Governador tenta se deslocar para outra faixa, mas
letalidade policial, entre outras situações, diz muito sobre seu jogo
O governador de São Paulo, Tarcísio
de Freitas, tem se projetado como nome da direita no cenário
político-eleitoral. À frente do estado mais pesado da União, está bem amparado
pelo escolado Gilberto
Kassab, secretário de Governo e vitorioso das eleições municipais. O
ex-ministro de Bolsonaro, que teve passagem pelo governo Dilma, tem se
deslocado simbolicamente para a meia direita, mas não deixa de jogar pela
extrema. Conhece a posição.
Um dos sinais, entre outros, de que continua a trafegar sem
embaraço por esse corredor é o desempenho da segurança pública.
Levantamento
feito pelo Instituto Sou da Paz para esta Folha traduz a
atuação policial em números. Para dar uma panorâmica, basta dizer que, nos
primeiros oito meses deste ano, 441 pessoas foram mortas no estado por agentes
das forças de segurança em serviço, contra 247 no ano passado no mesmo
intervalo. Isso representa uma alta de 78%.
O governador estreou no ano passado com a Operação
Escudo, encerrada com 28 mortos. Uma outra investida, a Operação Verão,
terminou em abril deste ano com saldo de 36 vítimas fatais. Não se trata aqui
de minimizar os ataques do crime organizado contra policiais e a necessidade de
resposta firme do estado –que, aliás, como todos os demais no Brasil,
juntamente com o governo federal, não consegue deter as facções que dominam
presídios e se infiltram cada vez mais nas instituições.
A matança é cercada de justificadas suspeitas de abusos e
pisoteamento da lei. Mas o que importa? Numa sociedade cindida pela
desigualdade socioeconômica e racial, matar suspeitos que poderiam ser presos é
considerado por muitos normal, se não desejável.
O Sou da Paz fez um recorte racial das vítimas que apontou
seu viés antinegros. Nada de novo, na verdade. Não será surpresa se, nessa
tragédia histórica, gatilhos da polícia também tiverem sido apertados por
pretos e pardos. É dramático.
Inimigo das câmeras corporais, adepto de escolas
cívico-militares, martelador enérgico de leilões de privatização, Tarcísio é
padrinho da candidatura do prefeito Ricardo Nunes,
que alistou, por indicação do ex-capitão, um ex-policial da Rota para vice.
Mello Araújo já disse que a abordagem em bairros de classe média branca da
capital tem de ser diferente daquela nas periferias.
Assisti faz pouco à série Cidade Deus, mais um spin off do
grande filme. Por mais que se saiba e por mais que se trate de uma ficção, é
instrutiva a reconstituição da estupidez e da completa falta de racionalidade
no modo como as pessoas negras e pobres são tratadas pela polícia, pelas assim
chamadas autoridades de segurança, pelo poder instituído, pelo Estado. A
herança escravocrata está aí, viva, sem disfarces, sem nem sequer tentativa de
disfarce.
Sim, isso não é apenas uma questão de governos de esquerda
ou direita. São Paulo, contudo, ao longo de alguns períodos, foi capaz de
implantar políticas públicas para tentar reduzir o padrão de barbárie, tornar a
polícia mais técnica e, ao menos, levantar uma discussão sobre a segurança como
serviço público universal prestado à sociedade. Algum resultado foi obtido,
como mostraram indicadores. A escalada sob Tarcísio revela o abandono dessas
questões e a adoção da letalidade como método.
Nenhum comentário:
Postar um comentário