Na construção retórica da vanguarda moral, até
progressistas e moderados são conservadores
Não
vou cair na provocação de tratar a "pedagogia do cu", essa palestra-performance de
que todos estão falando, como um ultraje moral. Fazer isso seria entregar o que
desejam tanto os vanguardistas identitários quanto os obscurantistas, que
arregalam os olhos enquanto esfregam as mãos com o que consideram mais uma
evidência de que a universidade pública é um desperdício de dinheiro e
respeito.
Vou
levá-la a sério e tentar entender as justificativas racionais por trás da
ideia. Afinal, além dos posts e vídeos nas redes sociais, existem artigos em
periódicos científicos e grupos de pesquisa registrados no diretório do CNPq.
Nessa nova pedagogia, pelo que entendi das leituras, o cu é,
acima de tudo, uma metáfora para o que é marginalizado, reprimido e considerado
sujo pela sociedade. Ou seja, a "pedagogia do cu" não se restringe à
sexualidade anal; propõe uma abordagem educacional que valoriza o prazer, a
desobediência e a desconstrução da "heteronorma". O orifício anal
simboliza resistência ao conservadorismo, à moralidade cristã e à repressão
sexual de uma sociedade careta.
Nada
de novo sob o sol. Nenhuma ideia que não tenha sido explorada por bibliografia
melhor em todo o século 20. Nada mais "vintage" do que mais uma
ferramenta para desconstruir a heteronormatividade e o falocentrismo,
"questionando" a sexualidade tradicional e visões colonialistas. Nem
o cheiro de naftalina desaparece quando o discurso é ilustrado por uma
performance pueril, destinada a chocar, onde se mostra a bunda e se recitam
versinhos chulos. "Oh, ela falou pica e cu na universidade, que corajoso,
que desafiador, isso nunca se viu!"
Ocorre
que a tal pedagogia do cu não é pedagogia ou epistemologia. Se fosse, seus
autores teriam que apresentar evidências de que a proposta faz sentido e
responder seriamente a questões como: isso se aplicaria de que modo em uma
sociedade pluralista? Seria um projeto para a educação fundamental também?
Tampouco
se trata de mais um exemplo de balbúrdia nas universidades públicas. Não, há
projeto e pretensões, embora não passe de um panfleto conceitual contra um
espantalho retórico: "a sociedade conservadora". Isso inclui a escola
e a universidade conservadoras. Sim, na cabeça dos identitários, a universidade
é um antro de conservadores, opressores e repressores, contra os quais apenas
alguns iluminados –eles– se insurgem em corajosos atos de desobediência.
Nessa
representação, o conservador não é uma parte legítima de uma sociedade
pluralista, mas um defeito moral. A ética, na visão deles, não está do lado de
quem se choca com a performance, e sim do lado de quem a realiza. Imoral é a
repressão, a heteronormatividade, a rejeição dos "corpos
dissidentes", especialmente os corpos trans, a "higienização"
dos espaços acadêmicos e a exclusão do prazer como ferramenta pedagógica.
Vende-se como epistemologia, mas é apenas mais uma forma de militância.
Por
isso, a reação ao tema e à performance entrega exatamente o que o ativismo da
pedagogia do cu deseja: escandalização, condenação, demonstrações de transfobia,
ameaças de punições. Tudo isso será capitalizado pela militância acadêmica como
prova cabal, para fins internos ao grupo, de como é perseguida e assediada
pelos fascistas, que não lhe permitem nem os espaços marginais que lhe restam.
Para grupos que se baseiam na vitimização, a coesão interna e a confirmação de
que estão do lado certo da história e da moral aumentam na medida em que
apanham.
Notem,
contudo, que na construção retórica da vanguarda moral, até progressistas e
moderados são conservadores. Mesmo quem achou a performance na UFMA infantil,
indigna de atenção ou um desperdício de recursos públicos, talvez até uma
contribuição para a destruição acelerada da imagem da universidade pública, é
visto como conservador.
A
convicção interna dos identitários é que a pedagogia do cu provoca apenas os
setores conservadores e que isso estimula o debate, contribuindo para a
conscientização e a desconstrução de preconceitos. Entretanto, o que realmente
gera é mais escândalo e reações negativas, que, em vez de diminuírem, aumentam
o preconceito e desqualificam eventuais teses sérias que poderiam ter sido
defendidas.
Eu
diria, adaptando a terceira lei de Newton, que no mundo da militância por
lacração, a cada ação corresponde uma reação ainda maior e mais intensa em
sentido contrário.
Especialmente
quando a força ou provocação se exerce contra a maioria da sociedade, provocada
e ativada de tantos modos, como neste caso.
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