O perigo dessa disputa religiosa está no fato de, ao se tornarem pivôs da vitória, os evangélicos bolsonaristas ganharem um poder maior do que já têm, pondo em risco um conceito democrático fundamental, a laicidade do Estado
A disputa pelo voto evangélico é um dos aspectos mais perigosos das eleições brasileiras recentes, especialmente agora, quando ele pode decidir o resultado na Prefeitura de São Paulo. O atual prefeito, Ricardo Nunes, e o dissidente bolsonarista Pablo Marçal estão empatados no eleitorado evangélico, e Marçal já passou a dianteira entre os eleitores de Bolsonaro, que oficialmente apoia Nunes.
Isso mostra, inicialmente, que o ex-presidente perde força na capacidade de induzir a escolha de seus seguidores. A paz entre os grupos de extrema direita foi tentada pelo filho Zero Dois de Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, mas logo fracassou diante da ameaça real que Marçal representa para o grupo do ex-presidente. A tentativa falhou, sobretudo, porque Marçal não aceita se subordinar a Bolsonaro, exatamente porque disputam o mesmo eleitorado.
Houve momento em que o grupo do ex-presidente pensou em mudar de aposta, abandonando Nunes. Mas, além da estrutura política, Nunes depende mais de Bolsonaro do que Marçal nesse eleitorado evangélico. Não deixar Marçal subir no palanque da Paulista no 7 de Setembro é demonstração dupla de fraqueza. Não queriam colocar fogo na disputa contra o ministro Alexandre de Moraes e, sobretudo, não queriam dar aquela plateia de mão beijada a Marçal.
A multidão era a metade da mobilizada anteriormente, mas foi grande o suficiente para manter Bolsonaro no comando do movimento. Marçal provocou indignação entre os apoiadores do ex-presidente pela desenvoltura em desfilar pela Paulista cumprimentando seus fãs, que se destacavam na multidão usando o boné com o M. Foi acusado pelo pastor Silas Malafaia de ser um espertalhão que quer se aproveitar do trabalho dos outros, se referindo possivelmente a ele próprio, que organizou a manifestação e assumiu o papel de orador principal para atacar o ministro Moraes, algo que Bolsonaro não queria fazer desta vez para não prejudicar as chances que julga ter de ser anistiado. O máximo que se permitiu foi chamar Moraes de “ditador”.
O perigo dessa disputa religiosa está no fato de, ao se tornarem pivôs da vitória, os evangélicos bolsonaristas ganharem um poder maior do que já têm, pondo em risco um conceito democrático fundamental, a laicidade do Estado. Não é aceitável no mundo moderno ocidental que exista uma religião estatal, mesmo que informalmente, como infelizmente já é nosso caso.
No governo Bolsonaro, os evangélicos receberam inúmeros benefícios estatais, que se tornaram irrevogáveis devido ao peso do eleitorado. Todos os candidatos sentem-se obrigados a frequentar seus ritos religiosos, têm dificuldades para defender posições ligadas a valores morais destoantes das defendidos por evangélicos. Já houve tempo em que a Igreja Católica atuava fortemente na política, e foi por isso que o divórcio demorou tanto a ser adotado no Brasil. A retirada dos padres católicos da luta política cotidiana abriu espaço à atuação dos evangélicos.
O crescimento das religiões evangélicas, a decisão de diversas denominações de participar ativamente da política partidária e o tom belicoso com que atores importantes como pastores, e o próprio Bolsonaro, atuam nos palanques aumentaram o nível de desvio da função religiosa num Estado laico. O apoio a uma religião específica por parte do governo é, no mínimo, um ataque à liberdade religiosa, direito de todos os cidadãos.
Já estamos quase num ponto de não retorno, com igrejas usadas como palanques e locais de reunião política. A ascensão da extrema direita com o uso da religião ameaça a todos. A exploração dos precarizados com políticas de apelo populista, acrescida do uso da religião como instrumento de obtenção de votos, é uma mistura explosiva, que tem de ser contida enquanto há tempo.
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