segunda-feira, 19 de agosto de 2024

O VERÃO PERDIDO DO POPULISMO

Jan-Werner Mueller*, Valor Econômico

Os populistas de extrema direita que dizem falar pela maioria silenciosa, na verdade, representam uma minoria ruidosa

Volte um pouco no tempo, para o fim de junho e início de julho. Na França, a extrema direita era favorita para ganhar uma eleição parlamentar antecipada. Nos Estados Unidos, juízes trumpistas vinham resolvendo convenientemente os problemas jurídicos do ex-presidente, que parecia planar rumo à vitória após o desempenho desastroso do presidente do país, Joe Biden, no debate eleitoral. E, no Reino Unido, embora os trabalhistas estivessem chegando ao governo, um novo partido contra a imigração comandado por Nigel Farage, o chefe da turma do Brexit, havia obtido avanços sem precedentes. Diante de tudo isso, especialistas advertiam que uma onda de raiva populista contrária aos políticos no poder estava varrendo as democracias do mundo.

Desde então, novas fontes de esperança política devem ter atenuado a perspectiva sombria dos comentaristas. Não só há poucas evidências de uma “onda populista” - uma metáfora que evoca imagens de partidos de extrema direita inevitavelmente chegando ao poder em muitos países -, mas a experiência recente indica que existem estratégias viáveis para combater essas forças.

Uma lição dos últimos meses pode soar como um truísmo: todos os partidos que valorizam a democracia precisam se unir para enfrentar ameaças antidemocráticas. Foi o que ocorreu na França, para surpresa de muitos especialistas. Partidos de esquerda formaram a Nova Frente Popular, evocando memórias da luta contra o fascismo nos anos 1930, quando o líder socialista Léon Blum liderou uma coalizão de comunistas, socialistas e liberais para defender a república.

Após a surpreendente decisão do presidente Emmanuel Macron de dissolver a Assembleia Nacional, a esquerda foi criativa, enquanto o Reunião Nacional, de extrema direita, liderado por Marine Le Pen, foi pego de surpresa. Ainda mais importante, porém, foi o fato de a Nova Frente Popular não ter feito apenas um apelo a valores democráticos abstratos; também chamou repetidamente a atenção para os planos pró-empresas da extrema direita, deixando claro que o Reunião Nacional não é o partido pró-trabalhador que reivindica ser.

Uma segunda lição vem dos Estados Unidos, onde poucos previram o entusiasmo e a efusão de alegria que saudariam a nova chapa democrata. A vice-presidente Kamala Harris, um nome do atual governo, se apresentou de forma magistral como uma representante da mudança, em contraste tanto com o ex-presidente Donald Trump quanto com o atual presidente, Biden. Sua escolha para vice-presidente, o governador de Minnesota, Tim Walz, deliciou muita gente ao caracterizar o par republicano e, particularmente, o vice de Trump, J. D. Vance, como “esquisito”. Parece que, enfim, os democratas estão jogando com tipo de retórica agressiva que a direita sempre usou.

Claro, centristas autoproclamados que pregam um discurso civil não estão tão satisfeitos assim. Eles recordam aos democratas que os comentários de Hillary Clinton sobre os “deploráveis” voltaram para assombrar a campanha dela em 2016. Ainda assim, condenar o rótulo de “esquisito” como um insulto infantil foge da questão principal. Na luta contra o populismo de extrema direita, esse epíteto em particular pode ser especialmente eficaz.

Afinal, ao dizer que falam em nome dos “verdadeiros cidadãos” ou da “maioria silenciosa”, os populistas de extrema direita se apresentam como os representantes da normalidade. Na Alemanha, um dos lemas do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha é: “Deutschland, aber normal” (em alemão, Alemanha, mas normal. A suposta base dos populistas inclui o que sempre é apresentado como “pessoas comuns”, que são ameaçadas por elites nefastas e pelos perigosos “Outros”. É assim que os populistas incitam o medo em relação a minorias já vulneráveis, sejam refugiados ou pessoas transgênero.

Os antipopulistas mais antenados devem concentrar seu fogo retórico nos líderes populistas, e não nos apoiadores deles. Vance é “esquisito” porque está obcecado em controlar o corpo das mulheres e em punir quem não tem filhos, e porque ele parece ter simpatia por monarquistas e outras figuras da chamada “alt-right”, a direita alternativa. O Partido Republicano hoje defende muitas posições que estão totalmente fora de sintonia com as tradições políticas dos EUA; a admiração aberta por autocratas é um exemplo óbvio.

Partidos de extrema direita estão se tornando normalizados porque mais políticos de centro-direita copiam sua retórica ou fazem coalizões com eles. Uma postura de defesa da democracia é necessária, mas não suficiente; é preciso oferecer também uma visão positiva

É possível dar destaque a tudo isso sem sugerir que os eleitores republicanos são esquisitos. A questão é contestar a reivindicação de normalidade por parte de líderes que são tudo menos normais.

Os populistas de extrema direita que dizem falar pela maioria silenciosa, na verdade, representam uma minoria ruidosa. Não há nada de errado nisso por si só; muitos movimentos progressistas começaram da mesma maneira. No entanto, movimentos que fingem falar pela maioria enquanto demonizam todos os demais representam uma ameaça à democracia. Não é por acaso que, quando perdem nas urnas, muitos populistas recorrem a acusações de fraude. Como supostamente representam a maioria silenciosa, uma derrota eleitoral só pode ser atribuída a um jogo sujo, em geral das “elites liberais” que, supostamente, de alguma forma silenciaram a maioria.

Os antipopulistas deveriam reconhecer que as maiorias não apoiam, de fato, as forças populistas de extrema direita. As primeiras semanas do novo governo do Partido Trabalhista no poder no Reino Unido confirmaram essa percepção salutar. O país viveu seus piores distúrbios em mais de dez anos, diante de desinformações que alimentaram a violência racista. Embora tomando o cuidado de não endossar diretamente a violência, Farage tentou fazer parecer como se os manifestantes tivessem reivindicações legítimas, compartilhadas pela maioria silenciosa. As pesquisas de opinião pública, contudo, mostram que apenas um em cada três britânicos apoia os protestos anti-imigração de forma geral, enquanto a oposição aos distúrbios é esmagadora.

Enquanto a extrema direita reivindica falsamente um monopólio sobre a normalidade, a verdade é que os partidos de extrema direita estão se tornando normalizados porque mais políticos de centro-direita copiam sua retórica ou fazem coalizões com eles. Uma postura com foco na defesa da democracia é necessária, mas não suficiente, para enfrentar essa tendência; é preciso oferecer também uma visão positiva. Foi isso que a esquerda francesa e o Partido Trabalhista do Reino Unido fizeram neste verão europeu.

Aqueles que fazem campanha para Kamala serão questionados sobre o que ela realmente defende, além de ser uma alternativa à esquisitice de Trump e Vance. É um questionamento legítimo, e para o qual os antipopulistas precisam ter uma boa resposta. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Jan-Werner Mueller é professor de ciências políticas na Universidade de Princeton. Seu livro mais recente é "Democracy Rules" (regras da democracia, em inglês), pela Farrar, Straus and Giroux, 2021 e pela Allen Lane, 2021. 

Volte um pouco no tempo, para o fim de junho e início de julho. Na França, a extrema direita era favorita para ganhar uma eleição parlamentar antecipada. Nos Estados Unidos, juízes trumpistas vinham resolvendo convenientemente os problemas jurídicos do ex-presidente, que parecia planar rumo à vitória após o desempenho desastroso do presidente do país, Joe Biden, no debate eleitoral. E, no Reino Unido, embora os trabalhistas estivessem chegando ao governo, um novo partido contra a imigração comandado por Nigel Farage, o chefe da turma do Brexit, havia obtido avanços sem precedentes. Diante de tudo isso, especialistas advertiam que uma onda de raiva populista contrária aos políticos no poder estava varrendo as democracias do mundo.

Desde então, novas fontes de esperança política devem ter atenuado a perspectiva sombria dos comentaristas. Não só há poucas evidências de uma “onda populista” - uma metáfora que evoca imagens de partidos de extrema direita inevitavelmente chegando ao poder em muitos países -, mas a experiência recente indica que existem estratégias viáveis para combater essas forças.

Uma lição dos últimos meses pode soar como um truísmo: todos os partidos que valorizam a democracia precisam se unir para enfrentar ameaças antidemocráticas. Foi o que ocorreu na França, para surpresa de muitos especialistas. Partidos de esquerda formaram a Nova Frente Popular, evocando memórias da luta contra o fascismo nos anos 1930, quando o líder socialista Léon Blum liderou uma coalizão de comunistas, socialistas e liberais para defender a república.

Após a surpreendente decisão do presidente Emmanuel Macron de dissolver a Assembleia Nacional, a esquerda foi criativa, enquanto o Reunião Nacional, de extrema direita, liderado por Marine Le Pen, foi pego de surpresa. Ainda mais importante, porém, foi o fato de a Nova Frente Popular não ter feito apenas um apelo a valores democráticos abstratos; também chamou repetidamente a atenção para os planos pró-empresas da extrema direita, deixando claro que o Reunião Nacional não é o partido pró-trabalhador que reivindica ser.

Uma segunda lição vem dos Estados Unidos, onde poucos previram o entusiasmo e a efusão de alegria que saudariam a nova chapa democrata. A vice-presidente Kamala Harris, um nome do atual governo, se apresentou de forma magistral como uma representante da mudança, em contraste tanto com o ex-presidente Donald Trump quanto com o atual presidente, Biden. Sua escolha para vice-presidente, o governador de Minnesota, Tim Walz, deliciou muita gente ao caracterizar o par republicano e, particularmente, o vice de Trump, J. D. Vance, como “esquisito”. Parece que, enfim, os democratas estão jogando com tipo de retórica agressiva que a direita sempre usou.

Claro, centristas autoproclamados que pregam um discurso civil não estão tão satisfeitos assim. Eles recordam aos democratas que os comentários de Hillary Clinton sobre os “deploráveis” voltaram para assombrar a campanha dela em 2016. Ainda assim, condenar o rótulo de “esquisito” como um insulto infantil foge da questão principal. Na luta contra o populismo de extrema direita, esse epíteto em particular pode ser especialmente eficaz.

Afinal, ao dizer que falam em nome dos “verdadeiros cidadãos” ou da “maioria silenciosa”, os populistas de extrema direita se apresentam como os representantes da normalidade. Na Alemanha, um dos lemas do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha é: “Deutschland, aber normal” (em alemão, Alemanha, mas normal. A suposta base dos populistas inclui o que sempre é apresentado como “pessoas comuns”, que são ameaçadas por elites nefastas e pelos perigosos “Outros”. É assim que os populistas incitam o medo em relação a minorias já vulneráveis, sejam refugiados ou pessoas transgênero.

Os antipopulistas mais antenados devem concentrar seu fogo retórico nos líderes populistas, e não nos apoiadores deles. Vance é “esquisito” porque está obcecado em controlar o corpo das mulheres e em punir quem não tem filhos, e porque ele parece ter simpatia por monarquistas e outras figuras da chamada “alt-right”, a direita alternativa. O Partido Republicano hoje defende muitas posições que estão totalmente fora de sintonia com as tradições políticas dos EUA; a admiração aberta por autocratas é um exemplo óbvio.

Partidos de extrema direita estão se tornando normalizados porque mais políticos de centro-direita copiam sua retórica ou fazem coalizões com eles. Uma postura de defesa da democracia é necessária, mas não suficiente; é preciso oferecer também uma visão positiva

É possível dar destaque a tudo isso sem sugerir que os eleitores republicanos são esquisitos. A questão é contestar a reivindicação de normalidade por parte de líderes que são tudo menos normais.

Os populistas de extrema direita que dizem falar pela maioria silenciosa, na verdade, representam uma minoria ruidosa. Não há nada de errado nisso por si só; muitos movimentos progressistas começaram da mesma maneira. No entanto, movimentos que fingem falar pela maioria enquanto demonizam todos os demais representam uma ameaça à democracia. Não é por acaso que, quando perdem nas urnas, muitos populistas recorrem a acusações de fraude. Como supostamente representam a maioria silenciosa, uma derrota eleitoral só pode ser atribuída a um jogo sujo, em geral das “elites liberais” que, supostamente, de alguma forma silenciaram a maioria.

Os antipopulistas deveriam reconhecer que as maiorias não apoiam, de fato, as forças populistas de extrema direita. As primeiras semanas do novo governo do Partido Trabalhista no poder no Reino Unido confirmaram essa percepção salutar. O país viveu seus piores distúrbios em mais de dez anos, diante de desinformações que alimentaram a violência racista. Embora tomando o cuidado de não endossar diretamente a violência, Farage tentou fazer parecer como se os manifestantes tivessem reivindicações legítimas, compartilhadas pela maioria silenciosa. As pesquisas de opinião pública, contudo, mostram que apenas um em cada três britânicos apoia os protestos anti-imigração de forma geral, enquanto a oposição aos distúrbios é esmagadora.

Enquanto a extrema direita reivindica falsamente um monopólio sobre a normalidade, a verdade é que os partidos de extrema direita estão se tornando normalizados porque mais políticos de centro-direita copiam sua retórica ou fazem coalizões com eles. Uma postura com foco na defesa da democracia é necessária, mas não suficiente, para enfrentar essa tendência; é preciso oferecer também uma visão positiva. Foi isso que a esquerda francesa e o Partido Trabalhista do Reino Unido fizeram neste verão europeu.

Aqueles que fazem campanha para Kamala serão questionados sobre o que ela realmente defende, além de ser uma alternativa à esquisitice de Trump e Vance. É um questionamento legítimo, e para o qual os antipopulistas precisam ter uma boa resposta. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Jan-Werner Mueller é professor de ciências políticas na Universidade de Princeton. Seu livro mais recente é "Democracy Rules" (regras da democracia, em inglês), pela Farrar, Straus and Giroux, 2021 e pela Allen Lane, 2021. 

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