sábado, 13 de dezembro de 2025

MORRE HAROLDO COSTA

Do g1 Rio

Haroldo Costa, ator e comentarista de carnaval, morre aos 95 anos no Rio

Diretor e comentarista de carnaval começou a trabalhar na Globo como diretor de musicais e foi diretor e jurado de programas de auditório.

O ator, diretor e comentarista de carnaval Haroldo Costa morreu aos 95 anos neste sábado (13), no Rio de Janeiro. Ele enfrentava alguns problemas de saúde por conta da idade avançada e passou por internações recentes. A informação foi confirmada pela família nas redes sociais dele. O velório será na quadra do Salgueiro, na segunda-feira (15).

Nascido no Rio de Janeiro, ele começou a trabalhar na Globo como diretor de musicais e foi diretor e jurado de programas de auditório.

Estrelas como Dercy Gonçalves, Chacrinha e Moacyr Franco, foram dirigidas por ele. Haroldo Costa começou a carreira profissional como ator, no antigo Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento.

Participou da montagem de 'O Filho Pródigo', e teve como colegas de grupo nomes que fariam história na própria Globo, como Ruth de Souza, Grande Otelo e Milton Gonçalves. Seria no teatro, inclusive, que teria seu primeiro êxito profissional. Haroldo Costa viveu o protagonista da peça 'Orfeu da Conceição', e foi o primeiro ator negro a atuar no Theatro Municipal do Rio.

Em 1999, atuou na minissérie 'Chiquinha Gonzaga', de Lauro César Muniz, no papel de Raymundo da Conceição. Voltou a atuar em uma minissérie da emissora em 2012, quando viveu o seu Aloysio em 'Suburbia', de Paulo Lins e Luiz Fernando Carvalho.

Mas, foi no carnaval que deixou sua marca registrada. Em entrevista ao Memória Globo, ele disse:

"Meu pai era carnavalesco, saía no carnaval. Eu sempre gostei, já escrevi vários livros sobre o carnaval, pretendo escrever mais alguns ainda, porque acho o carnaval uma coisa essencial que define a gente como brasileiro. Acho que a definição mais correta do brasileiro é feita através do carnaval, eu acredito piamente nisso."

Haroldo Costa integrou o corpo oficial de jurados dos desfiles organizados pela Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Abriu mão da função em 1963, segundo afirmou, após um desfile da agremiação Acadêmicos do Salgueiro, da qual se tornou torcedor. Era integrante do corpo de jurados do Estandarte de Ouro.

Haroldo Costa é autor de diversos livros sobre o carnaval carioca, como 'Salgueiro: Academia de Samba' (1984), '100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro' (2001) e 'Ernesto Nazareth – Pianeiro do Brasil' (2005). Também assinou a produção de grandes espetáculos musicais sobre o samba.

Em 2023, Haroldo Costa assinou a curadoria da exposição 'Heitor dos Prazeres é meu nome', no CCBB-Rio, junto com Raquel Barreto e Pablo León de La Barra.

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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O CRIME NA POLÍTICA

Merval Pereira, O Globo

Para surpresa de ninguém, e isso é o mais grave, a Assembleia Legislativa do Rio votou pela soltura de seu presidente, Rodrigo Bacellar, preso por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) sob a acusação de vazar informações de uma ação da Polícia Federal

Para surpresa de ninguém, e isso é o mais grave, a Assembleia Legislativa do Rio votou pela soltura de seu presidente, Rodrigo Bacellar, preso por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) sob a acusação de vazar informações de uma ação da Polícia Federal (PF) contra o ex-deputado TH Joias, ligado à facção criminosa Comando Vermelho. A infiltração do crime organizado nas instituições políticas brasileiras é um fato, e a votação de ontem confirma que, no Rio, ela já está impregnada no cotidiano. O presidente da Alerj era um potencial candidato à sucessão de Cláudio Castro ao governo do estado, apoiado pela máquina política bolsonarista que tenta se organizar para enfrentar o atual prefeito Eduardo Paes, apoiado por Lula. O berço do bolsonarismo está, portanto, dominado pelo crime organizado, e também por isso a disputa com o STF recende a retrocesso no combate à corrupção.

O paradoxo da situação é que o STF está do lado certo, assim como o governo petista, que apresentou um projeto nacional de segurança pública tendo como um dos pilares o combate à corrupção. Os bolsonaristas, quando estiveram no poder, retrocederam no combate à corrupção para proteger a família Bolsonaro. Agora acusam o governo petista de corrupto e o STF de cúmplice do petismo por ter soltado Lula da prisão para concorrer à Presidência em 2022 e por ter acabado com a Operação Lava-Jato, talvez a mais importante ação da Justiça contra a corrupção no Brasil.

Quando um ministro do STF protege com sigilo total as investigações sobre corrupção no Banco Master, dias depois de ter viajado para ver a final da Libertadores em companhia do advogado de um executivo do banco no jatinho privado de um empresário, ou quando outro colega seu tenta impedir que o Senado possa atuar no impeachment de ministros do Supremo porque políticos de direita prometem fazê-lo na próxima legislatura, o que se tem é puro suco de brasilidade negativa — ações desencontradas que não são de direita ou esquerda, mas personalistas e fisiológicas.

Numa disputa eleitoral polarizada como promete ser a do próximo ano, o governo atual, apesar dos pesares, tinha vantagem quando o ex-presidente Bolsonaro anunciou que seu filho Flávio seria candidato. Evidentemente o mercado sentiu que a chance de Flávio vencer Lula é mínima, quase não existe; por isso a Bolsa caiu e o dólar subiu quando ele anunciou a candidatura, e aconteceu o contrário quando admitiu que poderia desistir, mas cobraria um preço. Se o anúncio da candidatura foi surpreendente, a admissão de que pode não ser a decisão final foi muito apressada para ter algum efeito.

O problema é que Flávio não tem voto para ganhar eleição, e não é crível a informação de Valdemar Costa Neto, presidente do PL, de que Bolsonaro é uma máquina de transferir votos. Fernando Haddad já provou que nem Lula transfere tantos votos. Tudo indica que, mais uma vez, os “estrategistas” do clã Bolsonaro erraram na mão, possivelmente pensam em negociar a candidatura em troca da anistia ao ex-presidente. Mas não acontecerá. A receptividade do Centrão foi péssima. O grupo ficou quieto, aguardando os próximos passos. O candidato deles é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que tem mais potencial de votos se apoiado por Bolsonaro e só se candidatará se tiver esse apoio.

Caso contrário, fica aberta uma avenida para outros candidatos de direita que não sejam tão ligados a Bolsonaro, como Ratinho Jr., do Paraná; Ronaldo Caiado, de Goiás; ou Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul — todos já se movimentando. Flávio ficará com o nicho de bolsonaristas radicais e não fará nem cócegas na eleição. O candidato de direita que se viabilizar para o segundo turno terá todas as condições de ser competitivo contra Lula.

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VIOLÊNCIA E A CRISE DA MASCULINIDADE

Artigo de Fernando Gabeira

No fim de novembro, um homem atropelou propositalmente uma mulher, arrastando-a por mais de 1 quilômetro. Ela teve as pernas amputadas. Os casos de violência aguda não cessam de aparecer, ampliando as estatísticas de feminicídio no Brasil. Talvez valha a pena analisar isso como problema mais profundo. A grande transição vivida pela sociedade merece uma visão política mais ampla.

Nos Estados Unidos, o debate é intenso, como mostra Oliver Stuenkel. O que acontece com os homens, perguntam os analistas? O desempenho deles é mais baixo nas escolas e universidades, eles sofrem mais de depressão e alcoolismo e são mais inclinados ao radicalismo político. Um dos setores mais violentos da extrema direita são os celibatários involuntários (incels), que atacam feministas nas redes sociais, atribuindo a elas seu fracasso sentimental. Eles inspiraram um jovem que matou dez pessoas em Toronto.

Conservadores acham que o caminho é limitar a ascensão profissional e educacional das mulheres. Segundo eles, isso afeta a imagem masculina, baseada na expectativa de salários mais altos e menos tempo para trabalhos domésticos. O problema é que o gênio não pode mais voltar para a lâmpada. Duas em cinco famílias americanas têm mulheres como provedoras.

Como mostra Stuenkel em post sobre a crise americana, as saídas apresentadas até agora para o problema não são muito eficazes. O livro “Masculinidade”, do senador Josh Hawley, propõe coragem e resiliência, conselhos que valem para todos, homens e mulheres.

No caso brasileiro, ainda é preciso avançar nas políticas que garantem igualdade de condições para as mulheres. E sobretudo tentar atenuar a violência desse período de grande transição. Um dos caminhos que me parecem corretos desde o século passado é a criação de abrigos para mulheres espancadas. Elas precisam sair de casa. Forçadas a conviver com o agressor, muitas são assassinadas.

Mas não existe ainda reflexão sobre o que fazer com a crise masculina, que, por meio da internet, torna-se muito parecida com a dos Estados Unidos. O homem que atacou o site de Janja declarou que conhecia os incels. Há muitas razões para tentar abordar a crise masculina numa transição irreversível. A mais importante é evitar que as mulheres sofram. A outra, mais estratégica, é evitar que essa frustração masculina seja canalizada pela extrema direita e se revele como uma de suas alas mais combativas.

A onda de violência contra mulheres é apenas uma face dessa imensa crise. Estamos no meio dela, não temos soluções prontas, mas o debate precisa começar. Dos caminhos que surgiram, a radicalização dos incels é a mais perigosa. O retorno conservador à vida doméstica tradicional se mostra cada vez mais improvável diante do avanço da sociedade. Resta apenas a adaptação construtiva, por meio de uma luta cultural em que se fortaleçam modelos saudáveis de masculinidade, e o trabalho na educação levando em conta que meninos e meninas enfrentam problemas específicos, evidentemente sem recuar nas conquistas femininas.

Artigo publicado no jornal O Globo em 09 / 12 / 2025

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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

NUMA BRASÍLIA QUE BUSCA BLINDAGEM, QUEM A PERDEU FIXA PREÇO

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Bolsonaro inverte o jogo e mostra que a unidade da direita deveria interessar mais a quem ainda não perdeu sua liberdade

O Centrão pretendia relegar o bolsonarismo a uma máquina recauchutada de votos posta para trabalhar em troca de uma promessa futura de indulto. A candidatura do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) mostra que o ex-presidente quer conjugar o verbo no presente e trocar um indulto por anistia. Vale-se, para isso, do ambiente conturbado no Congresso com a queda de braço com o Supremo Tribunal Federal. A blindagem que, em diferentes gradações, tanto parlamentares quanto togados temem perder já não é mais uma amarra para Jair Bolsonaro. Por isso, paradoxalmente, é quem tem mais liberdade no tabuleiro.

É isso que se depreende dos primeiros movimentos do primogênito, com o anúncio de sua pré-candidatura na sexta e sua primeira entrevista neste domingo. A gaiatice com que fala do “preço” para negociar sua candidatura, propondo lances aos jornalistas presentes, é a demonstração de quem sabe das dificuldades postas na mesa. O Centrão e seu candidato, o governador Tarcísio de Freitas, têm pressa, mas a escala de tempo de quem tem uma pena de 27 anos a cumprir, e pelo menos sete em regime fechado, é outra.

A carteira da OAB, que lhe franqueia visitas mais frequentes ao pai, dá ao senador a prerrogativa de ser seu interlocutor preferencial. Foi assim que o primogênito do ex-presidente tornou-se a fonte, inclusive do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, administrador de empresas de formação, de que é o escolhido do ex-presidente para disputar a Presidência da República em seu lugar. E é também nesta condição que se apresentará aos presidentes de partido com quem se reúne nesta segunda - Costa Neto, o senador Ciro Nogueira (PP-CE), Antonio Rueda (União) e o deputado federal Marcos Pereira (Republicanos), além do líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (RN).

O mau-humor do Ibovespa na sexta respondeu à indisposição de Bolsonaro em aderir à candidatura de Tarcísio, mas os desdobramentos só confirmaram que Bolsonaro está para jogo. E que Flávio é o canal desta negociação. Se não for oferecido aquilo que o bolsonarismo quer, da anistia do pai ao espaço nos palanques regionais, a família vai de candidatura própria. Que pode ser Flávio - “um Bolsonaro diferente, mais centrado e que conhece Brasília”, como se definiu neste domingo - ou não.

O que falta em Flávio Bolsonaro de viabilidade eleitoral lhe sobra de capacidade de negociação. É quase o inverso de Michelle, que tem viabilidade e capacidade de negociação, mas quer fazer seu próprio grupo político dentro do PL, impermeável aos enteados.

Antes de se anunciar como o escolhido do pai, Flávio foi obrigado a se desculpar junto à ex-primeira-dama e a recuar da costura do PL no Ceará, onde o presidente local do partido, o deputado federal André Fernandes, pretendia firmar uma aliança para apoiar a candidatura do ex-ministro Ciro Gomes ao governo do Estado, contrariando o apoio anunciado por Michelle ao senador Eduardo Girão (Novo-CE).

Michelle resgata a antipolítica cavalgada pelo marido em sua ascensão à Presidência em 2018 ao se insurgir contra uma aliança, no Ceará, com aquele que, até outro dia, chamava Bolsonaro de “picareta do baixo clero”. É muito mais temida pelo entorno de Tarcísio do que Flávio, como o Datafolha de domingo o confirmou.

O telhado de vidro do senador, exibido à exaustão pelo próprio Ciro Gomes, das rachadinhas à casa de R$ 6 milhões em Brasília com juros subsidiados do BRB, pode ganhar um adendo. Sua mobilização em frente à casa do pai, disfarçada de vigília, no dia em que Bolsonaro violava a tornozeleira eletrônica, presumivelmente para fugir, pode vir a colocá-lo como alvo do STF por obstrução de justiça.

Abertura à negociação não tem faltado a Tarcísio, que tem prestigiado até mesmo aliados que abrigaram tentativas de proteger as finanças do crime organizado - do deputado federal e relator do PL Antifacção, Guilherme Derrite (PP-SP), ao governador do Rio, Claudio de Castro, litigante em defesa da Refit. A dúvida é se, além de sobreviver à prisão de Jair Bolsonaro, esta aliança entre a direita e a extrema-direita o fará também em relação à ofensiva redobrada do Estado policial lulista. A reação negativa de potenciais dos alvos, com quem Flávio Bolsonaro se reunirá, à divisão deste campo demonstra que a expectativa de poder e de blindagem andam juntas.

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SUPREMO FAZ 'ATAQUE PREVENTIVO'

Carlos Pereira, O Estado de S. Paulo

Supremo faz ‘ataque preventivo’ diante da iminência de perda de poder

Antes que os poderes sejam reduzidos, o Judiciário aumenta suas defesas – aqui e no restante do mundo

A decisão do ministro Gilmar Mendes – restringindo a possibilidade de pedidos de impeachment contra ministros do STF exclusivamente à Procuradoria-Geral da República – foi recebida com surpresa e acusada, por alguns, de autoproteção corporativa. Mas, ao contrário do que parece, o movimento deve ser interpretado como parte de um fenômeno bem documentado na literatura de ciência política e do Direito comparado: Cortes reagindo preventivamente quando percebem ameaça política real.

Em democracias, tribunais constitucionais dependem de legitimidade e de estabilidade institucional para exercer suas funções. Quando ambos os pilares começam a estremecer por ataques diretos de outros Poderes, é comum que as Cortes adotem decisões que funcionam como escudos preventivos contra tentativas de redução de suas competências ou capturá-las politicamente.

Esse comportamento é previsível. Instituições não são atores neutros em ambientes de conflito. Tom Ginsburg e Aziz Huq mostram que, quando os custos de inação superam os custos de ação, Supremas Cortes tendem a “endurecer” e produzir jurisprudência defensiva, destinada a aumentar sua resiliência diante de ameaças externas. Da mesma forma, estudos recentes mostram que o desgaste da confiança pública no Judiciário, hoje observável em várias democracias, incentiva movimentos estratégicos de autopreservação por parte das Cortes.

O caso brasileiro se encaixa perfeitamente nesse padrão. O Congresso discute, há meses, propostas para reduzir poderes do STF. Nesse ambiente, a probabilidade de uma reação preventiva aumenta. A decisão de Gilmar Mendes, nesse sentido, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um tabuleiro institucional mais amplo.

Não se trata de um fenômeno brasileiro. Em Israel, por exemplo, a High Court of Justice realizou um movimento semelhante em 2023-2024, quando o governo de Binyamin Netanyahu tentou aprovar reformas para enfraquecer a Corte. A resposta do Judiciário israelense foi clara: decisões robustas, assertivas e coordenadas para bloquear, antes que fosse tarde, a erosão de suas competências. O que ocorreu ali se tornou um caso paradigmático de preemptive strike judicial – uma reação institucional à iminência de perda de poder.

O mesmo mecanismo ajuda a explicar o comportamento do STF agora. Quando o Legislativo sinaliza que pretende mudar as regras do jogo, a tendência é que o tribunal identifique a conjuntura como perigosa. Se o sistema político ameaça alterar os pesos e contrapesos, a resposta do Judiciário tende a ser justamente reforçá-los.

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'TARCÍSIO NÃO ENTRARÁ PARTIDO NAS ELEIÇÕES'

Marcos de Mora e Souza / Valor Econômico

Lara Mesquita diz que governador tomará sua decisão eleitoral só em março, quando terá que escolher se afasta ou não do governo para se candidatar; naquele momento, terá conversa definitiva com Bolsonaro

O ex-presidente Jair Bolsonaro, que cumpre pena de prisão por tentativa de golpe de Estado, escolheu seu filho Flávio - conforme este anunciou na sexta-feira - para representá-lo nas eleições para a Presidência da República em 2026. Para Lara Mesquita, cientista política e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, o anúncio deve ser encarado como um movimento provisório e parte de uma jogada política que busca dar munição à família nas negociações com o próprio campo da direita, sobretudo com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

No domingo (7), dois dias após o anúncio da pré-candidatura, Flávio admitiu que pode não levar o projeto até o fim. "Eu tenho um preço para isso. Vou negociar", disse a jornalistas, sinalizando que esse "preço" seria a aprovação de uma anistia aos condenados por atos golpistas, que poderia livrar seu pai da prisão. O senador afirmou que vai se reunir nesta segunda-feira (8) com dirigentes de partidos de direita para tratar de sua participação nas eleições.

O governador de São Paulo tem aparecido como o nome mais forte do bolsonarismo para a disputa com o presidente Lula ao Planalto no próximo ano. Mesquita avalia que Bolsonaro nutre duas grandes expectativas em relação ao candidato que vier a disputar pela direita: que defenda suas bandeiras, de modo a mantê-lo relevante como referência política, mesmo preso; e que faça o possível para anistiá-lo.

Mas são demandas que Tarcício (muito mais do que alguém da família) talvez tenha dificuldades de bancar, avalia a cientista política. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O que parece estar por trás do cálculo de Bolsonaro de indicar o senador Flávio Bolsonaro como pré-candidato ao Planalto?

Lara Mesquita: Primeiro, eu considero que a indicação do Flávio Bolsonaro seja algo de momento. Eu não tomaria isso como algo muito definitivo. O ex-presidente Bolsonaro tem essa forma de atuar, de ir e voltar. Ele havia dito antes que dava carta branca para Tarcísio de Freitas fazer os movimentos necessários e agora apoia o Flávio, segundo ele, Flávio, anunciou. Mas essa escolha pode ser uma maneira de pressionar por acordos que poderão ser negociados com o PL, com uma candidatura do Tarcísio, com quem quer que seja. Basicamente, pode ser um meio de dizer o seguinte: se vocês não se acertarem e não fecharem um pacote com a gente, a gente já tem o Flávio como candidato.

Valor: O que entraria no pacote?

Mesquita: Poderia ser uma negociação em relação à vice numa chapa de Tarcísio e também chapas de senadores e governadores. Essa movimentação dos Bolsonaro pode ser uma sinalização para o governador, para que ele negocie com o grupo da família, senão esse grupo pode não apoiá-lo. E sem o apoio da família eu acho que o Tarcísio não sai candidato.

Valor: O que o ex-presidente espera do candidato que ele vier a apoiar em 2026?

Mesquita: Entendo que Bolsonaro tenha duas demandas. Uma delas, com certeza, é ter um candidato que se comprometa a fazer o possível para indultá-lo, para ele sair da prisão. A segunda demanda é ter um candidato que defenda bandeiras dele, o que faria como que ele ficasse vivo politicamente. Ou seja, que ele continuasse sendo uma figura importante na política brasileira, que continuasse sendo sempre consultado, mantendo, apesar de preso, sua presença na política.

Valor: Tarcísio aparece melhor nas pesquisas do que Flávio e é visto como candidato preferido entre empresários e investidores. Nessa condição, ele poderia prescindir de um apoio declarado de Bolsonaro?

Mesquita: Eu acho que ainda não porque o Bolsonaro ainda carrega consigo uma imagem importante. Existe a expectativa de que o candidato ungido por Bolsonaro comece com seus 20% de intenções de voto, pelo menos. E isso pode significar mais facilidade para articular apoios, mais tempo de TV, arrecadação de recursos. Qual é o medo do Tarcísio? Se ele e Flávio saem candidatos e se o Flávio passa para o segundo turno, ele terá perdido o governo de São Paulo e ficará sem nada. Então ele, na minha avaliação, não vai entrar partido na disputa ao Planalto. Ele só vai entrar na disputa se for um jogo mais ou menos ganho.

Valor: Tarcísio ganhará ou perderá apoio eleitoral se colocar como um dos motes centrais de campanha a promessa de anistia?

Mesquita: Vamos lembrar que em 2022, a diferença entre Lula e Bolsonaro foi muito pequena. Tarcísio acha que poderá trazer aqueles 2% do eleitorado que apoiaram Lula. E acha que se ele fizer uma campanha num determinado tom vai atrair esses eleitores que fizeram a diferença em 2022. Mas isso dependerá, em parte, de como esses eleitores vão reagir em relação a um discurso de anistia a qualquer custo de Bolsonaro. Neste momento talvez Tarcísio entenda que possa fazer esse discurso porque até a campanha começar terá passado algum tempo e ele conseguirá, talvez, matizar declarações sobre anistia. Mas depende da capacidade dele de convencer Bolsonaro de que não é uma boa estratégia passar a campanha inteira batendo nessa tecla e não ficar refém do mote da anistia. Uma parcela da vitória de Lula veio de eleitores que nunca tinham votado no PT. A gente pode chamar de órfãos do PSDB. Eram eleitores que tentaram Bolsonaro em 2018, mas em 2022 disseram que não era possível repetir o voto.

Valor: O quanto atrapalha as pretensões de Tarcísio para 2026 a declaração de Bolsonaro em favor do senador Flávio Bolsonaro?

Mesquita: Para o Tarcísio, eu não acho que seja ruim essa declaração do Bolsonaro. Ele continua como governador, continua a fazer as costuras de maneira silenciosa e sem estar com foco, sem ganhar muita pedrada. Ele vai ter que tomar a decisão eleitoral em março quando terá que decidir se afasta do governo ou não para se candidatar e, então, naquele momento, terá uma conversa definitiva com Bolsonaro e colocar as cartas dele.

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PRÉ-CANDIDATURA DE FLÁVIO EMBARALHA DIREITA PARA 2026

Joelmir Tavares, Valor Econômico

Leitura inicial do entorno de Tarcísio é a de que movimento do filho de Bolsonaro faz com que governador saia, momentaneamente, de foco

O anúncio de que o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi escolhido para receber o apoio do pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), na corrida ao Palácio do Planalto em 2026 foi visto com surpresa e cautela por parte das lideranças de direita, que agora refazem cálculos. Fontes ouvidas pelo Valor relataram um cenário de ceticismo, neste primeiro momento, e o desejo de observar os desdobramentos. No núcleo duro do bolsonarismo, contudo, as manifestações têm sido em tom de entusiasmo com a hipótese.

No entorno do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que vinha sendo tratado como o nome predileto de setores da direita e do Centrão, a leitura inicial é a de que o movimento de Flávio faz com que ele saia de foco, ao menos momentaneamente. Tarcísio foi avisado por Flávio da decisão do ex-presidente antes de a informação vir a público, em coluna do portal Metrópoles, na tarde desta sexta-feira (5). O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, confirmou a decisão da legenda no mesmo dia.

Dois dias depois, no domingo (7), no entanto, Flávio admitiu que pode não levar a candidatura até o fim. "Eu tenho um preço para isso. Vou negociar", disse, sinalizando que esse "preço" seria a aprovação de uma anistia aos condenados por tentativa de golpe de Estado, que poderia livrar o seu pai da prisão. Flávio afirmou ainda que vai se reunir nesta segunda-feira (8) com dirigentes de partidos de direita para tratar sobre sua candidatura.

Tarcísio é visto como o nome com maior possibilidade de construir consenso para que a oposição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tente se unificar ainda no primeiro turno, evitando uma pulverização de votos. Os governadores de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que têm pré-candidaturas lançadas, devem adaptar suas estratégias caso Flávio esteja no páreo. Na sexta-feira, ambos confirmaram que concorrerão à Presidência em 2026.

Aliados de Tarcísio endossaram nos bastidores, antes do anúncio de Flávio, a defesa de que ele apostasse na tentativa de reeleição, na expectativa de uma vitória tida como praticamente certa no Estado. Um dos pontos repetidos pelos entusiastas desse plano era o de que Lula se mantém competitivo e dispõe de um trunfo eleitoral que nenhum dos rivais possui, o controle da máquina pública.

Segundo aliados de Tarcísio, a indicação de Flávio fará com que o governador concentre sua energia na tentativa de reeleição, já que ele se recusa a discutir qualquer plano nacional sem a bênção do ex-presidente. Os próximos passos, nas palavras de um auxiliar, devem ser abraçar a pré-candidatura de Flávio e oferecer um palanque forte para o aliado no Estado de São Paulo em 2026. Essa mesma fonte, no entanto, pondera que a confirmação da candidatura de Flávio ainda depende de uma série de fatores.

Para um dirigente de um partido de centro-direita que acompanha as tratativas eleitorais em São Paulo, o movimento de Flávio soa como precipitado, mas pode embutir um desejo da família de ocupar um vácuo político, na intenção de manter uma mobilização popular em torno de Bolsonaro, agora preso.

Governador de SP é visto como nome com maior possibilidade de construir consenso

Interlocutores de Caiado e Zema especulam que os dois ganharam um estímulo para manterem suas pré-candidaturas, já que as pressões para que eles abram mão de concorrer em nome de Tarcísio devem arrefecer.

Caiado foi às redes pedir respeito à decisão de Bolsonaro e dizer que ele tem o direito de “buscar viabilizar” Flávio - mas que seu plano é continuar na disputa para ajudar a “tirar o PT do poder”.

Já Romeu Zema afirmou nas redes que a candidatura do senador carioca “faz todo sentido”. “Quando anunciei minha pré-candidatura ao presidente Bolsonaro ele foi claro: múltiplas candidaturas no 1º turno ajudam a somar forças no 2º. Então faz todo sentido o Flávio apresentar seu nome à Presidência. É justo e democrático”, escreveu o governador na sexta-feira (5).

Um conselheiro ligado a Zema faz, sob reserva, a avaliação de que uma candidatura de Flávio, caso se efetive, tende a beneficiar principalmente Lula, que teria a chance de rivalizar novamente com o sobrenome Bolsonaro e explorar os índices de rejeição do eleitorado à família. Um dos debates feitos na direita nos últimos meses é se a presença de um Bolsonaro numa eventual chapa mais ajudaria ou atrapalharia.

Na última segunda-feira (1º), durante evento na capital paulista, o secretário de Governo e Relações Institucionais do Estado de São Paulo, Gilberto Kassab, afirmou que Tarcísio cometeu um erro ao “exagerar” recentemente nos acenos a Bolsonaro e à agenda da família.

Em setembro, o governador chegou a chamar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de “ditador”, ao criticar o processo que tinha como alvo Bolsonaro e outros acusados de tramar um golpe de Estado após as eleições de 2022.

Kassab, que é presidente nacional do PSD, disse que o governador “não pode se apresentar como bolsonarista”, ao comentar uma possível candidatura presidencial dele. O secretário, que sinalizava intenção de apoiar Tarcísio na disputa presidencial, disse que o aliado poderia “perder a eleição” se não se apresentasse como alguém de centro-direita e “um líder acima de tudo”.

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DOUTORES POR EXPERIÊNCIA DE VIDA

Preto Zezé, O Globo

Celso Athayde, Mano Brown e Emicida já eram referência para a favela muito antes da academia

Recentemente estive numa universidade para testemunhar um momento histórico: o título de honoris causa concedido a meu irmão Celso Athayde. Enquanto ele subia ao palco, passou um filme na minha cabeça. Não era só sobre ele. Era sobre uma linhagem inteira, uma genealogia da rua, da favela e da inteligência orgânica brasileira que, enfim, começa a ser reconhecida pelas instituições formais.

Há algum tempo, Mano Brown recebeu honoris causa da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Depois, Emicida foi homenageado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Três homens, três trajetórias, três impactos profundos na cultura brasileira. E os três — cada qual numa etapa da minha vida — foram a base da minha formação como homem preto, favelado, politizado e orgânico.

Mano Brown foi meu primeiro professor. Sem nunca ter me visto, me ensinou a organizar o ódio, a revolta, o senso de injustiça. A transformar dor em consciência, raiva em direção, caos em linguagem. Suas letras foram alfabetização emocional e política para milhares. Ele nos deu régua, compasso e norte.

Emicida é a continuidade da minha geração. Carrega nas palavras a herança das ruas, mas com uma capacidade extraordinária de ampliar debates, tensionar o país e ocupar espaços onde antes não imaginávamos estar. Produz um rap consciente e sofisticado, elabora modelos de negócio inovadores, constrói pontes. É um dos grandes intelectuais públicos do Brasil, mesmo que o país custe a admitir.

Athayde vem antes de todos nós. Abriu caminhos que ainda aprendemos a percorrer. Esteve nas batalhas que impulsionaram o rap brasileiro, participou do momento mais feroz do hip hop, quando a cultura precisava de mãos firmes. Fundou a Central Única das Favelas, criou a primeira holding de favelas do mundo e recebeu reconhecimento internacional ao ser premiado pelo Fórum Econômico Mundial de Davos como empreendedor de impacto. Ele não só abriu a porta. Construiu a casa, levantou a laje e chamou a vizinhança.

Esses três homens, que chamo de irmãos e parentes, sempre foram doutores da vida. Já eram intelectuais orgânicos muito antes do diploma. Já eram referência para a favela muito antes da academia. As universidades apenas oficializam o que a rua proclamou há décadas.

Essa energia, a força dessa linhagem, está condensada no novo trabalho do Emicida: “Emicida Racional VL3”. Ali, ele acessa algo raro: uma literatura que nasce da dureza das quebradas, mas dialoga com a beleza dos palácios; uma gramática sofisticada, poética; uma inteligência que costura histórias, dores e vitórias. Uma obra que reúne três gerações de pensamento negro, favela, filosofia e criação.

Estive na audição do disco. A cada verso, sentia as peças se encaixando. Era impossível não lembrar como cada um desses homens moldou etapas distintas da minha vida, como cada elo dessa corrente sustenta o momento que vivemos agora, num tempo de rivalidade, algoritmos e desumanização acelerada. Eles nos devolvem humanidade, profundidade, beleza e horizonte.

No meio de um país que insiste em se esquecer de si, eles representam um Brasil que o Brasil não conhece. Um Brasil que sempre existiu, mas permaneceu invisibilizado. Um Brasil potente, bonito, altivo, apesar das tragédias e além delas.

Por isso, hoje digo com orgulho: tenho doutores na família. Não porque receberam o título, mas porque sempre foram. São eles que fazem pulsar o novo no Brasil e reformulam a imaginação do país.

Muito obrigado, meus doutores. Muito obrigado, meus irmãos.

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domingo, 7 de dezembro de 2025

JULGAMENTO DE GENERAIS NÃO É SÓ FATO INÉDITO, MAS ATESTADO DE VELHICE DE UMA CASTA

Muniz Sodré, Folha de S. Paulo

Isso se aplica ao momento presente da escuridão que nos segue desde a formação moderna do país

Velhice aqui pautada não é o amadurecimento biológico; é o fato institucional sem a necessária renovação existencial

Diz um provérbio russo que peixe começa a feder a partir da cabeça ("ryba is galovy gniot", para conferência dos cultores da língua). Como em todo provérbio, há um jogo entre a significação aparente e o sentido oculto. Isso se aplica ao momento presente da escuridão que nos segue desde a formação moderna do país: o julgamento de generais, almirante e oficiais menores não é só fato inédito nas Forças, mas também atestado de velhice de uma casta, entranhada como um alien nas vísceras da República.

Refletindo sobre a idade avançada em seu "De Senectute — o tempo da memória", o pensador italiano Norberto Bobbio relata um lamento ponderado de idosos: "Não é que a velhice seja ruim, o problema é que dura pouco". Bobbio pergunta-se "será mesmo que dura pouco?" E contrapõe um verso de Dario Bellezza: "Fugaz é a juventude/ um suspiro a maturidade/ avança terrível a velhice/ e dura uma eternidade".

É que o pensador também rumina sobre os artifícios que tanto prolongam a vida quanto impedem de morrer. A decrepitude pode estender-se como um fardo. "Ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou subjetiva". As duas últimas coexistem em aspectos grotescos da política, como o dos parlamentares vitalícios, maldosamente comentados na imprensa: "Era lindo ver o triste desfile dos senadores vitalícios, cada um mais cadavérico que o outro; uma velha Itália que ninguém quer mais e que sozinha sepultou a si mesma" (Pietro Buscaroli, musicólogo). E mais: "Velhos, mas podres de tanto veneno e rancor, sobras ilícitas e condenáveis do regime das bombas e das tangentes".

Como no aforismo do peixe, há outro sentido nessas referências italianas. "Velhice", última fase da vida", diz Bobbio, "exprime um ciclo que se avizinha do fim. Por isso, ela é também empregada metaforicamente para assinalar a decadência de uma civilização, de um povo, de uma cidade". Mesmo citando clássicos, como Cícero, que fazem apologia da sabedoria da idade, ele sustenta: "quem louva a velhice não a viu de perto". Notícias recentes de Trump o reportam cochilando acordado ou preocupado apenas em aumentar seu nababesco salão de baile dourado em construção.

Mas a velhice aqui pautada não é o natural amadurecimento biológico. É principalmente o fato institucional sem a necessária renovação existencial. É o que faz do bicentenário Parlamento nacional exemplo de decrepitude. E nos golpistas, peixes grandes condenados, não carece ver de perto sinais de doença física e mental. Por mais distantes, exibem não senioridade, mas uma velhice pesada tanto para si mesmos quanto para outros.

Para si, porque contemplam um futuro despido das patentes e medalhas que lhe fazem a glória pessoal. Para outros, efeitos cansativos da vontade de eternizar-se de uma casta que se arroga a tutela da República, desatenta à sua própria degeneração. Dado o estado dessas cabeças, é hora de pensar também com o nariz.

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PESADELO ZERO UM

Bernardo Mello Franco, O Globo

Escolha de Flávio mostra que prioridade de Bolsonaro é manter a franquia familiar

Candidatura do Zero Um divide as direitas e vira pesadelo para Faria Lima e Centrão

A Faria Lima sonhou com Tarcísio de Freitas e acordou com Flávio Bolsonaro. O capitão frustrou quem esperava que ele entregasse seu espólio de votos a um político com outro sobrenome. Na sexta-feira, Jair informou à praça que o candidato é o Zero Um.

Só quem não conhece o ex-presidente acreditou que ele facilitaria o jogo para o consórcio que une os donos do PIB ao Centrão. Bolsonaro nunca deu bola a partidos, acordos ou expectativas alheias. Sempre agiu pela lógica do clã. No poder, descartou e humilhou aliados que atravessaram o caminho dos filhos. Na cadeia, deixa claro que só confia na prole.

Flávio não é um pesadelo para o establishment por suas virtudes. Nem pela ausência delas. O que amedronta são as pesquisas que apontam uma rejeição tóxica aos herdeiros do capitão. Ao ungir o filho, Bolsonaro mostra que sua prioridade não é derrotar Lula. O plano é evitar o fechamento da franquia familiar, mesmo que isso signifique perder a eleição de 2026.

Mercado e Centrão tinham outras razões para preferir Tarcísio. O governador de São Paulo é visto como um político manobrável. Não criaria problemas nem questionaria acordos fechados na campanha. A exemplo dos irmãos, Flávio só deve obediência ao pai. Para cumprir suas ordens, não hesitaria em contrariar aliados e patrocinadores.

O currículo do Zero Um é notável. Em 16 anos na Assembleia Legislativa do Rio, ele se destacou por empregar parentes de milicianos e por ir à cadeia condecorar um matador de aluguel. Nas horas vagas, macaqueou a pregação de Jair a favor da ditadura e da violência policial.

Em 2018, soube-se que o ex-PM Fabrício Queiroz operava um esquema de rachadinha no gabinete de Flávio na Alerj. O Ministério Público identificou os laranjas e denunciou o Zero Um por organização criminosa, peculato, ocultação de bens e lavagem de dinheiro. O caso foi arquivado depois que o Supremo anulou provas obtidas em relatórios financeiros do Coaf.

Senador há sete anos, o Zero Um tem usado o mandato como trincheira para defender o pai. Seu grande feito em Brasília foi comprar uma mansão por R$ 6 milhões no Lago Sul. Questionado sobre a origem dos recursos, ele disse atuar como advogado, mas se recusou a divulgar a lista dos supostos clientes.

A escolha de Flávio representa uma boa notícia para o governo. Sua candidatura divide as direitas e reduz as chances de um palanque robusto contra Lula. Com Tarcísio fora do jogo, as máquinas partidárias do Centrão tendem a abandonar a corrida ao Planalto para se concentrar nas eleições para o Legislativo. Tendo um Bolsonaro como adversário, o petismo poderá resgatar o discurso da frente ampla, que embalou a vitória em 2022.

Se a candidatura do Zero Um não for um balão de ensaio a ser esvaziado até março, os marqueteiros do clã terão trabalho para investi-lo da imagem de presidenciável. O primeiro desafio é treiná-lo para enfrentar um debate sem desmaiar.

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O ORÇAMENTO SEQUESTRADO

Míriam Leitão, O Globo

O Congresso captura parte expressiva do Orçamento, prejudica a governabilidade e distorce o funcionamento da democracia

O presidente Lula disse que o Orçamento foi sequestrado. E foi. O presidente da Câmara, Hugo Motta, disse que as emendas são uma prerrogativa do Congresso. E são. O erro está no valor exorbitante a que as emendas chegaram e no modo como são usadas pelo Legislativo. O montante de R$ 50 bilhões é uma distorção institucional. O fato de a Comissão Mista de Orçamento ter aceitado emendas de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem é uma aberração. É preciso olhar além da briga cotidiana.

Lula falou que 50% do Orçamento foi sequestrado. Na verdade, é 50% dos recursos disponíveis, não do Orçamento como um todo, claro. Mais de 90% do dinheiro vai para despesa obrigatória ou tem destinação estabelecida na Constituição. Sobra pouco, e é esse restante que está em disputa.

A Comissão Mista de Orçamento desrespeitou o eleitor quando aceitou que os deputados Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem tivessem emendas no valor total de R$ 80 milhões. Um mora nos Estados Unidos desde março e não existe previsão legal para o exercício extraterritorial do mandato. O outro foi condenado a 16 anos, é foragido da Justiça, e há uma ordem judicial para que ele seja cassado, que a Câmara ainda não cumpriu. O absurdo passaria batido. Graças à jornalista Malu Gaspar, o país ficou sabendo que o comitê de admissibilidade da CMO havia aceitado o inadmissível. O ministro Flávio Dino então proibiu o Executivo de liberar emendas dos dois parlamentares. A decisão do ministro sequer seria necessária caso o Congresso tivesse tido o mínimo de bom senso.

Uma das funções mais importantes do parlamento é aprovar o Orçamento da União. No Brasil, contudo, virou um tormento a cada ano. Primeiro porque raramente o Congresso respeita o prazo de apreciar a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ela acabou de ser aprovada, em dezembro. A aprovação deveria preceder em meses a análise do Orçamento porque, como o nome diz, é da LDO é de onde saem as bases nas quais a proposta de Orçamento deve ser preparada. Segundo, porque a cada aprovação do projeto das diretrizes ou da lei orçamentária, o Congresso usa o poder que tem para encurralar o Executivo a exigir novas concessões. Sequestro com pedido de resgate.

Em vários países existem emendas parlamentares, em nenhum outro país chegam a esse volume. Além das emendas individuais, há as de comissão e as de bancada. O país viveu o trauma do orçamento secreto no governo passado. Depois do voto da ministra Rosa Weber julgando a prática como inconstitucional, voto seguido pelo plenário da Corte, o Congresso foi dando jeitinhos para continuar liberando despesas sem os critérios legais. O ministro Flávio Dino herdou a causa e toma decisões que o Congresso entende como invasão de outro poder, quando é cumprimento de princípio constitucional. O contribuinte tem o direito de saber como é gasto o dinheiro que ele se esforça para ganhar e que envia uma parte ao poder público, na expectativa de que seja usado de forma sábia e transparente.

O Congresso não tem o direito de abocanhar parte tão expressiva do Orçamento. As emendas não apenas cresceram, tornaram-se impositivas em grande parte. Na LDO deste ano a chantagem sobre o Executivo foi para aceitar que 65% sejam liberadas no primeiro semestre, para ajudar os parlamentares nas eleições. Os fundos partidário e eleitoral também têm volumes extravagantes. Tudo isso distorce o funcionamento da democracia.

O Congresso analisa e aprova o Orçamento. Mas quem executa é o Executivo. Quando o Congresso avança, como tem avançado sobre a execução das despesas, o país passa a viver uma anomalia. É bom lembrar que o crescimento das emendas e o orçamento secreto ocorreram no período em que Jair Bolsonaro estava na Presidência. Ele trabalhou os quatro anos para criar as bases para o golpe. Seu projeto não era governar, era minar a democracia e se perpetuar no poder. Por isso ele não se incomodou em entregar fatias gordas do Orçamento para que o Congresso usasse de forma opaca.

O desabafo do presidente Lula de que o Orçamento foi sequestrado tem razão de ser. Mas o seu próprio partido também se aproveita desse avanço de sinal. É preciso restaurar a normalidade porque a cada ano o Congresso exige mais uma concessão. Desta vez foi a obrigatoriedade de liberar 65% das emendas no primeiro semestre. Isso é problema para qualquer governo.

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O PODER DA BLINDAGEM

Elio Gaspari, O Globo

Gilmar blinda Supremo, Toffoli tranca o Master e CPMI não ouvirá Lulinha

Houve um tempo em que o poder de uma pessoa podia ser medido pela sua capacidade de abrir portas. Hoje, mede-se também pela sua capacidade de fechá-las. Depois da demolição da Lava-Jato esse movimento era previsível, numa escala menor.

1 - Gilmar blinda o Supremo:

Num espaço de poucos dias, o ministro Gilmar Mendes passou a tranca no direito dos cidadãos de abrir processos de impedimento de juízes do Supremo Tribunal Federal. De agora em diante, só quem pode fazer isso é o procurador-geral da República.

Pode parecer que o ministro queira blindar o tribunal diante da possibilidade de a oposição conseguir no que vem o número de senadores capazes de impedir os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino. Parece e é isso mesmo.

2 - Toffoli tranca o Master:

Voando mais baixo, o ministro Dias Toffoli determinou que qualquer processo ou investigação referente ao banco Master, passe ao seu gabinete. O banco de Daniel Vorcaro produziu ligações perigosas e um rombo de R$ 12 bilhões.

A defesa dos diretores do Master pedia a suspensão ampla, geral e irrestrita das investigações, não foi atendida, mas no mesmo dia a Polícia Federal congelou seu trabalho. O processo do Master passou a tramitar sob sigilo.

3 - A CPI não ouvirá Lulinha:

Na quinta-feira, a CPI do roubo contra aposentados, derrubou por 19 votos contra 12 o pedido de convocação de Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha. Horas antes, a repórter Mariana Hubert havia revelado que Edson Claro, ex-funcionário do Careca do INSS, contou à CPI que Lulinha recebeu do finório cerca de R$ 25 milhões, com mesadas de R$ 300 mil para alavancar licitações no Ministério da Saúde. Quem conhece os escurinhos de Brasília estranha essas cifras. É muito dinheiro.

Lulinha vive hoje na Espanha e padece por sua filiação, mas uma CPI que já blindou Frei Chico, ou José Ferreira da Silva, irmão mais velho de Lula, foi rápida ao fechar a porta. Frei Chico é diretor e vice-presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados.

Em 2020 o Sindinapi recebeu do governo R$ 23,3 milhões por conta de cobranças feitas a aposentados. Em 2024 os repasses para o Sindinapi subiram para R$ 154,7 milhões. Em abril passado, quando roubalheira das entidades foi exposta, Frei Chico disse que esperava a apuração de “toda a sacanagem que tem” no INSS. A CPI decidiu não convocá-lo.

O troco do Congresso

Hoje, o troco que o Congresso dará ao governo e ao Supremo Tribunal será o seguinte: será aprovada uma emenda Constitucional elevando de 11 para 13 o número de ministros do tribunal. As duas novas cadeiras serão preenchidas por indicados pelo Senado e pela Câmara.

Na primeira escolha, o Senado indicará o ex-presidente Rodrigo Pacheco. Um tapa de luva em Lula, que o preteriu. A Câmara poderá indicar o deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos. Dois mineiros.Para quem quer soprar as brasas de uma crise institucional, é uma ótima ideia.

Cama de gato

Alguns senadores esperavam receber a indicação de Jorge Messias para derrubá la com 54 votos. 54 é o número de senadores necessários para impedir um ministro do Supremo. Isso explicaria a pressa de Gilmar Mendes para entregar ao procurador-geral a prerrogativa de abrir o processo.

Se os computadores falarem...

O ministro Dias Toffoli determinou que a Polícia Federal entre nos computadores da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde morou a falecida Operação Lava-Jato. Em tese, a PF deverá buscar dados relacionados a uma denúncia do ex-deputado estadual Tony Garcia contra o então juiz Sergio Moro.

Na prática, a PF poderá reabrir o baú das mensagens e diálogos de Moro e dos procuradores que tocaram a Lava Jato. A caixa amarela, provavelmente de Moro, com informações sobre os outros seria apenas o início

Os Bolsonaro

É natural que haja diversas correntes de opinião num partido e que existam malquerenças numa mesma família, mas os Bolsonaro são um ponto fora da curva. O senador Flávio disputa com o deputado Eduardo e ambos não se entendem com a madrasta Michelle que, por sua vez, não se entendia com o vereador Jair Renan. Tudo isso, em público.

Lula com Trump

A proposta feita por Lula ao presidente Donald Trump para que Brasil e Estados Unidos cooperem no combate ao crime organizado, conteve uma pílula envenenada. O mercado americano lucra vendendo armas ao crime e ajudando na lavagem de dinheiro. Trump não quer se meter nisso.

A tática de juntar no combate ao crime as vendas de armas americanas foi inaugurada há mais de um ano pela presidente mexicana Claudia Sheinbaum. Deu certo, e Trump passou a elogiá-la.

Gilmar e Alcolumbre

Ao blindar os ministros do Supremo, Gilmar Mendes tirou das cordas o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. O senador faz milagres com indicações para cargos do Judiciário. Um conhecedor da vida de Brasília garante: pelo menos dois ministros do Supremo foram salvos pelo gongo do Planalto. Um caiu na Comissão; o outro, no plenário.

PT de salto alto

Um conhecedor de governos e de Brasília informa:

“A turma de Lula está surpreendendo pela autossuficiência. Parecem bonecos falantes. Repetem os mesmos argumentos que ouviram no Palácio, com a pose de um senador romano e a inteligência de Primo Carnera.

A mistura do senador romano com a inteligência de Carnera (1906-1967), um boxeador idiota, foi coisa do jornalista Nertan Macedo (1929-1989). O salto alto ia bem com os tucanos, os petistas, ficam desengonçados.

A mala de Bacellar

O presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Rodrigo Bacellar, foi à sede da Polícia Federal tendo R$ 90 mil em dinheiro vivo no automóvel. Por outros motivos, acabou preso.

Trump e o Nobel

Donald Trump ainda não se conformou porque não lhe deram o Prêmio Nobel da Paz. Ele diz que acabou com sete guerras em sete meses, o que é mais uma trumpada, mas o Nobel foi dado a Barack Obama em 2009 sem ele ter acabado com guerra nenhuma.

Landau disse tudo

A economista Elena Landau disse tudo a respeito do rombo dos Correios: a empresa chegou ao fundo do poço, acumulando prejuízos acima de R$ 13 bilhões em apenas três anos. Os responsáveis por esse desastre? Ninguém sabe, ninguém viu.

Lula e o andar de baixo

Em dois anos do governo de Lula 3.0, 8,6 milhões de pessoas deixaram a faixa da pobreza. Essa é a melhor marca desde o início da séria histórica. Conseguiu isso com uma taxa da Selic de 15%. Para os juros. Pelo visto, 2026 será um bom ano para Lula e seus aliados.

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BOLSONARO COBRA O PREÇO FINAL DAS ESCOLHAS DA DIREITA

Igor Gielow, Folha de S. Paulo

Lançamento da candidatura do senador Flávio em 2026 empareda Tarcísio e o centrão, deixando ambos sem opção boa

Se renunciar ao bolsonarismo, campo assumirá traição; se ficar com ele, ganha a radioatividade apontada no Datafolha

A redemocratização brasileira é marcada por contradições. Se o país e o Congresso que o espelha são reinos do conservadorismo de baixa extração, o poder federal passou 20 anos nas mãos de pessoas mais à esquerda, ainda que só nominalmente.

O fastio que emergiu nas ruas de 2013 e em sua mutação à direita em 2016 desaguou no bolsonarismo, que aproveitou-se da implosão do sistema político via corrupção e Lava Jato para propor um novo paradigma —farsesco e golpista, como se provou.

Se no começo apenas militares saudosos da ditadura embarcaram no projeto, logo ele encantaria setores da finança e do empresariado e, principalmente, ganharia tração popular. Alquebrado, o sistema tradicional e a esquerda assistiram à ascensão do hoje prisioneiro Jair Bolsonaro (PL).

O resto é história, sendo notável como o então presidente se dizia dedicado a destruir o sistema, só para abraçá-lo quando sua algazarra tornou-se risco existencial em 2021. Naquele ano, o centrão tomou o governo e o semipresidencialismo atual foi lançado na forma de um mar de emendas.

Votado para fora do poder, inelegível, condenado e preso sem horizonte visível de liberdade, Bolsonaro agora cobra o preço final pela escolha que a direita, em sua maioria, fez ao abraçá-lo. Quer continuar no timão simbólico do navio.

O lançamento da candidatura de seu filho Flávio, que antes do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) era considerado em Brasília um Bolsonaro que proverbialmente sabia usar talheres, pode ou não ser uma farsa, mas seu objetivo já foi alcançado.

O senador do PL-RJ obriga Tarcísio e o centrão a escolhas impossíveis, um estreito de Messina político em que os monstros Cila e Caríbdis ameaçam ambos os flancos das embarcações.

Se apoiarem Flávio, o que observadores agudos acreditam ser inevitável num primeiro momento, o governador paulista e outros ganharão a radioatividade do sobrenome Bolsonaro.

Uma olhada na rejeição de quem o carrega no atual Datafolha é clara: os quatro postulantes, incluindo aí o ex-presidente, estão em patamar que só Lula (PT) enverga. Depois do pai, Flávio é o mais mal colocado, com 38% de eleitores que não votariam nunca nele.

A pesquisa oferece o argumento racional para um rompimento: os Bolsonaros têm desempenho bastante pior no inevitável segundo turno contra o petista se o pleito fosse hoje.

Os governadores competitivos da direita, Tarcísio e Ratinho Jr. (PSD-PR), chegam bem mais perto do presidente e contam com rejeições ínfimas, combinação áurea nas mãos de um bom marqueteiro.

Na mitologia grega, Ulisses optou a travessia pelo lado de Cila, que comia uns marinheiros mas pouparia a nau. Se a direita for por aí, vira traidora e pode perder os 20% do eleitorado que o Datafolha identifica como fiéis ao bolsonarismo, que iriam para alguém do clã.

Assim, ressalvando a distância do pleito, recuos táticos mirando um desmame do bolsonarismo até 2030 e pulverização de nomes são opções tentadoas, e declarações peremptórias agora servirão apenas para ganhar tempo.

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EUA FAZEM CAÇADA INFAME

Dorrit Harazim, O Globo

Trump faz do combate à imigração sua arma política mais potente neste segundo mandado. Demoniza o ‘outro’

A história talvez seja apócrifa, mas é boa. Conta-se que, quando Sam Goldwyn decidiu investir na versão para cinema de “The children’s hour”, primeira obra de dramaturgia da americana Lillian Hellman, ele foi avisado pelos executivos da MGM de que, na peça, as protagonistas eram lésbicas. Temiam, portanto, que os censores da indústria cinematográfica da época impusessem restrições. O chefão de Hollywood, segundo a história, deu de ombros e foi em frente:

— Qual o problema? Façam com que as protagonistas sejam albanesas.

Não sendo americanas, não manchariam a ficção nacional.

Donald Trump tem se alimentado com voracidade desse artifício, produzindo um cruel roteiro de entretenimento pessoal: a criação de inimigos imaginários para consolidar seu poder interno. O histórico de insultos a cidadãos de “países de merda” ou do “Terceiro Mundo”, como gosta de adjetivar, é antigo em Trump e sempre lhe rende manchetes. Também o surto de nativismo cru e asco humano dirigido contra somalis na semana passada, durante uma reunião ministerial na Casa Branca, atingiu o objetivo: obnubilou o restante do noticiário. (Só esqueceram de lhe avisar que Iman, a supermodelo nascida em Mogadíscio e ícone do mundo fashion, fez seu patrimônio líquido de US$ 200 milhões como imigrante nos Estados Unidos.)

Insultos como “[os somalis] são lixo”, “nada fazem além de reclamar”, “chegam aqui saídos do inferno e se queixam o tempo todo”, “eles fedem, não os queremos aqui” foram sendo despejados. O vice J.D. Vance aplaudiu. A secretária de Imprensa da Presidência descreveu a fala presidencial como “momento épico”. Segundo a imprensa americana, foi o único momento de arroubo capaz de manter Trump acordado na reunião. De resto, ele tem aparecido cansado de tanta bajulação e cochila em eventos públicos. Talvez por nunca ter folheado a revista The New Yorker, não deve ter aprendido com o ensaísta E.B. White que “ter e manter inimigos é uma das coisas que mais consomem energia, tempo e vida” de um ser humano.

Trump faz do combate à imigração sua arma política mais potente neste segundo mandado. Demoniza o “outro” indesejado sempre que algum tópico indigesto (caso Epstein, efeito bumerangue das tarifas, perda de popularidade) bate às portas da Casa Branca. E, no caminho, vai destruindo 250 anos de construção de uma sociedade que, mesmo sem conseguir, pretende ser forjada por uma história plural, não por ancestralidade, religião, língua ou raça em comum. As primeiras palavras da Constituição de 1789 são “Nós, o Povo...”.

Mas quem é esse povo? O poema “Nós e eles”, que Rudyard Kipling escreveu em 1917 contra o etnocentrismo imperial britânico, resume o problema na última estrofe: Todas as pessoas de bem concordam,/E todas as pessoas boas dizem:/Todas as pessoas boas, como Nós, são Nós/E todos os outros são Eles!/Mas, se cruzas o mar,/Em vez de atravessar a rua,/Podes acabar (pensa bem!) olhando para Nós/Como um tipo de Eles!

No universo trumpiano, não se busca poesia nem rima. Para Kristi Noem, a estridente secretária de Segurança Interna americana, “é preciso banir totalmente países desgraçados que inundam nossa nação de assassinos, sanguessugas e viciados”. Robert Pape, pesquisador de violência política da Universidade de Chicago, aponta para o caráter desumanizador do linguajar escolhido:

— Não se trata apenas de metáforas vis, elas são particularmente desumanizadoras — disse em entrevista ao New York Times. — Quando você usa a palavra “lixo”, você não se refere a algo humano, e sim a algo descartável.

Na semana passada, o governo Trump suspendeu não apenas a entrada de cidadãos de 19 países, entre os mais pobres e instáveis do mundo. Também interrompeu a concessão de cidadania americana ou emissão de green card a pedidos já aceitos anteriormente. As novas regras podem afetar mais de 1,5 milhão de pessoas com pedidos de asilo pendentes e mais de 50 mil que haviam recebido abrigo durante o governo anterior, do democrata Joe Biden.

Nessa caçada higienizante que tem por meta deportar uma média de 3 mil imigrantes ao dia, agentes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos e da Polícia de Fronteira (Border Patrol), ambos subordinados ao Departamento de Segurança Interna, se atropelam em ações que algum dia envergonharão quem as ordenou, executou, incentivou, aplaudiu ou fingiu que não viu. Até janeiro de 2026, está em curso a contratação, treinamento e posicionamento de 10 mil novos agentes de deportação. Os aprovados recebem um bônus de US$ 50 mil (cerca de R$ 265 mil) e isenção de pagamento de empréstimo estudantil, além de outros mimos. Natal gordo. E infame.

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sábado, 6 de dezembro de 2025

O LADO OCULTO DA PRISÃO DOS GENERAIS

José de Souza Martins, Valor Econômico

A condenação tanto do ex-presidente da República quanto de oficiais superiores das Forças Armadas é uma espécie de último e tardio episódio da proclamação de 15 de novembro de 1889

O dia 25 de novembro de 2025 poderá ficar na história dos marcos de transformações e mesmo supressão de valores supostamente pétreos da organização política do país. Aqueles que preservaram, em nossa república anômala, exceções à regra da igualdade jurídica de todos. Concepções antimodernas e antirrepublicanas, disfuncionais. Não as de uma república de cidadãos.

Esta é uma sociedade com fortes resquícios, em sua estrutura política, da sociedade estamental do antigo regime. Nos livros do século XVIII, de uma ordem religiosa de São Paulo, encontrei registros de que a esmola para um nobre pobre era de 12 vezes a esmola de um simples pobre. Rigor da quantificação na definição do que era aqui a sociedade estamental, não a das diferenças sociais de classe. As diferenças eram de nascimento.

Mesmo não sendo propósito do STF, na condenação dos réus militares do processo do golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, igualou ele, social e politicamente, todos os participantes do golpe já em andamento desde antes da eleição de 2022. Enfim, de fato, todos juridicamente iguais.

A condenação tanto do ex-presidente da República quanto de oficiais superiores das Forças Armadas desconheceu e anulou a suposta legitimidade do nosso estamentalismo estrutural e ilegal. Uma espécie de último e tardio episódio da proclamação de 15 de novembro de 1889. Republicaniza a República.

Uma medida poderosa no sentido de abolir os estamentos, pela época da Independência, foi a de José Bonifácio, que suprimiu o morgadio. A concentração do direito de herança dos bens da família constituído na figura do filho primogênito.

Os militares não estão sozinhos no nicho socialmente classificatório do seu estamento. Outros grupos reivindicam privilégios estamentais até mesmo no caráter hereditário do estamentalismo. É o caso dos políticos brasileiros, qualquer que seja sua origem social. Anomalias na legislação brasileira concedem aos que já estão no Legislativo, os que já têm poder, direitos maiores e desiguais, na disputa eleitoral, nas mamatas e privilégios que caracterizam os mandatos. Candidato de primeira vez entra na disputa eleitoral desfavorecido em face dos benefícios decorrentes de mandato já em exercício, que negam a igualdade necessária à disputa democrática.

Ou seja, o Legislativo é aqui um poder com privilégios estamentais, que podem se transformar em privilégios de família, como acontece com a família Bolsonaro e com as de muitos outros políticos brasileiros. O privilégio estamental acobertado pelo exercício vicário do pertencimento a uma categoria social já estabelecida. Por esse meio os políticos disfarçadamente a transformaram em vitalícia e até mesmo, de certo modo, em hereditária.

Na monarquia, bispos e padres católicos eram um estamento. Agora, evangélicos reivindicam imunidade e intocabilidade para burlar a Constituição, ao misturar ilegalmente religião e política.

Tanto no caso dos religiosos quanto no caso dos militares de então, as pessoas comuns, nessas funções, ingressavam em estamentos diversos dos de sua origem, o que neles apagava o defeito de nascimento e da impureza de sangue, portanto de inferioridade social.

As prisões e o início de cumprimento de longas penas das ocorrências de agora são um fato historicamente significativo. Uma surpreendente novidade. As instituições não são manipuláveis.

A peculiar história política do Brasil não reproduz as tendências gerais da história da totalidade dos países modernos. Aqui, a proclamação da República não ocorreu como expressão de uma realidade social em crise. Em face do que ocorria na Europa da mesma época, em que o desenvolvimento econômico gerou contradições que implicaram a reformulação do Estado e da concepção de representação política. Em outros países a estrutura política tornara-se obsoleta em face do desenvolvimento econômico, da industrialização e modernização da economia.

Aqui a república não foi expressão do desenvolvimento econômico que apenas começava. Nela os militares expressavam seus próprios interesses corporativos, sua ambição de poder pelo poder e nele a função de substitutos do povo e da sociedade civil.

Essa anomalia criou um sistema de cumplicidades, que tolhe os militares vulneráveis ao que é, também, um sistema de manipulação de conduta. Os momentos do golpe mostraram que são minoria. A maioria mostrou-se corajosamente íntegra no cumprimento do dever, conscientes da impessoalidade de sua função.

A anomalia antidemocrática do regime bolsonarista, com sua ideologia estamental da impunidade, criou o golpe de Estado difuso e cotidianamente contínuo, mesmo com os protagonistas fora do poder.

 

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COMO ATACAR A RAIZ BÁSICA DA VIOLÊNCIA

Fernando Luiz Abrucio*, Valor Econômico

É preciso priorizar o desenvolvimento integral de crianças e jovens, processo começa na chamada primeira infância

A violência é um fenômeno complexo e multifacetado, ainda mais numa sociedade tão desigual e marcada pelo patriarcalismo escravocrata como o Brasil. Não há uma bala de prata e várias políticas públicas devem ser acionadas para enfrentá-la. Mas, se tivesse um único pedido ao gênio da lâmpada, dando-me o poder de atacar a raiz mais profunda do problema, escolheria a maior proteção e a produção de melhores oportunidades às crianças e jovens do país. Seria sair de um presente cercado pela barbárie e a desesperança, indo para um lugar onde as sementes do futuro se tornariam a prioridade da agenda pública brasileira.

O público infantojuvenil brasileiro, especialmente nos lugares mais vulneráveis, conhece a violência desde cedo. Segundo pesquisa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Ipea, 13 crianças e jovens sofreram alguma forma de violência por hora em 2023, num avanço de 36,2% em relação ao ano anterior. Muitas famílias, infelizmente, ainda são um lugar que desde cedo produz agressões contra meninos e meninas, inclusive as de cunho sexual, verdadeira barbárie que marca a nossa sociedade.

A este tipo de universo familiar juntam-se também visões sociais que produzem estímulos violentos os mais variados, como a misoginia incorporada por muitos adolescentes brasileiros. Nos últimos meses, houve notícias de várias formas de ataque às mulheres cometidos por homens jovens, que foram socializados por uma cultura patriarcal violenta. Eles mataram filhas de um homem e jovens mães que têm meninos, mostrando a irracionalidade bruta dos seres misóginos. Não precisa ser um ato do crime organizado para entendermos a existência de uma antessala de valores trágicos que é uma das raízes de tanta violência cometida no país.

Esse caldo de cultura não será resolvido sem políticas públicas que priorizem o desenvolvimento integral de crianças e jovens. Tal processo começa na chamada primeira infância, período que se inicia desde a gestação da mãe e se prolonga até os seis anos de idade. É uma etapa da vida fundamental para o avanço neuronal e para a produção de valores profundos, bem como para dar os primeiros estímulos de conhecimento e sociabilidade. Tanta relevância exige uma forte política intersetorial, tendo no mínimo uma sólida parceria entre educação, saúde e assistência social.

A política da primeira infância alcança tanto a família como as crianças. No primeiro caso, gerando informações aos pais para que tenham melhores condições de cuidar dos filhos - como nas pautas da saúde e da higiene, ou dando apoio assistencial, por exemplo -, além de garantir os direitos humanos desde tenra idade, dado que a violência familiar é uma característica forte em nossa sociedade. Tais políticas podem ser um caminho educador para um padrão de família menos violento e mais propício para o desenvolvimento infantil. Afinal, não há como semear o melhor de meninos e meninas sem ajudar a constituir um entorno familiar e comunitário mais saudável e pacífico.

Múltiplas políticas devem ter uma atuação conjunta para atingir as crianças mais novas e desenvolver suas potencialidades. O acompanhamento da saúde, a garantia de condições básicas de habitabilidade (em termos de moradia, saneamento e segurança) e os primeiros estímulos educacionais são fundamentais para constituir indivíduos que terão mais capacidade de aprendizado, sociabilidade mais estável e saudável, desenvolvimento corporal e neurológico adequados, curiosidade e motivação pela busca do conhecimento.

E aqui volta o tema das raízes da violência: é atuando sobre os primeiros anos de vida que se pode propagar uma visão mais profunda de resolução pacífica dos conflitos, de aceitação da diversidade, de igualdade de gênero e racial, em suma, de respeito efetivo ao próximo. Claro que isso pode se chocar com um ambiente familiar contraditório com tais ideias, dado o legado histórico do patriarcalismo. Por isso que a política da primeira infância precisa cuidar das famílias e das crianças de forma interligada.

O problema é que historicamente tratamos muito mal as crianças e adolescentes. Isso pode ser constatado pelo atraso do processo educacional, que só começou a se tornar universal (isto é, chegar aos mais pobres) no final da década de 1990, ou pela ênfase na criminalização infantojuvenil que perpassa nossa cultura, em vez de criarmos as condições para uma sociedade melhor e menos violenta. Só muito recentemente a primeira infância virou uma pauta do país, ainda que sem a prioridade devida, pois tal investimento é o instrumento mais potente para mudarmos a vida das crianças e de toda a sociedade, inclusive com um forte impacto sobre a violência.

As conquistas recentes da política da primeira infância, vale ressaltar, se deveram a um conjunto pequeno de lideranças sociais e políticas que se mobilizaram muito nos últimos anos. Nesta construção bem-sucedida de agenda de políticas públicas, destaque especial precisa ser dado ao excelente e imprescindível trabalho da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que completa 60 anos e tem lutado pelo tema desde quando ele não era moda no debate público. Eis um exemplo de que instituições e organizações sociais perenes, baseadas em pesquisa e parceria com gestores públicos, são essenciais para o futuro do país.

Mas o ataque às raízes da violência vai além dos primeiros seis anos de vida. É a partir da adolescência até a juventude que se aprofunda a interligação desse público com a violência. São especialmente garotos pobres e negros, que vivem em comunidades vulneráveis, que constituem o “exército” mobilizado pelo crime organizado brasileiro. Jovens que perderam o interesse pela escola, ou tiveram de trabalhar, ou então não conseguiram avançar em sua trilha escolar. Trata-se, em geral, de uma situação de fracasso da atuação governamental e é, sim, possível reverter esse quadro com um novo modelo de políticas públicas, que possibilite projetos de vidas diferentes da criminalidade para essa faixa etária.

Com a adolescência, começa a haver um descompasso entre o que as políticas públicas oferecem e o que deseja a garotada. Esse fenômeno é muito claro na política educacional, em particular a partir dos anos finais do ensino fundamental. A desmotivação cresce, a autoestima desaba e os que vivem em territórios mais vulneráveis ficam sem sonhos que os permitam crescer individualmente e socialmente.

Duas soluções são centrais para a construção de um futuro melhor à juventude, reduzindo as chances de captura pelo crime organizado. A primeira diz respeito às políticas intersetoriais, enquanto a segunda se relaciona com a criação de habilidades e competências para o mundo do trabalho, numa perspectiva capaz de mostrar que há outras formas de autonomia e inserção na vida adulta.

A primeira forma de mudar esse cenário desesperançoso passa pela criação de um conjunto de políticas intersetoriais que abarquem os que têm entre 12 e 18 anos. O lugar mais propício para essa integração é a escola, especialmente se ela funcionar no tempo integral, possibilitando a articulação entre educação, esporte, cultura e saúde em torno de projetos de vida possíveis e desejáveis. Nesta idade, em vez de inflacionar os conteúdos disciplinares, como se faz no Brasil, a prioridade deveria estar na motivação e engajamento juvenis, ajudando-os a encontrar possíveis talentos e vocações.

Um segundo caminho complementar é o da ênfase, desde o final do ensino fundamental, em habilidades e competências sociais que vão além do saber enciclopédico das matérias e que se articulam, de alguma forma, com o mundo do trabalho. Aprender a trabalhar em grupo, entender a imensa diversidade de possibilidades profissionais, ganhar responsabilidades para cumprir tarefas, saber como usar a tecnologia para resolver problemas e criar coisas novas, entre outros aprendizados, são questões que dariam um novo sentido à formação dos jovens em situação de vulnerabilidade, tanto mais se isso for construído num ambiente gerador de confiança nas pessoas.

Algumas mudanças recentes apontam para esse caminho. O programa Pé-de-Meia, que apoia financeiramente os estudantes do ensino médio conforme um roteiro de tarefas acadêmicas, e a expansão do ensino profissional e tecnológico, com mais recursos e possibilidades variadas de expressão, podem ser antídotos que reduzem a atração do crime organizado. Mas é preciso muito mais, com uma estratégia mais ampla e sistêmica de atuação da primeira infância até a juventude, com muita intersetorialidade, articulação com a vida familiar do público infantojuvenil e diálogo com o mundo do trabalho.

Ainda precisaremos, e muito, de boa polícia, presídios, estratégias de inteligência contra o crime organizado e articulação federativa no campo da segurança pública. Contudo, ao cuidarmos de nossas crianças e jovens estaremos reduzindo vários estímulos à violência e ao crime. Os resultados podem demorar um pouco, só que serão mais certeiros que intervenções tópicas cujo impacto não altera a reprodução do fenômeno. Atacar a raiz do problema é ter um projeto de futuro para o Brasil, especialmente para os seus filhos e netos da desigualdade.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

RELEMBRANDO MANDELA

Da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)

Nelson Mandela: 12 anos da morte do gigante que combateu o Apartheid na África do Sul

Neste dia 5 de dezembro de 2025, completam-se doze anos da morte de Nelson Mandela, o gigante sul-africano que encarnou a luta pela liberdade e justiça, combatendo o Apartheid na África do Sul. O ex-presidente do país, que morreu em 2013, aos 95 anos, em Johanesburgo, é lembrado como um dos maiores estadistas do século 20.

Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em 18 de julho de 1918, na província de Mvezo. Sua origem remonta ao clã Xhosa, pois seu pai, Henry Gadla, descendia de Thembu, um chefe local. Filho da terceira esposa de Gadla, Nosekeni Fanny, Mandela era o quarto de treze filhos. Ele cresceu em uma região agropastoril, seguindo tradições, e recordava que sua educação vinha de “ouvir as conversas dos mais velhos”. Aos 12 anos, perdeu o pai e, seguindo os passos maternos, frequentou uma escola missionária metodista.

Em 1939, ingressou na Universidade de Fort Hare, outra instituição cristã, como um dos 50 estudantes negros. Sua revolta contra a segregação racial o levou ao envolvimento na política estudantil e, posteriormente, à mudança para Johanesburgo. Ali, como jovem estudante de Direito, ele aderiu decididamente aos movimentos pelo fim do Apartheid. O Apartheid era o regime político sul-africano que negava direitos políticos, sociais e econômicos à população negra em favor da minoria branca.

A adesão ao Congresso Nacional Africano (CNA) ocorreu em 1942. Embora o movimento estivesse inicialmente comprometido apenas com atos não violentos, a brutalidade do regime forçou uma mudança de tática após o massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960. Naquele episódio, 69 manifestantes negros desarmados foram mortos e 180 ficaram feridos pela polícia sul-africana. A ilegalização subsequente do CNA e de outros grupos anti-apartheid também contribuiu decisivamente para a mudança do movimento contra a segregação racial.

Extensão armada

Em 1961, Mandela passou a comandar o Umkhonto we Sizwe, extensão armada do CNA, coordenando uma campanha de sabotagem contra alvos militares e do governo. Sua prisão ocorreu em agosto de 1962, sentenciado a cinco anos por incentivar greves e viajar ilegalmente ao exterior. Em um segundo julgamento, em 12 de junho de 1964, foi condenado à prisão perpétua por planejar ações armadas e, alegadamente, por conspiração para auxiliar a invasão da África do Sul por outros países — acusação esta que ele negou ter feito.

Durante os 27 anos de encarceramento, Mandela transformou-se no principal símbolo da resistência ao regime racista. Manifestações e cânticos mundiais clamavam por sua liberdade. Sua libertação veio em 1990, por ordem do então presidente Frederik Willem de Klerk, no auge da pressão internacional, e o CNA também foi tirado da ilegalidade. Aos 73 anos, com a queda do violento presidente Pieter Botha e a decadência do regime, Mandela assumiu a liderança da reconstrução sul-africana. Em 1993, em reconhecimento aos esforços desenvolvidos no sentido de acabar com a segregação racial, ele e De Klerk receberam o Nobel da Paz.

Ao ser liberto, discursando para uma multidão na Cidade do Cabo, Mandela resumiu seu ideal: “Tenho lutado contra a dominação branca, mas não pela dominação negra”. Ele acolheu o “ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todas as pessoas vivam juntas, em harmonia e com oportunidades iguais”. Afirmou que era um ideal pelo qual esperava viver e alcançar, mas que, se necessário, estava preparado para morrer.

Dura vigilância

O homem de modos elegantes, submetido a quase três décadas de dura vigilância na prisão, não se deixou quebrar pelo regime racista. Mandela preservou sua mente e sua alma, saindo da prisão sem o rancor que poderia ser esperado, mas sim com a consciência da necessidade de evitar a fragmentação do país e um banho de sangue. Ele se preparou para governar a África do Sul como uma voz sábia em prol da justiça e da liberdade, erguendo-se como um dos grandes personagens do século 20. Retornando ao princípio da não-violência com o qual havia começado, Mandela foi capaz de liderar o país no difícil caminho para fora da segregação racial.

Para garantir a união nacional, seu governo instituiu as comissões da verdade e da reconciliação, encarregadas de investigar as atrocidades cometidas não só pelo regime do Apartheid, mas também pelos grupos que lutavam contra o governo. A condição para a anistia dos crimes era a confissão perante as comissões, em audiências públicas. Esse processo de revelação da verdade possibilitou que o país começasse a se curar dos longos anos de profunda violência e injustiça.

Apesar do respeito internacional, da popularidade e de sua boa saúde, o líder sul-africano optou por não se perpetuar no poder, dando novamente um exemplo ao mundo. Mandela governou por apenas quatro anos, de 1994 a 1999, traçando o rumo para a nação, que ainda hoje lida com enormes desafios socioeconômicos e alto índice de desigualdade.

A vida pública de Mandela chegou ao fim em junho de 2004, quando ele tinha 85 anos, embora tenha mantido uma exceção para seu compromisso em lutar contra a Aids. Desde então, recebeu importantes e sucessivas homenagens. Em sua vida, visitou o Brasil em 1991 e em 1998, ocasião em que esteve no Senado Federal. Mandela se casou três vezes: primeiro com Evelyn Ntoko Mase (divórcio em 1957, após 13 anos de casamento); depois com Winnie Madikizela (divórcio em 1996, após 38 anos); e, no seu 80º aniversário, casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, antigo presidente moçambicano e aliado do CNA.

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