Ao ligar Boulos ao PCC no dia da eleição, Tarcisio seguiu
a cartilha da desfaçatez bolsonarista. Numa democracia, é preciso respeitar a
liturgia do cargo, o processo eleitoral e os adversários
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), que ao longo de seu mandato vinha se mostrando um democrata
consciente dos limites morais e legais de seu poder, deixou-se guiar pela
cartilha indecente do bolsonarismo no dia do segundo turno da eleição para a
Prefeitura de São Paulo, ao vincular Guilherme Boulos (PSOL), o adversário de
seu candidato, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), ao PCC, principal organização
criminosa do País. Os motivos que o levaram a aderir à desfaçatez tão típica de
seu padrinho, o ex-presidente Jair Bolsonaro, só o sr. Tarcísio será capaz de
esclarecer. Afinal, não parece haver lógica nenhuma nessa declaração
intempestiva, pois o prefeito Nunes estava confortavelmente na liderança da
disputa, quadro que não mudaria nas poucas horas que restavam para o fechamento
das urnas.
Ou seja, não há nada que pareça justificar a atitude do
governador, que a um só tempo desrespeitou o cargo que ocupa, o processo
eleitoral e o adversário, tudo o que não pode acontecer numa democracia – e
que, por isso mesmo, é passível de punição severa. Portanto, roga-se que o sr.
Tarcísio se retrate, pois, do contrário, mesmo que escape das sanções previstas
em lei, será para sempre lembrado como aquele que julga não haver limites
morais ou éticos para vencer uma eleição. Não é isso o que se espera de quem
aspira à liderança do campo conservador no Brasil.
Após votar, o governador foi questionado por jornalistas
sobre um comunicado emitido pela Secretaria de Administração Penitenciária de
São Paulo, que interceptou supostos bilhetes assinados por membros do PCC
orientando o voto em algumas cidades. Os tais bilhetes já eram de domínio
público, uma vez que foram publicados no dia anterior pelo portal Metrópoles.
Tarcísio poderia ter apenas dito que não faria comentários até o fechamento das
urnas, porque, se o fizesse, poderia influenciar a intenção de voto dos
eleitores que ainda tinham algumas horas para votar. Mas a imprudência é uma
marca do bolsonarismo, e o governador, como se estivesse numa entrevista
qualquer, e não no dia de votação e ao lado de seu candidato, comentou: “Teve o
salve, houve interceptação de conversa e de orientações que eram emanadas de
presídios por parte de uma organização criminosa, orientando determinadas
pessoas em determinadas áreas a votarem em determinados candidatos. Houve essa
ação de inteligência, houve essa interceptação, mas não haverá influência
nenhuma na eleição”.
Ainda assim, poderia ter reduzido os danos e parado por aí,
mas, diante da insistência para que informasse qual era o candidato que os
criminosos orientavam a votar, Tarcísio disse: “Boulos”. Ao fazê-lo,
imiscuiu-se de vez no processo eleitoral e abusou de sua prerrogativas de
governador, que, ao contrário de Boulos e dos demais cidadãos, tem acesso às
mencionadas informações de inteligência e tem holofotes garantidos em razão do
cargo que ocupa.
E não havia necessidade nenhuma disso. Àquela altura, os
danos eleitorais ao candidato do PSOL seriam nulos, posto que a derrota parecia
certa. A campanha de Boulos, claro, se apressou a comparar a declaração do
governador ao laudo fraudulento divulgado pelo extremista Pablo Marçal ao fim
do primeiro turno, para retratá-lo como um drogado, e fez o óbvio: recorreu à
Justiça. Há quem peça até a inelegibilidade do governador ou tente creditar à
insinuação de Tarcísio a derrota fragorosa imposta a Boulos.
É imprescindível agora que o governador explique o que,
afinal, pretendeu com a declaração, sob pena de macular seu próprio triunfo
político. Afinal, ele foi determinante para a reeleição de Nunes, sem precisar
de artifícios que, na prática, desrespeitam o eleitor e a democracia. Ao
contrário da toxicidade de Jair Bolsonaro, o apoio de Tarcísio mostrou o quanto
a direita não depende mais da associação explícita à figura do ex-presidente. E
dessa independência emerge a vitalidade de uma desejável direita democrática,
liberal e republicana. Atributos que, ora vejam, são o avesso da gravíssima
derrapada do governador.
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