brasil. Tá.
Em 1984, o calendário marcava 20 anos de ditadura. Dois anos antes, ocorreram as eleições para os governos estaduais, com a vitória da oposição em São Paulo, Rio e Minas (Paraná também!). O regime militar dava sinais de exaustão desde a crise do petróleo, em 1973, com reflexos na alta da inflação, na carestia e no esgotamento de um modelo econômico insuflado pelo Estado (tal Geisel, tal Gleisi). No Brasil, as ideias mofadas não morrem; como aliens, migram de corpos.
O comício do Anhangabaú, diante dos corações que seriam enganados, sugeria que alguns degraus civilizacionais seriam conquistados. Afinal, o povo estava nas ruas pedindo a volta da democracia e um país mais justo.
Dos muitos discursos naquela distante noite de 1984, talvez o único sincero, porque cumprido, tenha sido a promessa de Sócrates, então ídolo do futebol no time do Corinthians:
— Se a emenda passar [no Congresso], não irei embora do Brasil —gritou.
E foi ovacionado por 1 milhão de pessoas. Todos sabiam que ele tinha no bolso um contrato para jogar na Fiorentina, na Itália. Bastava voltar a democracia, dizia, e não nos deixaria. Mas, ao seu lado, no próprio palanque, havia personagens assustados com a força da mobilização. Por aqui, as rupturas são combinadas no ar condicionado; o calor das ruas, até certo ponto, serve apenas como biombo para negociar os anéis. Os generais seriam afastados, mas não iriam embora. De novo, os aliens.
Poucos dias depois, em 25 de abril, por apenas 22 votos, a Câmara dos Deputados recusava a emenda. Nada de Diretas Já. O caminho para a derrubada da ditadura viria por meio do Colégio Eleitoral inventado pelos militares, onde Tancredo Neves derrotaria Paulo Maluf, encerrando o regime autoritário. Era uma compensação frustrante.
Típico resultado de arranjos de bastidores, no que hoje os historiadores chamam de transição negociada entre os líderes civis e as Forças Armadas. Uma eleição direta não interessava aos militares nem à maior parte das elites. Não se dá presente ao povo. Só cargo aos amigos.
Assim como o Golpe de 1964 ocorreu sem qualquer reação mais contundente, a derrubada da ditadura também se passou como se não houvesse crime cometido contra os brasileiros. Daí que tamanha concórdia resultou num país incapaz de enfrentar seus maiores problemas, ainda e sempre acovardado diante dos militares. Para piorar, com medo também dos pastores.
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