terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

LULA TEM MAIS A PERDER DO QUE NETANYAHU

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

As declarações de Lula oferecem uma chance para Netanyahu se defender com argumentos que unem seu país, dividido pela guerra

A despeito das convocações cruzadas de embaixadores, nem o Brasil nem Israel têm a ganhar com a escalada da crise gerada pelas declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva comparando a matança de palestinos em Gaza ao holocausto. Até que este perde-perde se esgote, porém, Lula enfrenta mais riscos que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

As declarações de Lula oferecem uma chance para Netanyahu se defender com argumentos que unem seu país, dividido pela guerra. Trata-se de um fôlego temporário, visto que o exército israelense está prestes a fazer nova investida em Rafah, na fronteira com o Egito, e levantar nova leva de indignação internacional, mas é uma pausa útil.

Já Lula, que é o anfitrião, esta semana, da primeira grande reunião do G20 sob presidência brasileira, a dos chanceleres, perde a oportunidade de galvanizar uma posição sobre o tema. Arrisca, com isso, afetar sua liderança sobre o bloco. Até o momento, o apoio internacional mais eloquente que as declarações de Lula recebeu foi do Hamas, grupo responsável pelo ataque já classificado de terrorista pelo governo brasileiro.

A despeito de não ter conseguido aprovar uma recomendação de cessar-fogo, o Brasil teve uma passagem bem-sucedida pela presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas capaz de aumentar o isolamento de Israel. Deu um passo adiante daqueles países que havia conseguido agregar no CSNU ao aderir à denúncia de genocídio feita pela África do Sul.

Poderia ter-se mantido nesta rota para se desviar da jornalista da Radio França Internacional que perguntou sobre as restrições democráticas na Venezuela e sobre a promessa de ajuda à agência das Nações Unidas que cuida de refugiados palestinos. Preferiu atravessar a rua para cair numa armadilha na outra calçada.

Muitos intelectuais já fizeram a mesma analogia, mas nenhum chefe de Estado de um país do porte do Brasil ousou tanto. Revolveu a tentativa de extermínio do povo judeu quando seu alvo era a condução de uma guerra por seus dirigentes. Ao adquirir o carimbo de “persona non grata” e submeter seu embaixador em Israel, Frederico Meyer, à reprimenda pública do chanceler israelense no Museu do Holocausto é ao povo brasileiro que expõe.

Foi em 1961 que a menção ao holocausto no contexto da repressão dos palestinos por Israel causou o primeiro grande estrondo. Naquele ano, o historiador inglês Arnold Toynbee fez esta comparação durante uma conferência na Universidade McGill, em Montreal.

Foi desafiado pelo então embaixador israelense no Canadá, Yaacov Herzog, tio do atual presidente de Israel, Isaac Herzog, para, dali a dois dias, fazer um debate sobre o tema. Um dos mais eruditos diplomatas de seu país, Herzog desfiou os grandes massacres da história mundial para questionar por que só Israel merecera o protagonismo na comparação.

O conflito estava longe do atual patamar. Não havia ocupação na Cisjordânia e o embaixador se dizia representante de todos os habitantes de Israel, inclusive dos palestinos. Toynbee se fixou na perda dos palestinos de suas casas e de sua pátria, desapropriação que não havia perdurado sobre os povos que, invadidos pelo nazismo, o tinham vencido.

O embaixador chegou a dizer que tanto Israel quanto as Nações Unidas haviam se comprometido a reparar essas perdas. Toynbee foi desafiado a rever seu conceito de “cultura fossilizada” na qual havia incluído o povo judeu. Ao fim de um debate civilizado, que durou uma hora e meia e cuja íntegra seria publicada no mundo inteiro, o embaixador, que disse ter ido ali como pessoa física e não como representante do Estado de Israel, convidou Toynbee a visitar seu país.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário