terça-feira, 5 de março de 2024

NAVALNI E O 'VÍRUS DA LIBERDADE'

Editorial O Estado de S. Paulo

O Ocidente precisa retribuir a coragem dos dissidentes russos integrando-os à sua segurança

No sábado foi enterrada em Moscou a melhor esperança de uma ressurreição da liberdade na Rússia. Mas, parafraseando o que sobre a Igreja disse Tertuliano, o apologeta das primeiras comunidades cristãs, o sangue dos mártires é a semente da democracia. Mesmo sob a mira do Estado policial de Vladimir Putin, milhares de russos compareceram ao funeral do ativista Alexei Navalni na igreja Alivie Minhas Dores, cantando refrões como “Não à guerra” e “Putin assassino”, no maior desafio ao regime desde os protestos após a invasão da Ucrânia, em 2022. Após a morte de Navalni, pelo menos 450 pessoas foram detidas. Essa prova de coragem é o maior tributo a Navalni e também seu maior legado.

A morte de Navalni numa prisão no Ártico prova o quanto Putin teme essa coragem. Mas as sementes legadas por Navalni precisam ser cultivadas. “(Putin) se sente confiante de que não haverá repercussões”, disse o ativista Garry Kasparov. “Se provarem que ele está certo, sua confiança assassina aumentará.” Em 2021, o presidente americano, Joe Biden, prometeu consequências “devastadoras” se algo acontecesse com Navalni. “Se o sr. Biden e o restante do mundo livre quiserem dar esse golpe ‘devastador’”, disse Kasparov, “só precisam fornecer às mãos ucranianas as armas que elas precisam para desferi-lo.”

O Ocidente precisa assumir que a repressão na Rússia e a agressão à Ucrânia são parte da mesma guerra. “No meu tempo”, advertiu em artigo na Economist Natan Sharanski, que sobreviveu a 9 anos num gulag soviético, “políticos ocidentais compreendiam a escala da luta histórica e viam o destino dos prisioneiros políticos soviéticos como parte de sua própria segurança. Hoje não compreendem. E este é um erro de proporções históricas.”

Dissidentes catalisam a deterioração de regimes podres e por isso são aliados cruciais do mundo livre. Como disse Navalni em uma carta a Sharanski, eles são um “vírus da liberdade”. Sharanski lembrou o quão importante foi a política ocidental em três compartimentos nas relações com o Império Soviético: segurança, comércio e direitos humanos. Os soviéticos acreditaram poder tratar o último com palavras vazias. Mas “foi o elo entre o terceiro compartimento e os outros dois que levaram à morte do regime”. Para ele, é essencial que o Ocidente retome essa política: “O seu confronto com o regime de Vladimir Putin deveria consistir em fortalecer a dissuasão militar nas fronteiras com a Rússia, aumentar o apoio à Ucrânia e desenvolver uma política em relação aos dissidentes na própria Rússia”.

Esses dissidentes precisam ser considerados como prisioneiros da guerra de Putin. Isso significa condicionar, nos termos mais duros possíveis, a troca de espiões russos e as relações com a Rússia à sua libertação.

Por muito tempo Putin se acostumou a sorrir a cada manifestação de “grave preocupação” dos líderes ocidentais com as atrocidades cometidas por ele. Mas Navalni mostrou que esse tempo precisa ser sepultado. “Navalni foi um homem de coragem e ação”, disse Kasparov, “e somente coragem e ação podem honrá-lo agora.

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