domingo, 6 de abril de 2025

MORRE ANTÔNIO DE BARROS

Do g1

Antônio Barros, cantor e compositor paraibano, morre aos 95 anos

Autor de mais de 700 canções, Antônio Barros sofria de Parkinson. Ele é responsável por sucessos como 'Homem com H' e 'Procurando Tu'.

O cantor e compositor paraibano Antônio Barros morreu neste domingo (6) aos 95 anos. Ao lado de Cecéu, companheira dele na vida e na música, a dupla compôs vários sucessos que ganharam o mundo nas vozes de Elba Ramalho, Fagner, Luiz Gonzaga, Gilbero Gil, Ney Matogrosso, entre outros artistas. Foram mais de 700 músicas, entre as principais estão 'Homem com H', 'Bate Coração' e 'Procurando Tu'.

O artista sofria de Parkinson, doença degenerativa que, entre os sintomas, traz a dificuldade de engolir. Isso gerou uma bronco-aspiração, o que motivou uma longa internação do paraibano desde o começo do ano. O velório do cantor e compositor acontece a partir das 13h, no Parque das Acácias. O enterro será às 17h.

Nascido em 1930 em Queimadas, Antônio Barros começou a compor na década de 1950. Após se mudar para Campina Grande, 20 anos depois, ele conheceu Mary Maciel Ribeiro, a Cecéu.

Vida e carreira de Antônio Barros

Antônio Barros estudou no Grupo Escolar José Tavares. A escola foi fundada em 1937, sendo o primeiro colégio de Queimadas, município com pouco mais de 43 mil habitantes.

"Em 1930 não conhecia nada, não sabia que o mundo era redondo. Fui para Campina Grande, ficamos lá até minha vivência de adulto, fui para recife, e a partir daí começou minha vida profissional", disse o compositor em uma entrevista concedida ao g1 em 2020, quando completou 90 anos. (Reveja abaixo)

Na mesma escola estudaram alguns primos. O pai de um deles, chamado Adauto, foi quem ensinou Antônio Barros a tocar violão e, depois, o pandeiro. Ao ir para o Rio de Janeiro, procurou Jackson do Pandeiro, que lhe deu apoio na capital carioca.

Já conhecido, ele não deixou de visitar Campina Grande. Em uma dessas viagens, conheceu Cecéu uma parceira para sempre.

"Estava escrito nas estrelas, porque aos meus nove anos eu estudava no colégio São Vicente de Paulo e já ia cantando música de Antônio Barros. Em 1971, quando nos conhecemos, ficamos sete meses conversando, e Antônio voltando para o Rio, passou esse tempo lá, quando voltou ele disse para nos unir e fazer uma dupla, porque eu já tinha alguns trabalhos feitos. Eu disse: topo", contou Cecéu em 2020.

Ele a convidou para, juntos, se mudarem para o Rio de Janeiro e foi então que começou a parceria. Entre as canções mais famosas do casal estão clássicos como “Homem com H”, “Por Debaixo dos Panos”, “Bate Coração”, “Procurando Tu”, “Forró do Poeirão”, “Forró do Xenhenhém” e “Óia Eu Aqui de Novo”.

Quando se fala em parceria não é só sentimental. A dupla gravou um disco de música romântica como Tony e Mary, mas foi no forró que emplacou um sucesso atrás do outro, como "Homem com H". Luiz Gonzaga, Marinês, Trio Nordestino, Os Três do Nordeste, Jorge de Altinho, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Alcione, e tantos outros gravaram músicas da dupla.

Entre as canções mais famosas do casal estão clássicos como “Por Debaixo dos Panos”, “Bate Coração”, “Procurando Tu”, “Forró do Poeirão”, “Forró do Xenhenhém” e “Óia Eu Aqui de Novo

Patrimônio cultural imaterial da Paraíba

Uma lei publicada em 2021 reconheceu a obra dos casal como patrimônio cultural imaterial do Estado da Paraíba. A lei é de autoria da então deputada estadual Estela Bezerra, que justifica o reconhecimento pelo casal representar não só a musicalidade, mas também a cultura do estado. “[Antônio Barros e Cecéu] são a própria essência do povo nordestino. Suas composições atravessam as gerações como a melhor expressão da nossa gente, da nossa terra e do nosso espírito paraibano e nordestino”, destacou a deputada.

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sábado, 5 de abril de 2025

A COP DA EDUCAÇÃO

Cristovam Buarque, VEJA

O caminho para o zelo ambiental precisa vir das escolas

As sucessivas reuniões e acordos internacionais ambientais desde 1972 foram insuficientes para reorientar a humanidade na direção do desenvolvimento sustentável. O futuro da Terra pede uma mudança de mentalidade aos cidadãos. Os cientistas alertam que, apesar de termos atravessado 29 cúpulas, hoje chamadas de COP, Conferência das Partes, é possível estarmos próximo ao ponto de não retorno nas mudanças climáticas, na devastação da biodiversidade e na elevação da temperatura do planeta, com consequências catastróficas. A COP30, em Belém do Pará, poderá ser mais um evento mundial de boas intenções.

Os gestos insanos de Donald Trump talvez façam o mundo perceber que a humanidade está em uma encruzilhada: continua a marcha para o desequilíbrio ecológico e a radical desigualdade social ou reorienta o progresso para um desenvolvimento sustentável e solidário. Há evidente divórcio entre o humanismo planetário, de permanente cunho democrático, e a pressão dos eleitores, atalho para interesses locais, nem sempre cuidados com o respeito ao ambiente. O eleitor vota querendo baixar o preço da gasolina no posto da esquina na próxima semana, não para manter o nível do mar daqui a duas décadas; vota preocupado com a segurança imediata da sua família, não com a sobrevivência da espécie humana no próximo século.

“Ainda que não gritem como Donald Trump, muitos governantes andam na contramão”

Antes, o mundo era a soma de países isolados, mas agora cada país é um pedaço do planeta interligado. Barack Obama assinou o Acordo de Paris, em 2015, lembrando que não há presidente global. Trump, no avesso, bateu a seu estilo: “Sou presidente dos Estados Unidos, o resto não me interessa”. Mas interessa, sim, e precisamos ter essa condição em mente. Ainda que não gritem como Trump, contudo, muitos governantes andam na contramão. Recomendam investimentos privados em combustíveis fósseis, determinam o aumento da produção de petróleo por empresas estatais, enquanto fazem discursos ecológicos. São “Trumps” dissimulados, com a mesma voracidade pelo consumo e desprezo pela ecologia.

O desumanismo explícito de Trump pode despertar para o fato de que a democracia nacional precisa estar subordinada a valores morais humanistas. Isto requer uma mudança de mentalidade: os eleitores abandonarem a voracidade consumista e abrirem mão da soberania plena de seus países, passando a tratar a natureza em seu território como patrimônio da humanidade. A transformação da cidadania, portanto, exige educação. A evolução sustentável e solidária em escala planetária não virá de leis e acordos assinados por presidentes nacionais, mas da mudança de mentalidade das novas gerações, a partir das escolas. Para ser efetiva, a COP30, diferentemente das 29 anteriores, deve pôr na sua pauta a educação de base das crianças do mundo. Tanto para garantir escolas com qualidade para todos, quanto para oferecer formação de mentes solidárias com a natureza e com os seres humanos de todos os países. A educação para a sustentabilidade e a solidariedade é condição para evitar a catástrofe. É o caminho de uma civilização que sobreviva e seja mais justa e mais bela. Uma sugestão: o embaixador André Corrêa do Lago e o presidente Lula podem ser os portadores para o mundo da ideia de a COP30 ser a porta de entrada para um novo tipo de compreensão, a educação como pilar do ambientalismo.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

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AS DUAS ANISTIAS DO BOLSONARISMO

Cláudio Couto, Carta Capital

O perdão judicial é incerto, mas o perdão político está em curso com a normalização da extrema-direita e do golpismo

A medida que avança no STF o julgamento dos golpistas do bolsonarismo, cresce no Congresso e nas ruas a mobilização em torno de uma possível anistia. Buscando legitimar o perdão aos golpistas, a ultradireita foca seus esforços nos condenados pela intentona do 8 de Janeiro, estejam presos ou foragidos da justiça. É mais fácil tentar justificar o perdão a um bando de palermas manipulados pelos artífices do golpe do que isentá-los de responsabilidade.

Os palermas, contudo, não são meros inocentes úteis. São gente que, antes de invadir e destruir as sedes dos Três Poderes, acampou por semanas diante de instalações militares, clamando pelo cometimento do maior dos crimes, o golpe de Estado. Este é o maior dos crimes porque não se limita à transgressão pontual de alguma lei. Em vez disso, busca derrubar o próprio Estado de Direito, sem o qual nenhuma lei legítima vigora. Se tanto, após um golpe passa a viger uma pretensa legalidade, imposta por usurpadores que alegam legitimar a si mesmos graças a terem sido vitoriosos no emprego da violência para derrocar a ordem legal sob o pretexto de uma ilusória “causa justa”.

Ora, a palermada golpista não ocorreu diante das casernas à toa. Os ali reunidos pediam que militares saíssem de seus quartéis para efetuar uma violenta virada de mesa. Não fosse esse o objetivo, teriam se reunido noutro lugar – em frente a tribunais ou igrejas, por exemplo, apelando à justiça dos homens ou de Deus. Por isso mesmo, quando saí­ram da frente de um quartel em Brasília para assaltar os Três Poderes, pretenderam produzir o que não haviam conseguido após meses de acampamento golpista, uma ação militar. Caísse o governo recém-empossado nessa esparrela, teria decretado uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), convocando os militares a debelar o caos produzido justamente por aqueles que, por meses (e incitados a isso pelo bolsonarismo), imploraram pela intervenção castrense.

Aprovar a anistia para essa ­arraia-miú­da do golpismo significa normalizar o golpe de Estado, pois implica afirmar, por meio de um diploma legal, que o maior dos crimes não é coisa grave. Uma das várias falácias brandidas por Bolsonaro et caterva­ é que isso seria necessário para “pacificar o País”. Ora, mas quem é que perturbou e segue perturbando a paz neste País? Não é quem insistiu (e segue insistindo) em questionar sem qualquer fundamento factual a licitude das eleições? Havia um meio simples de manter o Brasil pacificado: o respeito à ordem legal, às instituições democráticas e ao resultado das urnas. Quem se negou a isso, perturbando a paz, foram Bolsonaro e sua gangue. Para eles, a pacificação vem do perdão a seus crimes, de modo que possam continuar a cometê-los. Que paz seria essa?

Contudo, se a anistia jurídica ainda é algo incerto (não me arrisco a dizer improvável), a anistia política já é um fato. Ela se dá pela normalização da ultradireita por políticos, partidos, órgãos de imprensa e analistas convencionais. Ora, quem numa eleição busca o apoio de Bolsonaro, coliga-se com ele e aparece a seu lado em atos de campanha, está o normalizando e, portanto, anistiando seu golpismo.

E como classificar quem, como Tarcísio de Freitas, sobe ao lado de Bolsonaro num palanque, clamando pela anistia aos golpistas do 8 de Janeiro e afirmando que o ex-presidente e seus colegas de banco dos réus são perseguidos políticos? Ora, trata-se de alguém em negacionismo democrático, seja por supor que todas as evidências colhidas pela investigação da Polícia Federal são invenções (ou, quem sabe, miragens), seja por acreditar que não há mal algum em tentar golpes de Estado. Da mesma forma, está em negacionismo quem, diante disso, afirma ser Tarcísio um político moderado ou de centro. Igualmente, normaliza-se a ultradireita, neste caso não em sua forma tosca e explícita, mas na pretensiosa e dissimulada.

Eis a gravidade não só de aprovar uma anistia legal para o golpismo bolsonarista (da arraia-miúda, das lideranças ou do médio escalão), mas de seguir aprovando a anistia política ao tratar como normal o extremismo direitista com modos. Acreditar em bolsonarismo moderado (isto é, em extremismo moderado, evidente oxímoro) equivale a anistiar politicamente o golpismo que ameaçou a democracia no passado recente e seguirá ameaçando-a no futuro próximo, se lhe for permitido. Ou alguém crê que, mesmo que o atual projeto de anistia aos golpistas naufrague no Congresso, outro não surgirá com a eleição de um aliado seu para a Presidência?

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

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O ESTADO COMO COISA

Aldo Fornazieri, Carta Capital

Subjugar o Legislativo e entrar em guerra contra o Judiciário estão no âmago da estratégia de governos autoritários

Se há uma palavra para caracterizar o início do segundo mandato de Donald Trump, essa é ­“caos”. Ninguém consegue perceber claramente, nem mesmo trumpistas próximos do presidente, qual o sentido e o rumo que ele pretende imprimir ao governo e ao país. As decisões ora parecem ter sentido, ora parecem ter sentido nenhum. Não só os norte-americanos em geral estão açodados pelo medo, mas até republicanos e gente próxima do presidente se sente amedrontada em agir e em relação ao futuro.

Alguns cientistas políticos afirmam que Trump se move como se não tivesse a menor noção de Estado de Direito. Outros dizem que ele ignora peremptoriamente a Constituição. Exemplos não faltam: a Constituição garante a cidadania para quem nasce no solo dos EUA, mesmo se filho de estrangeiro e, nesse caso, ele a suspendeu. A Carta Magna proíbe mais de dois mandados a presidentes e ele afirma a intenção de buscar um terceiro.

Trump está na condição de guerra contra o Judiciário, ao menos com parte. Aqui há uma das características centrais dos governos autoritários atuais, que estrangulam e asfixiam as democracias a partir da erosão de seu conteúdo republicano, fundado na autonomia dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Os novos autocratas têm certa facilidade em submeter o Legislativo. Na medida em que as Cortes Supremas ou setores da Justiça vinham de uma tradição democrática anterior, caracterizada pela independência dos tribunais e pela estabilidade e inamovibilidade dos juízes, os mandatários do Executivo encontram mais dificuldades de dobrá-los. Dessa forma, o caminho para transformar as democracias em autocracias civis ou cívico-militares, primeiro consiste em tornar o Legislativo subserviente e depois mover uma guerra contra o Judiciário, visando dobrá-lo, mas, principalmente, intervindo para quebrar ilegalmente a composição dos tribunais superiores.

É isto o que Trump tem feito contra juízes e alguns tribunais. É isso o que Nicolás Maduro, Daniel Ortega, Vladimir Putin e Victor Orban fizeram. É isto o que Bolsonaro tentou fazer aqui. O plano golpista de Bolsonaro previa a prisão ou o assassinato de Alexandre de Moraes e uma intervenção no TSE como primeiro passo para controlar o Poder Judiciário. Esses novos regimes com características ditatoriais, embora se valham das forças policiais e militares, não se caracterizam como ditaduras militares. No caso da Venezuela, Maduro define seu regime como um governo cívico-militar.

As investidas ilegais e criminosas da dupla Trump–Musk e de outros predadores associados contra a saúde, as universidades, o ensino, a ciência e o funcionalismo público mostram que a cúpula do atual governo age como se sua vontade particular estivesse acima da vontade popular, materializada nas leis e nas instituições como expressões fundantes da vontade soberana do povo. A cúpula do governo transforma o Estado e os cidadãos em coisas disponíveis ao arbítrio de suas vontades e de seus interesses. Com este modo de proceder, a democracia vai se transformando em escombros e se instaura a lei do mais forte.

Os Estados modernos se construíram como Estados soberanos e Estados de Direito contra a concepção patrimonialista e do poder do mais forte das monarquias absolutas. O filósofo Immanuel Kant, em Paz Perpétua, foi categórico em condenar a concepção patrimonial: “Um Estado não é patrimônio (patrimonium) (como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma sociedade de homens sobre a qual ninguém mais que ela mesma tem de mandar e dispor. Enxertá-lo a outro Estado significa eliminar a sua existência como pessoa moral e convertê-lo em coisa, contradizendo, portanto, a ideia do contrato originário, sem a qual não se pode pensar direito algum sobre um povo”.

Kant opõe à concepção de Estado patrimonial o Estado como pessoa moral, fruto de uma vontade coletiva soberana. Condena o aluguel de tropas de um Estado a outro e, também, o uso de soldados próprios em guerras injustificáveis, orientadas para fins de conquistas patrimoniais. Os Estados modernos se fundam na ordem internacional que expressa direitos e deveres recíprocos entre os mesmos. E, na ordem interna, no respeito e na garantia dos direitos dos cidadãos expressos no conjunto dos direitos humanos. Os brasileiros não podem se esquecer que o bolsonarismo representa a mesma visão de mundo perversa e desumana do trumpismo. Barrá-lo é um dever. 

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

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TRUMP ATACA AS UNIVERSIDADES

Luiz Gonzaga Belluzzo, Carta Capital

A investida da Casa Branca foi recebida com temor e passividade

O New York Times registrou as agressões de Donald Trump às universidades norte-americanas: “O governo (…) transformou promessas de campanha de atacar universidades em ações devastadoras, retirando centenas de milhões em fundos federais da Universidade Columbia e da Universidade da Pensilvânia.”

Essa investida do Doido Trump foi recebida com temor e passividade balbuciante pelos gestores das universidades atacadas. A reportagem do Times assinala que, nos últimos meses, Harvard se moveu cautelosamente, buscando um acordo e reprimindo a liberdade de expressão. A passividade adaptativa “irritou alguns que temiam que Harvard estivesse capitulando em um momento de autoritarismo crescente”.

As manifestações de estudantes e professores em defesa da Palestina foram inquinadas de “antissemitismo”. Ironias da história: o antissemitismo do regime nazista se associou à intervenção de ­Hitler nas universidades alemãs. Entre tantas capitulações ilustres, encontramos o filósofo Martin Heiddeger. O historiador Bob Kowalski escreveu A Ruina do Ser: Heidegger e o Nazismo. O título do livro faz referência à obra de Heiddeger, O Ser e o Tempo. (Não é temerário suspeitar que os tempos do nazismo esmagaram o Ser). Kowalski relata em seu livro que em “1933, pouco após Adolf Hitler chegar ao poder, Heidegger assumiu o cargo de reitor da Universidade de Freiburg e se filiou ao Partido Nazista, adotando publicamente posições alinhadas com o regime. Seu discurso de posse como reitor, conhecido como o Discurso do Reitorado, refletiu um tom nacionalista e fez uso de uma linguagem que exaltava a ‘grandeza’ do espírito alemão, algo que muitos interpretaram como um endosso ideológico ao nazismo”. Na vigência de seu reitorado, Heidegger impôs decisões alinhadas com os propósitos de ­Hitler. Entregou sua carreira acadêmica e sua reputação aos sicários do nacional-socialismo. O filósofo renunciou ao reitorado em 1934, sob o guante de pesados ataques à sua reputação.

Heidegger concordava com os princípios políticos que guiavam o nacional-socialismo. Saudou a unidade política do povo construída nos arcabouços da ditadura. Era notório o menosprezo de ­Heiddeger à democracia de ­Weimar. Assim, diz o seu biógrafo, ­Rudiger ­Safranski, ele não sentia repulsa pela eliminação violenta da oposição política.

Nos regimes totalitários, os ­indivíduos executam os processos descritos por Franz Neumann, em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista, a raiva contra os opositores e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em desvario autoritário.

Trump e seu discípulo Jair Messias são fiéis pastores de seus crentes. São ­fiéis a seus fiéis. Para um contingente parrudo de norte-americanos e brasileiros, não importam os deslizes de seus Deuses e Messias. Importa, sim, que os Escolhidos insistam e persistam na afirmação das crenças, ideologias, visões do mundo, valores que refletem os ressentimentos dos súditos maltratados pelas frustrações e misérias da vida.

O totalitarismo nasceu das entranhas da sociedade dilacerada, como a alemã dos anos 1930, provocando a derrocada do Estado liberal no qual o exercício do poder está regulado pela lei. No nazismo, o poder está concentrado nas mãos do Führer. Como mostra o filme de ­Lucchino Visconti, Os Deuses Malditos­, o nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas a privatização do Estado. Os interesses de grupos privados se apoderam diretamente do setor público. Alguma semelhança com a ocupação do Estado norte-americano por Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg, entre outros?

No livro A Ordem do Dia, Eric Vuillard discorre sobre a reunião convocada por Göring com os pesos-pesados da indústria alemã. A reunião embalou uma mensagem: era preciso acabar com o regime fraco de Weimar, afastar a ameaça comunista, eliminar sindicatos e permitir que cada empresário fosse o Führer de sua própria empresa. A atividade econômica, acentuou Göring, exige calma e estabilidade. Os 24 cavalheiros assentiram solenemente. E se o Partido Nazista ganhasse a maioria, acrescentou Göring, estas seriam as últimas eleições por dez anos – até mesmo, aclamou ele com uma risada: por cem anos. 

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

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sexta-feira, 4 de abril de 2025

INVISÍVEIS E AUSENTES NO JULGAMENTO

José de Souza Martins, Valor Econômico

Quem são os invisíveis e ausentes no julgamento do 8 de Janeiro

Muitos dos que foram presos e interrogados disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil no 8 de Janeiro, mesmo as velhinhas com Bíblia nas mãos

Os aspectos mais retrógrados e sombrios da sociedade brasileira vieram à tona com a subversão olavo-bolsonarista em aspectos que nos perturbam e nos colocam diante daquilo que somos e não julgamos ser. Da cabeleireira ao general, todos expressam o fato de que o país está à beira do abismo de sua história. Ao menos um dos brasis que conhecemos está chegando ao fim. Resta saber qual deles.

O caso da cabeleireira sugere que uma inocente mãe de família, por ter participado de uma alegre excursão a Brasília e açulada por circunstantes movidos pelo mesmo espírito, depredou uma obra de arte, a escultura “A Justiça”, do artista plástico mineiro Alfredo Ceschiatti. Escrevendo-lhe no peito “Perreu, Mané” (sic).

Uma bandeira brasileira foi amarrada no pescoço da escultura, mais ou menos como o faziam as centenas de manifestantes que com o mesmo ímpeto invadiram e depredaram os palácios dos Três Poderes.

A ocorrência por ter mobilizado os contraditórios sentimentos que formam a personalidade nacional transformou-se em símbolo dessas contradições. Há nela todos os indícios do que não conseguimos ser, que manifestamos naquilo que achamos que somos, os patriotas que não somos.

Pátria somos quando estamos comprometidos com o nosso nós. O olavo-bolsonarismo nos dividiu e fragmentou, nos privou de pátria. Gente que vai ao governo americano pedir uma intervenção em nosso país, para assegurar interesses que não são os de nossa pátria, trai a pátria. Gente que ataca as instituições, que planeja assassinato de autoridades, é inimiga da pátria e inimiga de todos nós.

Gente, civil ou militar, que não sabe a diferença entre um botequim de Xiririca e os palácios que em Brasília abrigam as instituições, ao se comunicar por meio de palavrões, diz que por ela a pátria acabou. Porque pátria é também uma linguagem, a de uma unidade política de referência comum a todos. Religiosos, não só evangélicos que aceitam naturalmente essa linguagem são o quê?

O ato em torno da escultura de Ceschiatti reuniu e consagrou várias ignorâncias. A de não saber escrever. “Perreu”, em lugar de “perdeu”. A de achar que escultura é mera estátua e não saber que é obra de arte, obra de conhecimento e, nos países civilizados, de respeito e de admiração.

Não é estranho, pois, que os subversivos, imediatamente após a decisão do STF de transformar os acusados em réus, já têm montado o discurso de continuidade do golpe. Começam artimanhas para justificar as próprias ilegalidades com base na própria lei. Fragmentar o criminoso coletivo para diluir o delito na suposta multiplicidade de individualidades.

Justiça e Parlamento parecem propensos a cair na armadilha. O que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 foi crime de multidão. Tem explicação sociológica e psicológica como crime de um sujeito único, um sujeito social e político. O próprio Código Penal atenua, mas não perdoa a participação nele.

Na imensa pesquisa que fiz sobre linchamentos no Brasil, crime de multidão, 2 mil casos num período de mais de 20 anos, ficou evidente que os participantes nesse tipo de violência coletiva têm consciência de que “linchar não é crime”, o que não é verdade.

Em seus depoimentos, os participantes da insurreição de 8 de janeiro de 2023 dão várias indicações de que se consideravam convocados por Bolsonaro e pelo Exército para depor o presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles acampamentos às portas dos quartéis só foram possíveis porque legitimados por diferentes modos de solidariedade e apoio de militares, de empresários e igrejas e seitas.

A multidão é um ente coletivo. Desde Gustave Le Bon, o médico e psicólogo que no século XIX estudou o surgimento e a ação desse sujeito social da modernidade, sabe-se que a personagem da turba é instrumento voluntário do que a turba faz. Ela se dirige com precisão aos objetivos e símbolos disseminados da ação coletiva.

Neste caso atual, a conspiração golpista desde 2021 era meramente indicial. A multidão subversiva da Praça dos Três Poderes revelou-lhe os meandros e os laços de unidade, o invisível tornou-se visível e deu sentido ao que já se vinha vendo.

Houve uma omissão na investigação. Muitos dos que foram presos e interrogados disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil, mesmo as velhinhas com Bíblia nas mãos. De fato as filmagens registraram exaltados pentecostais orando aos berros dentro dos palácios, exorcizando o satanás do poder, isto é, das instituições democráticas.

A convergência das justificativas dos acusados indica um dos sujeitos invisíveis da mobilização e da violência, as igrejas e seus pastores. Não foram indiciados e continuam conspirando.

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quinta-feira, 3 de abril de 2025

'TESLA ESTÁ EM COLAPSO E PODE SER QUE NÃO SE RECUPERE'

Lily Jamali, BBC News

Correspondente de tecnologia da BBC na América do Norte

'Tesla está em colapso e pode ser que não se recupere': vendas e preços de ações da montadora despencam ainda mais

As vendas de carros da Tesla, empresa chefiada por Elon Musk, despencaram para o menor nível dos últimos três anos.

A fabricante de veículos elétricos entregou quase 337 mil unidades nos primeiros três meses de 2025 — uma queda de 13% em relação ao mesmo período do ano passado.

Após a divulgação dos baixos números de vendas, as ações da empresa recuaram no início do pregão de quarta-feira (2/4).

Os carros da companhia enfrentam uma competição cada vez maior da empresa chinesa BYD, mas especialistas acreditam que o papel controverso de Musk na administração Donald Trump também tem uma influência nesse fenômeno.

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  No entanto, alguns analistas apontam o dedo para o próprio Musk.

"Esses números são péssimos", escreveu no X (antigo Twitter) Ross Gerber, um dos primeiros investidores da Tesla, do grupo Gerber Kawasaki Wealth and Investment Management.

"A Tesla está em colapso e pode ser que não se recupere", acrescentou ele, que já foi um apoiador de Musk, mas recentemente pediu que o conselho da empresa removesse o bilionário do cargo de CEO.

A 'queda da Tesla'

      O ativismo político de Musk gerou uma onda de protestos e boicotes ao redor do mundo.

Ele atualmente lidera a iniciativa do Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês) do presidente Donald Trump, criada com o objetivo de cortar gastos e reduzir o volume de servidores federais.

Na quarta-feira (2/3), o site Politico relatou que Trump teria dito a pessoas de seu círculo íntimo que Musk se afastaria do governo nas próximas semanas.

Logo após a publicação da notícia, o preço das ações da Tesla voltou a subir.

A Casa Branca, no entanto, refutou a reportagem, classificando-a como "lixo".

Por ser considerado um funcionário especial do governo, por lei Musk só pode servir no governo por 130 dias durante o ano, o que significaria que ele teria de deixar o posto até meados de junho.

O chefe da Tesla é o homem mais rico do mundo e contribuiu com mais de US$ 250 milhões (R$ 1,4 bi) para ajudar Trump a ser eleito nas eleições de novembro de 2024.

Nas últimas semanas, ele investiu mais dinheiro em uma corrida para a Suprema Corte de Wisconsin, ao apoiar o ex-procurador-geral republicano Brad Schimel —que acabou derrotado na terça-feira (1/4).

    A reação contra Musk incluiu protestos em concessionárias da Tesla nos Estados Unidos e na Europa.

Veículos da empresa também foram vandalizados — e Trump chegou a dizer que o governo acusaria pessoas que atacassem carros da montadora de "terrorismo doméstico".

O gerenciamento de Musk sobre seus negócios, incluindo a Tesla, recebeu uma série de questionamentos.

Em uma entrevista recente, ele admitiu que administra seus empreendimentos "com grande dificuldade".

"Francamente, não acredito que estou aqui fazendo isso [em referência ao seu trabalho na atual administração Trump]", acrescentou ele.

As ações da Tesla perderam mais de um quarto de seu valor desde o início deste ano, segundo os índices registrados na quarta-feira (2/4).

"Não vamos olhar para esses números com falso otimismo... Eles representam um desastre", avalia o analista Dan Ives, da empresa de serviços financeiros Wedbush, em nota divulgada na quarta-feira.

"Quanto maior o envolvimento político [de Musk] com a Doge, mais a marca sofre. Não há discussão sobre isso", pontuou ele.

A Tesla não respondeu aos pedidos de comentários da BBC, mas declarou em um documento protocolado na Comissão de Valores Mobiliários dos EUA que os números divulgados recentemente "representam apenas duas medidas" do desempenho da empresa e "não devem ser considerados como um indicador de resultados financeiros trimestrais".

Esses resultados mais detalhados serão divulgados no dia 22 de abril em um relatório financeiro completo com dados do trimestre.

Eles "dependerão de uma variedade de fatores, como preço médio de venda, custos, movimentos cambiais, entre outros", detalhou a Tesla.

O texto também observa que a empresa suspendeu temporariamente a produção de veículos utilitários esportivos do chamado Model Y a partir de janeiro.

Após a divulgação dos números na quarta-feira, Randi Weingarten, presidente da Federação Americana de Professores — um dos sindicatos trabalhistas mais poderosos dos EUA — escreveu a dezenas de fundos de pensão públicos sobre a situação da Tesla.

Afirmou que os últimos números de vendas da empresa estavam "se tornando abismais", instou os fundos de pensão a analisarem de perto as participações que possuem na empresa e questionou o que gestores financeiros estão fazendo para "proteger ativos de aposentadoria".

"Essas quedas parecem ser, em parte, motivados pelo fato de Musk gastar seu tempo em atividades políticas, algumas das quais parecem estar em conflito com a marca e os interesses comerciais da Tesla", afirmou Weingarten.

A Controladoria da cidade de Nova York (New York City Comptroller) já anunciou que estuda processar a Tesla em nome dos enormes fundos de pensão ligados ao órgão.

Na terça-feira (1/4), a instituição divulgou uma perda de mais de US$ 300 milhões (R$1,6 bi) em três meses por causa da queda do preço das ações da empresa.

"Elon Musk anda tão distraído que está levando a Tesla para um precipício financeiro", afirmou em comunicado o atual controlador da cidade, Brad Lander.

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FLORDELIS: A PASTORA DO DIABO

Sinopse do livro Flordelis: a pastora do diabo

Por duas décadas Flordelis Santos de Souza foi considerada símbolo de amor, afeto e generosidade. Supermãe, adotou mais 50 de crianças e pariu outras três. Pastora de multidões e cantora gospel de sucesso, fundou seu próprio ministério, gravou 11 discos e vendeu mais de 10 milhões de cópias. Em 2018, foi eleita a deputada federal mais votada do Rio de Janeiro.

No entanto, por trás dessa biografia de sucesso escondia-se uma mulher diabólica. Fria, dissimulada, odiosa e manipuladora, Flordelis praticava rituais satânicos e transava com os próprios filhos. De dia, ela subia ao púlpito da igreja para pregar. De noite, seguia com o marido e a filha mais velha para casas de swing, onde praticavam sexo grupal com pessoas desconhecidas.

Sua carreira de escândalos alcançou o apogeu em 2019, quando orquestrou com a prole criminosa o assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, morto com seis tiros dentro de casa. Segundo o Ministério Público, ela mandou matá-lo por motivos financeiros. Presa pelo assassinato, Flordelis roga a Deus inocência, mas todas as provas das investigações policiais convergem contra ela.

Por dois anos, o jornalista Ullisses Campbell mergulhou no passado sombrio de Flordelis e descobriu uma repetição de padrões familiares. A mãe e um tio também realizavam rituais satânicos. Esta obra vai mostrar com detalhes a infância e a adolescência de Flordelis e passagens pitorescas: como ela se relacionava com os namorados da filha e passou a roubar crianças na rua.

 Criminosa e dona de uma lábia poderosa, a máscara de Flordelis demorou a cair porque engabelou apresentadores de TV, empresários de renome, juízes e até um desembargador. O livro mostra ainda outras histórias de líderes religiosos – inclusive padres católicos - que, em nome de Deus, cometeram crimes tão chocantes que até o diabo duvida.

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quarta-feira, 2 de abril de 2025

A RINHA DE QUATRO GOVERNADORES

Bernardo Mello Franco, O Globo

A rinha de quatro governadores pelos votos de Bolsonaro em 2026

Na visão do PT, disputa pelo espólio eleitoral do ex-presidente já está definida

Com Jair Bolsonaro mais perto da cadeia, a direita começa a viver um clima de prévias presidenciais. Quatro governadores sonham com o espólio do capitão em 2026. O mais ansioso é Ronaldo Caiado, de Goiás. Na sexta-feira, ele voará 1.200 quilômetros para lançar sua pré-candidatura em Salvador.

Caiado é uma velha novidade. Já concorreu ao Planalto em 1989, como porta-voz dos ruralistas. Sua campanha ficou marcada por lances pitorescos. Ele aparecia no horário eleitoral montado num cavalo branco, como se estivesse num filme de faroeste. Em debate na TV, escancarou o elitismo ao ostentar uma especialização médica na Europa. “Essas mãos foram adestradas em Paris”, jactou-se.

O goiano tentou se vender como antagonista do PT, mas foi atropelado pelo furacão Fernando Collor. Terminou em 10º lugar, com menos de 1% dos votos. Três décadas e meia depois, seu desafio é garantir legenda para ser candidato de oposição. Ele é filiado ao União Brasil, que controla três ministérios no governo Lula.

O governador de Minas, Romeu Zema, não enfrenta o mesmo obstáculo. É o único presidenciável do Novo, que rasgou a fantasia liberal e assumiu a identidade bolsonarista. Nesta semana, ele esqueceu a retórica contra os impostos e aumentou o ICMS sobre importados. Criticado pela incoerência, foi obrigado a voltar atrás.

Zema se reelegeu no primeiro turno, mas anda em baixa na política mineira. Em 2024, conseguiu perder duas vezes a mesma eleição para prefeito de Belo Horizonte. Apoiou Mauro Tramonte, que não passou do primeiro turno, e Bruno Engler, derrotado no segundo.

Filho de quem o nome indica, o paranaense Ratinho Júnior, do PSD, também busca alçar voo nacional. Até aqui, não convenceu nem o presidente de seu partido, Gilberto Kassab. Conhecido pelo pragmatismo, ele parece mais interessado em se cacifar como padrinho de Tarcísio de Freitas, do Republicanos.

Na visão do PT, a rinha dos governadores está definida. “O candidato da direita chama-se Tarcísio de Freitas. A elite de São Paulo já o abraçou”, crava o ex-ministro José Dirceu. Falta convencer o capitão, que não perde uma chance de menosprezar o pupilo. Há poucos dias, ele disse à Folha de S.Paulo que Tarcísio não tem nada de “excepcional”. “É um bom político, assim como tem outros nomes pelo Brasil”, desdenhou.

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DIREITA VIVE MARÉ BAIXA, MAS LULA NÃO APROVEITA

Vera Magalhães, O Globo

Nem dificudades de Bolsonaro nem medidas pensadas para melhorar popularidade do presidente conseguem levar o governo a retomar o comando da agenda legislativa e política

Pela primeira vez em algum tempo, a direita e a extrema direita brasileiras parecem desorientadas diante do agravamento da situação judicial de Jair Bolsonaro e seu entorno. O surpreendente é que nem isso tem sido suficiente para que o governo Lula, que já navega sem bússola há mais tempo que seus opositores, encontre o rumo da retomada da agenda do país e da popularidade perdida.

O presidente foi à Ásia e voltou, se fez acompanhar de todos os responsáveis pelo andamento do Congresso e, ainda assim, não há garantia de que conseguirá de novo assumir o comando da agenda legislativa, algo que não tem desde o fim de 2023.

Lula tinha a faca e o queijo na mão para — depois de tanto tempo de conversas ao pé do ouvido com Hugo Motta, Davi Alcolumbre e seus antecessores, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco — voltar com a reforma ministerial resolvida e a pauta de votações acordada. Mas o que os viajantes encontraram foi uma pressão do PL pela votação da anistia para os condenados do 8 de Janeiro, que está longe de ser um clamor popular e interessa apenas a Bolsonaro e aos seus.

O presidente da Câmara tem resistido no limite de alguém que contou com apoio de gregos e baianos para se eleger, como diria o mestre Gilberto Gil. Não quer de jeito nenhum avançar com essa matéria, mas também não quer se indispor com a maior bancada da Casa logo na largada de sua gestão.

Se o governo fosse forte no Parlamento, seria mais fácil cerrar fileiras com o Centrão e simplesmente passar o trator em cima dos que defendem a anistia, virar essa página e começar, finalmente, a discutir as matérias econômicas, estas sim prioridades dos brasileiros.

Se Motta tiver pulso, esse deve ser seu discurso a partir desta quarta-feira, quando a birra dos bolsonaristas por uma anistia para os seus baterá de frente com a urgência de o Brasil ter um instrumento para responder ao tarifaço de Donald Trump.

Sim, a maré da direita também não é das melhores, porque o inferno astral de Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal coincide com a constatação, óbvia, de que aqueles que se empolgaram e vestiram o boné com os dizeres “Make America Great Again” agora veem seu chapa adotar uma série de medidas que serão extremamente prejudiciais ao Brasil, com setores que apoiaram Bolsonaro, como o agronegócio, entre os mais atingidos.

O resultado foi a rara união de esforços entre governistas e oposicionistas no Senado neste início de semana, com a aprovação a jato do projeto que dá ao país instrumentos para adotar alguma reciprocidade em caso de tarifas arbitrárias partindo dos Estados Unidos. A Câmara, agora, pode se unir a esse esforço de responder às ameaças à economia nacional ou ficar emperrada por causa da birrinha dos bolsonaristas — nada que dê muito Ibope para o ex-presidente e seus estridentes apoiadores na guerrilha digital pela qual costumam dar a vida.

Quem esperava que o simples alinhamento ideológico com Trump fosse um trunfo para Bolsonaro se contrapor ao avanço das investigações e, agora, do processo contra si na Justiça brasileira assiste meio atônito à rápida constatação de que sua guerra comercial tendo o Brasil como um dos alvos também atingiu em cheio esse discurso para a plateia.

O curioso é que nem essa maré de desventuras para a família Bolsonaro e os seus seguidores se reverte, até aqui, em melhora na sorte de Lula. Novas pesquisas continuam apontando queda na popularidade do presidente, cuja caixa de ferramentas de medidas para tentar acertar o coração e o bolso dos eleitores já foi aberta e começa a se mostrar esgotada.

O presidente tem, no enfrentamento aos abusos de Trump, mais uma chance de unir o Centrão em torno de seu mandato, mas falta a ele capacidade resolutiva e atratividade, mesmo quando o adversário abre a retaguarda e permite o contra-ataque.

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terça-feira, 1 de abril de 2025

BOLSONARO POR ELE MESMO

Míriam Leitão, O Globo

Bolsonaro é um réu que facilita o trabalho da acusação, pois suas próprias declarações acabam servindo como provas contra ele

Desde que se tornou réu, Jair Bolsonaro tem se esforçado para progredir para a situação de réu confesso. A entrevista à Folha de S.Paulo vai nessa direção. Ele disse que não esperava o resultado das eleições e, por isso, passou a pensar em alternativas. O único caminho possível após uma derrota eleitoral é respeitar a decisão, reconhecer a derrota e preparar a transição. Não foi o que ele fez.

“Eu conversei com as pessoas, dentro das quatro linhas, que vocês estão cansados de ouvir. O que a gente pode fazer? Daí foi olhado lá, sítio, defesa, 142, intervenção”, disse ele à repórter Marianna Holanda. Está aí a confissão. Nada havia de anormal no país para se pensar em alternativas. As figuras constitucionais do estado de defesa e do estado de sítio têm que ter uma causa: “comoção grave de repercussão nacional”. Quem estava em comoção era ele, que “não esperava o resultado”, apesar de ter ficado atrás em todas as pesquisas, durante todo o tempo da disputa eleitoral. O problema era dele e não do país. Sobre o artigo 142, já havia encomendado uma interpretação torta, mas que evidentemente não se sustentou. Por fim, ele próprio usa a palavra autoexplicativa “intervenção” como alternativa analisada nesse momento pós- eleitoral.

“Não tem problema nenhum conversar: conversa primeiro com o ministro da Defesa. Depois na segunda reunião que apareceu os caras lá. Existe algo fundamentado, concretamente, para a gente buscar uma alternativa? Chegou à conclusão de que, mesmo que tivesse, não vai prosseguir. Então esquece”, disse, na entrevista à Folha, nesta sucessão de frases sem sujeito.

De novo, ele produz provas contra si mesmo. Ninguém o obrigou. Quando diz “então esquece”, o país não pode esquecer. O ex-presidente está admitindo que, no exercício do mandato, analisou tudo, até intervenção, contra o resultado eleitoral que o desfavoreceu. E, nessa reunião “com os caras lá”, chegou à conclusão de não prosseguir.

Em outro trecho, repete: “Reuni duas vezes com os comandantes militares, com umas outras pessoas perdidas por ali. Mas nada com muita profundidade porque quando você perde uma eleição, você fica um peixe fora d’água”. Ele pode se sentir desconfortável, um peixe fora d’água, ao perder a eleição. Mas não pode usar o fato de ainda ser presidente para convocar o ministro da Defesa e “os caras lá”, e discutir um golpe de Estado contra o resultado das urnas.

Cada palavra dele volta-se contra ele. “Não tem problema nenhum conversar”. Tem sim. É conversa sobre o cometimento de um crime. É exatamente isso que está tipificado na lei de Defesa do Estado de Direito, que o próprio promulgou, e na qual agora está enquadrado.

Os dias de ontem e hoje, 31 de março e primeiro de abril, não nos deixam esquecer a dimensão da tragédia que se abre para o país quando ocorre o que está implícito nessas conversas que o ex-presidente quer tratar como banais, corriqueiras, sem profundidade e que devam ser esquecidas. “Conhecemos o caminho maldito”, avisou Ulysses na promulgação da Constituição. Conhecemos demais, na verdade. Nada há de trivial no que conta e caberá a ele se defender com o apoio dos seus advogados, porque essas conversas que confessa ter tido eram crimes. E as provas coletadas mostram que foram muito além das conversas.

Em determinado momento na entrevista, Bolsonaro diz: “se você quer dar golpe, troca o ministro da Defesa, troca o comandante da Força, bota um pessoal disposto a sair fora das quatro linhas”. Foi exatamente o que ele fez em 29 de março de 2021. Ele demitiu o ministro Fernando Azevedo e nomeou o general Walter Braga Netto. Em seguida, trocou os três comandantes militares pelos general Paulo Sérgio Nogueira, Brigadeiro Baptista Júnior, e almirante Almir Garnier. Dos quatro nomeados naquele momento, três são réus com ele por tentativa de golpe de Estado. O jogo foi armado um ano e oito meses antes. “Um golpe, a história nos mostra, você não resolve em meses, anos”, explica o ex-presidente. É isso. É ele que diz. Bolsonaro é um réu que facilita o trabalho da acusação.

O Brasil está em terreno novo nesse momento ao tornar réus o ex-presidente e generais de quatro estrelas por tentativa de golpe de Estado. Levá-los a julgamento é mudar a História da República pela raiz.

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segunda-feira, 31 de março de 2025

QUANDO A FRAGMENTAÇÃO PROTEGE A DEMOCRACIA

Carlos Pereira, O Estado de S. Paulo

A fragmentação no Brasil revelou-se mais eficaz contra líderes iliberais do que modelo dos EUA

Durante décadas, exaltamos as proezas da democracia americana. O sistema institucional majoritário dos EUA — presidencialista e bipartidário — era visto como um modelo a ser seguido.

Afinal, trata-se da democracia mais longeva e mais rica do mundo. Muitos ainda hoje atribuem a esse arranjo institucional o segredo do seu sucesso. A existência de um presidente, ainda que constitucionalmente limitado, amparado por uma maioria legislativa de seu partido, capaz de implementar sua agenda com poucas concessões. Soma-se a isso uma justiça ágil, eficaz e, em parte, escolhida diretamente pelos próprios eleitores.

Em contraste, sistemas presidencialistas multipartidários como o brasileiro são frequentemente retratados como disfuncionais e caóticos. A crítica recorrente apontava para a fragmentação partidária, a ineficiência decisória, a instabilidade institucional e um judiciário moroso e ineficaz — embora independente. Alguns, inclusive, responsabilizavam o sistema político brasileiro pelo desempenho econômico abaixo do esperado.

No entanto, a forma como Brasil e Estados Unidos têm lidado com líderes de perfil abertamente iliberal desafia essa interpretação tradicional. Ao observarmos as respostas institucionais diante das ameaças representadas por Jair Bolsonaro e Donald Trump, temos

bons motivos para reconsiderar os méritos do sistema político brasileiro.

O Brasil tem demonstrado notável resistência democrática. Bolsonaro foi derrotado nas urnas, declarado inelegível pela Justiça Eleitoral e agora virou réu na Justiça comum por suas tentativas de subverter a ordem democrática. Já os Estados Unidos, apesar de toda sua tradição institucional, foram incapazes de impor limites à candidatura de Trump — mesmo após a invasão do Capitólio, diversas investigações em curso, inclusive com uma condenação por júri.

Essa comparação revela uma ironia: o sistema fragmentado brasileiro, tão criticado por sua suposta ineficiência, tem se mostrado mais robusto na contenção de autocratas do que o sistema majoritário e bipartidário americano. A concentração de poder — com apoio legislativo e popular — em torno de Trump, ao invés de proteger a democracia, parece ter fragilizado ainda mais os mecanismos de freios e contrapesos nos EUA, haja vista as sucessivas ameaças que juízes federais americanos têm recebido por restringir algumas de suas Ordens Executivas.

Talvez seja hora de reavaliarmos as virtudes e os riscos de cada modelo. E, sobretudo, de reconhecer que, diante de crises democráticas, a fragmentação pode ser uma salvaguarda — e não uma ameaça.

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TESES FRUSTRADAS DE UM RÉU

Rafael Mafei, especial para a Piauí

Como o STF rebateu as contestações de Bolsonaro e fez dele o primeiro ex-presidente a responder por crimes contra a democracia

Dois anos atrás, Donald Trump se tornou o primeiro ex-presidente americano a ser indiciado criminalmente. No Brasil, não se trata de um acontecimento tão raro: de Sarney a Lula, assistimos a indiciamentos, denúncias, condenações e até prisões de ex-presidentes. Nenhum deles, contudo, foi a julgamento por um crime tão grave quanto tentativa de golpe de Estado. Só por esse motivo, o processo que o Supremo Tribunal Federal iniciou nessa quarta-feira (26) contra Jair Bolsonaro já pode ser considerado histórico. Um marco civilizacional em um país que não costuma julgar crimes contra sua democracia.

Houve poucas surpresas na sessão de julgamento, iniciada na terça-feira (25). A Primeira Turma do STF – formada por Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flavio Dino e Luiz Fux – aceitou a denúncia contra Bolsonaro e outros sete acusados que, segundo a Procuradoria-Geral da República, formavam o núcleo central da trama golpista. Inesperada mesmo, só a presença de Bolsonaro na primeira fileira do plenário, em um tribunal que ele sempre atacou e que seus seguidores vandalizaram no 8 de janeiro. Do lado de dentro, o ex-presidente se portou exemplarmente. Não perturbou os trabalhos e recusou até um copo d’água. Do lado de fora, já como réu, repisou numa coletiva de imprensa os seus bordões e voltou a colocar em dúvida, sem provas, o sistema eleitoral.

O recebimento dessa primeira denúncia é uma luz no fim do túnel para um tribunal que há tempos anda tumultuado com investigações complexas. Inquéritos, mesmo os mais complicados, devem caminhar para uma conclusão, como frisou recentemente o ministro Luís Roberto Barroso ao tratar da investigação sobre a disseminação de fake news, aberta pelo Supremo em 2019 e ainda não concluída. O recebimento das denúncias contra os núcleos golpistas pode ser o pontapé inicial nesse sentido. 

As questões jurídicas que se discutem em sessões desse tipo costumam ser diferentes daquelas que virão à tona durante o julgamento. Tratam de assuntos preliminares ao processo, e não de provas, culpados e inocentes. Os embates a que assistimos esta semana, no entanto, esclareceram pontos importantes e tiraram do caminho reclamações frequentemente ouvidas contra o Supremo. Cabe analisá-los com atenção. 

Nesse primeiro momento, o que interessava aos acusados eram as questões de natureza processual. Em primeiro lugar, discutiu-se a adequação formal da denúncia – isto é, se ela apresentava fatos e crimes bem delineados, assim como seus respectivos responsáveis e provas. Não havia dúvidas de que a peça apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet passaria por esse crivo. O segundo ponto dizia respeito àquilo que, no jargão do direito, se chama “juiz natural”. Toda ação penal deve ser julgada no foro adequado, por um juiz (ou mais de um, como é o caso) que tenha independência e imparcialidade.

Esse segundo ponto foi o mais debatido, por conta do foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado, uma eterna bola dividida na Justiça. A discussão principal era se o Supremo poderia julgar pessoas que, por lei, não mais dispõem do foro, mas que dispunham dele quando praticaram os crimes dos quais agora são acusadas. É o caso de Bolsonaro, que era presidente da República e usou seus poderes para praticar os atos caracterizados na denúncia como crimes, mas deixou o cargo há dois anos.

Trata-se de um daqueles imbróglios jurídicos para o qual uma aparente solução sempre acarreta um novo problema, e assim por diante. Os problemas com a prerrogativa de foro, de tão antigos, renderam o primeiro embate entre a ditadura militar e o Supremo. O golpe contra João Goulart foi desencadeado no dia 31 de março, uma terça-feira; na sexta-feira da mesma semana, o STF aprovou uma súmula aparentemente banal, estabelecendo a tese de que a prerrogativa de foro se prolongava além do tempo de exercício da função pública. Ou seja, pessoas que um dia foram autoridades e tiveram direito ao foro continuariam a tê-lo. O tribunal se preparava para o que vinha pela frente, pois ninguém duvidava, desde a primeira semana, que o novo governo cassaria opositores e tentaria julgá-los nas auditorias militares.

O Supremo, apesar do embate, manteve essa interpretação da lei durante a ditadura. Ela mais tarde foi consolidada na Constituição de 1988, que trouxe, porém, uma inovação: deputados e senadores, que antes não tinham foro no STF, passaram a tê-lo. Com um Ministério Público fortalecido pela Constituinte e dotado de liberdade e orçamento para investigar, o número de casos que chegavam ao tribunal disparou. Por isso, a partir de 1999, o Supremo começou a adotar uma nova interpretação da lei. Os ministros concluíram que, terminado o exercício do cargo público, o político não teria mais direito ao foro por prerrogativa de função.

Nada resolvido, porque surgiram então novos desafios: parlamentares passaram a renunciar aos seus mandatos às vésperas dos julgamentos, deslocando o processo abruptamente para a primeira instância para forçar atrasos e, com alguma sorte, a prescrição. Pintaram também novas dúvidas: se a autoridade mudasse de cargo e, com isso, de foro (digamos, passando um tribunal estadual para o STF), o que deveria acontecer com seus processos? Cairiam para a primeira instância ou, pelo contrário, subiriam para a instância superior? Profissionais do direito deram a essa barafunda o apelido de “elevador processual”.

Esse era o primeiro ponto a ser esclarecido no que dizia respeito a Bolsonaro e outros acusados. A resposta do Supremo, fixada em outros julgamentos recentes, foi categórica: o foro privilegiado se estende a ex-autoridades, com a condição de que o crime julgado tenha sido praticado no exercício do cargo e seja relacionado a ele.  

Aessa discussão, somou-se outra: por que a ação deveria transcorrer na Primeira Turma do Supremo, e não no plenário, onde todos os onze ministros podem se manifestar? Como a Constituição não impõe quórum qualificado para o julgamento de ações penais, o regimento do tribunal permite que se opte por uma opção ou pela outra. Quanto se trata de presidentes e outras poucas autoridades no exercício do cargo, o regimento exige análise do plenário. Sobre ex-autoridades, ele nada diz. 

A praxe de julgar toda e qualquer ação penal no plenário se mostrou disfuncional no caso do mensalão. Na época, o mais importante órgão do Supremo ficou mais de seis meses praticamente paralisado por um único processo. Distribuir as ações entre as turmas, solução adotada logo em seguida, resolveu o problema, mas criou outro: como os ministros-relatores dispõem de um poder quase imperial de remeter casos da turma ao plenário, justificando-se com um genérico “relevância jurídica do caso”, o destino de muitas questões penais passou a ser definido por conveniência ou estratégia dos relatores. Estabeleceu-se um sistema imprevisível, abrindo margem a incertezas que as regras de competência processual deveriam evitar. Talvez por isso os integrantes da Primeira Turma, com exceção de Fux, tenham optado pela interpretação de que ao plenário cabem estritamente as ações penais previstas de forma taxativa no regimento do STF. Nada de ex-autoridades no plenário, portanto.

O terceiro ponto discutido foi a alegada suspeição de Alexandre de Moraes, invocada à exaustão por Bolsonaro e já rechaçada, também à exaustão, pelo Supremo. Para a melhor compreensão desse ponto, convém destrinchar o bordão segundo o qual Moraes “é vítima, investigador e juiz ao mesmo tempo”. Não é bem assim.

O ponto mais fraco dessa tese está na classificação de Moraes como vítima, porque juridicamente ele não o é. Em graus diferentes, todos os ministros do STF foram, individualmente, atingidos pela violência bolsonarista. Barroso e Edson Fachin foram verbalmente atacados por Bolsonaro diversas vezes enquanto presidiam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O relatório da Polícia Federal que embasou a denúncia mostra que, além de Barroso, Fux também foi alvo do chamado gabinete do ódio. Conteúdos mentirosos o associavam a um banco que tem participação acionária em uma empresa que fabrica urnas eletrônicas. O objetivo era insinuar que Fux tinha interesse financeiro na preservação das urnas. O mesmo Fux, na sessão de quinta-feira (26), relembrou que sua mesa e seus documentos foram incendiados no 8 de janeiro. Até mesmo André Mendonça e Kássio Nunes, indicados pelo agora réu Bolsonaro, tiveram seus locais de trabalho invadidos e destruídos pela turba – afinal, foram vandalizadas as salas de julgamento, os corredores e os salões que ambos frequentam cotidianamente. Se considerarmos que os ataques ao Supremo se estendem a seus integrantes, sobrará algum ministro apto a julgar os golpistas?

É verdade que Moraes concentrou mais ataques que os colegas, constando até mesmo entre os alvos que seriam assassinados no plano Punhal Verde e Amarelo. Quando isso ocorreu, no entanto, sua relatoria nessa matéria já estava estabelecida havia muito tempo, após debates e decisões no tribunal. Não convém que um investigado possa, por ato exclusivo seu, ensejar a suspeição de um juiz que ele decidiu atacar. Isso o permitiria manipular a escolha do magistrado. O Código de Processo Penal diz que o juiz não deve julgar a causa de quem seja seu “inimigo capital”. Não fala em adversário, desafeto, nem de mero inimigo. O adjetivo “capital” serve justamente para restringir o alcance da suspeição. Ao menos essa interpretação tem permanecido estável na jurisprudência do Supremo: até 2018, segundo uma pesquisa da FGV Direito SP, nunca houve situação em que o tribunal tivesse reconhecido a suspeição de um ministro contra a vontade dele próprio.

Por último, a reclamação de que Moraes atua como “investigador e juiz ao mesmo tempo” tem alguma pertinência. A regra, no sistema processual penal brasileiro, é que o juiz que julga não tenha sido o mesmo que supervisionou o inquérito. Essa importante garantia, que ajuda a preservar a imparcialidade dos magistrados, não é oferecida a quem responde a uma ação diretamente no STF. Esse, aliás, não é o único direito mitigado para os réus do tribunal: ao contrário dos acusados em outras instâncias, eles não dispõem de um órgão recursal ao qual possam apelar.

Mas esse problema, que é real e deveria ser resolvido por uma reforma legal e regimental, está longe de ser uma novidade. O mesmo acontece em todos os julgamentos do Supremo – treze anos atrás, ouvimos reclamações sobre a suposta parcialidade de Joaquim Barbosa e a impossibilidade de recorrer das decisões do julgamento do mensalão. Quem pede estabilidade e previsibilidade, que até há pouco faltavam nas decisões sobre competência e prerrogativa de foro, pode ao menos ter como consolo o fato de que, nesse ponto, tudo continuará como sempre foi. 

Odesenrolar do processo contra Bolsonaro e seus aliados é difícil de prever, mas o encerramento da sessão de quarta-feira (26) sugeriu que o tribunal pode encampar uma discussão mais aprofundada sobre a dosimetria das penas pelo 8 de janeiro. Fux, embora tenha aceito integralmente a denúncia apresentada pela PGR, comentou que a pena imposta à cabeleireira Débora Santos (que pichou a estátua da Justiça em frente ao tribunal) lhe causou “sensação de injustiça” e que, por isso, abrirá divergência nesse quesito. O incômodo não é só dele. É mesmo questionável, juridicamente, que a cumulação dos crimes de tentativa de abolição do estado democrático de direito e de golpe de Estado seja aplicável a todos os invasores.

Mas vale notar que, nesse ponto específico, a situação de Bolsonaro e dos outros sete réus julgados com ele não é a mesma da turba do 8 de janeiro. Ao contrário de Débora, por exemplo, o ex-presidente e seus aliados atuaram continuamente, ao longo de meses, contra a Justiça Eleitoral, contra as eleições democráticas e contra o governo Lula já eleito, com plena consciência do que faziam. Ao estimularem e viabilizarem a invasão, inclusive garantindo a omissão das forças de segurança que facilitou o ataque à Praça dos Três Poderes, eles buscavam criar condições para a deposição do governo já empossado. Daí porque uma eventual reconsideração das penas em favor de um ou outro acusado do 8 de janeiro não significa que o mesmo será feito com os principais réus da trama golpista, caso sejam condenados.

Rafael Mafei

É advogado e professor de Direito na USP e na ESPM. Publicou Como Remover um Presidente: Teoria, História e Prática do Impeachment no Brasil (Zahar)

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MARINE LE PEN INELEGÍVEL

Do g1

Marine Le Pen, líder da extrema direita na França, se torna inelegível após condenação por desvios públicos

Deputada francesa foi condenada nesta segunda (31) por desvio de fundos públicos. Le Pen lidera pesquisas de intenção de voto para eleições.

A líder da extrema direita na FrançaMarine Le Pen, foi declarada inelegível nesta segunda-feira (31) pela Justiça francesa.

Le Pen foi condenada por desvio de verbas públicas e também sentenciada a quatro anos de prisão — das quais duas devem ser anuladas. A Justiça decidiu que ela deve ficar inelegível por cinco anos. Ela deve recorrer da decisão.

Le Pen liderava as pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições presidenciais na França, em 2027.

Segundo a condenação, ela desviou verbas de gabinete quando era deputada no Parlamento Europeu para pagar funcionários de seu partido, o Reunião Nacional.

No julgamento, Le Pen e seu partido argumentaram que o dinheiro foi usado de forma legítima e que as alegações definiram de forma muito restrita o que um assistente parlamentar faz.

Mas a juíza Bénédicte de Perthuis, que anunciou o veredito, disse que Le Pen sabia do esquema e estava "no centro" dele.

A juíza, do tribunal do Paris que julgou o caso, calculou o prejuízo total em 2,9 milhões de euros (cerca de R$ 18 milhões de reais), ao fazer "o Parlamento Europeu pagar pessoas que na realidade trabalhavam para o partido".

Repercussão

O Reunião Nacional disse que a sentença desta segunda foi a "execução da democracia francesa".

Aliados de Le Pen também criticara a decisão. O Kremlin disse que a Justiça francesa condenou a democracia no país — o presidente russo, Vladimir Putin, já fez declarações favoráveis a Le Pen, que costuma ser questionada na França por sua proximidade com ele.

O presidente da Hungria, Viktor Orbán, também da extrema direita, condenou a decisão.

Marine Le Pen ainda não havia se pronunciado sobre a condenação até a últiam atualização desta reportagem. Ela deixou o tribunal antes de o juiz anunciar a sentença.

'Momento político sísmico'

Arnaud Benedetti, analista político que escreveu um livro sobre o RN, disse que a proibição de Le Pen é um momento decisivo na política francesa que repercutirá em todos os partidos e no eleitorado.

"Esse é um evento político sísmico", disse ele. "Inevitavelmente, isso vai remodelar o grupo, especialmente à direita."

O que acontece agora?

Apesar de Marine Le Pen ainda não ter se manifestado, os franceses já começaram a especular os cenários a partir da inelegibilidade da deputada.

O principal cenário é que Jordan Bardella, considerado o "pupilo" de Le Pen, se candidate em seu lugar. Bardella chegou a concorrer, no ano passado, nas eleições para primeiro-ministro — cargo que governa em conjunto com presidente na França mas tem menos importância e peso simbólico no país europeu.

Nesta segunda, Bardella se pronunciou sobre a condenação de Le Pen, dizendo que "foi a democracia que foi assassinada hoje". Mas ele não informou se pretende concorrer no lugar da deputada.

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ADOLESCÊNCIA E O MACHISMO NA REDE

Artigo de Fernando Gabeira

A série “Adolescência” trouxe um grande número de debates envolvendo as redes sociais. Um dos temas novos para o público brasileiro foi a menção aos incels (celibatários involuntários), subcultura muito atuante na internet que já produziu algumas tragédias.

Fui despertado para o tema pela leitura de dois livros: “Hate in the homeland: the new global far right”, de Cynthia Miller-Idriss, e “Meme wars” (guerras de memes, em tradução livre), de Joan Donovan, Emily Dreyfuss e Brian Friedberg. Pensei em escrever sobre isso quando as redes da primeira-dama foram invadidas por um jovem que, pelo que li, se declarou influenciado pelos incels. Mas, para evitar o clima de polarização, resolvi esperar nova oportunidade.

Os incels em alguns casos se consideram rejeitados pelas mulheres e culpam o feminismo. Na série, o personagem diz que 80% das mulheres se interessam por apenas 20% dos homens. Se limitassem seu discurso apenas a um lamento pela solidão involuntária, seriam inofensivos. Mas, nos Estados Unidos, já moveram grandes campanhas nas redes sociais visando a determinadas mulheres, com o objetivo de tornar sua vida infernal.

Mais que isso: uma simples pesquisa revela que os incels inspiraram vários crimes horrendos no mundo. Em 2014, Elliot Rodger, na Califórnia, matou seis pessoas e feriu 14 antes de se suicidar. Deixou um manifesto culpando as mulheres, por rejeitá-lo, e os homens bem-sucedidos na vida amorosa. Alek Minassian, em Toronto, no Canadá, atropelou e matou dez pessoas com uma van e declarou num post no Facebook que era um “levante incel”. Isso foi em 2018. Jake Davison matou cinco pessoas, inclusive a própria mãe, no Reino Unido em 2021. Ele consumia conteúdo misógino.

Os pesquisadores observam que não existe apenas uma subcultura levando à radicalização on-line. Aconselham pais, educadores, autoridades a se dar conta de que isso já é realidade cotidiana. Nem todas as interpretações que surgiram após a série “Adolescência” podem estar corretas. Alguns culpam as feministas por não educarem os homens. Mas a verdade é que o incels fazem carga contra as feministas, ignorando que nem todas as grandes transformações sociais nesse campo foram produzidas por elas. E, afinal, elas não são maioria entre as mulheres. Na verdade, os incels as transformam num bode expiatório de uma transformação muito mais ampla e difícil de conter.

Outro argumento muito comum é que as famílias perderam seus filhos para as redes sociais. Já ouvi o mesmo argumento com relação à comunicação de massa, televisão e também com relação à música, principalmente o rock. De fato, a influência das famílias vem decrescendo, mas ainda há grande possibilidade de intervenção, desde que elas se abram para estudar esses movimentos. O livro “Meme wars” apresenta um ângulo interessante porque se dispõe a falar das muitas e ainda não reveladas batalhas que ameaçam a democracia.

No Brasil existem pesquisas e gente trabalhando na observação dessas subculturas na internet. Há até registro de um caso de ataque no Espírito Santo, em 2022. Todos os que trabalham com o tema se comovem com a dor dos pais surpreendidos pelo comportamento dos filhos e sofrem muito se questionando sobre a própria responsabilidade. No caso registrado no Espírito Santo, um garoto de 16 anos matou quatro pessoas, influenciado por uma rede neonazista.

A pesquisadora Michele Prado já alertou autoridades sobre esse grupo, indicando autores brasileiros que contribuem com a rede, sobretudo uma publicação voltada para radicalização e recrutamento. A série “Adolescência” é apenas um ponto de partida para um universo subterrâneo imenso.

Artigo publicado no jornal O Globo em 31 / 03 / 2025

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domingo, 30 de março de 2025

ABANDONADA POR BOLSONARO

Renata Galf, Folha de S.Paulo

Zambelli diz se arrepender de dia da perseguição armada e se vê abandonada por Bolsonaro

Com maioria no STF para condená-la e cassá-la, deputada diz que esperava apoio de ex-presidente

São Paulo A deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) diz se arrepender do episódio em que perseguiu um homem com arma em punho na véspera da eleição de 2022 em São Paulo. "Devia ter entrado no carro e ido embora."

Ela se vê abandonada por Jair Bolsonaro (PL), de quem era uma das principais aliadas, e discorda do ex-presidente, que credita a ela a derrota para Lula (PT) naquele pleito. "Não só eu como outras pessoas também perderam a amizade do presidente no momento que precisaram", afirma.

Na última semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) formou maioria para condená-la a 5 anos e 3 meses de prisão em regime semiaberto e à perda de mandato por porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal com emprego de arma. O julgamento está suspenso.

Porta-voz de destaque do discurso bolsonarista contra urnas, ela ainda buscará reverter, no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), uma condenação por desinformação.

Para representar a direita na eleição de 2026, Zambelli defendeu os nomes de Michelle e Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Após a entrevista, a deputada procurou a reportagem e disse ter mudado de ideia sobre a resposta, afirmando ser muito cedo para falar sobre um cenário ainda não definido.

Como a sra. define seu momento atual?
Estou num momento mais difícil politicamente falando. Nunca imaginei passar por uma situação dessa. Uma possível prisão, por um crime que não cometi. Considero isso uma perseguição política.

Na última segunda-feira, o ex-presidente Bolsonaro disse ‘a Carla Zambelli tirou o mandato da gente’, sobre o episódio com a arma. Como avalia essa fala?
Eu discordo do presidente Bolsonaro. Eu acho que atrapalhou, sim. Mas não teve vários dias de divulgação dessa imagem. Foi simplesmente meio dia. Não acho que tanta gente tenha mudado de opinião em relação ao voto que daria.

É um peso bastante grande ter ouvido aquilo. Pesou bastante nas minhas costas. Na verdade, desde 2022 enfrento depressão por causa desse episódio e tive vários momentos bem ruins. Ter ouvido isso dele me deixou bastante chateada.

A sra. se vê, de certa forma, abandonada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro?
Sim.

O que a sra. esperava?
Acho que esperava apoio. Desde 2013 eu apoio o Bolsonaro. Antes como ativista, nas causas dele, ajudei na eleição de 2018. Durante todo o governo. Acho que eu fui uma das pessoas mais linha de frente dentro do Congresso para poder defender o governo, o presidente.

Esperava ter algum tipo de retribuição em relação a isso. Ou seja, contar com a amizade dele nesse momento difícil. Mas acho que não só eu como outras pessoas também perderam a amizade do presidente no momento que precisaram.

A sra. pretende ir em algum ato a favor de Bolsonaro, como no dia 6 de abril na av. Paulista?
Não, eu não vou no dia 6 de abril, porque é sobre anistia. Se chegar na Câmara para votar, vou votar a favor da anistia, mas não posso agora me colocar em risco no meio do meu julgamento.

E manifestações a favor do ex-presidente que venham a acontecer fora essa?
Não sei, ainda não pensei em ir ou não, mas a princípio não.

Em 2023, em entrevista à Folha, a sra. disse que Bolsonaro deveria ter sido claro sobre o que pensava, dizendo para as pessoas saírem dos quartéis, e também que ele deveria estar no Brasil para liderar a oposição. Mantém essa avaliação?
Mantenho. Acho que ele tinha que estar no Brasil e tinha que ter falado para as pessoas saírem de frente do quartel.

Devia ter esclarecido, ou ter feito a live lá de fora, falado 'já tô fora do Brasil, agora não tem mais chance de voltar atrás', e pedir para as pessoas irem embora. Isso evitaria o que aconteceu depois.

O ex-presidente ainda se coloca como possível candidato, apesar de estar inelegível. Como a sra. vê o cenário para 2026, quem poderia representar a direita?
Tem a Michelle, a esposa do Bolsonaro, que é uma excelente candidata. Eu acho que é uma pessoa boa e que deveria ter o apoio do presidente. O Tarcísio [de Freitas] também é outra opção.

Só espero que a gente tenha isso tido com antecedência, que nos digam com antecedência para a gente poder trabalhar.

Ele [Tarcísio] hoje é uma pessoa que agrada também a esquerda, agrada o sistema, porque ele tem uma certa entrada pelo STF, tem amizade com alguns ministros. Acho que talvez o Tarcísio seja um bom nome na perspectiva do Bolsonaro.

E na sua perspectiva?
O Eduardo [Bolsonaro] é um bom nome, mas não sei se ele teria o apoio da população como um todo. E a própria Michelle, eu gosto muito do nome dela. Independente do que o Bolsonaro falou sobre mim.

Tarcísio, então, como preferência pessoal, a sra. não apontaria?
A princípio, não.

O ex-presidente Bolsonaro se tornou réu no caso da trama golpista. Como a sra. vê essas acusações, especialmente envolvendo a minuta de estado de defesa e de sítio?
Acho que é absurdo. Como é que um artifício, uma lei que está dentro da Constituição Federal, pode ser golpe? Acho que não tem nada a ver.

Primeiro, porque não foi colocado de fato. Pode ter sido aventado, mas não foi colocado em votação. E segundo que não houve golpe. O Lula teve o poder, pegou o poder e continuou no poder numa boa.

O que teve foi uma manifestação com alguns vândalos, com outras pessoas também defendendo bastante os lugares. Não acho que teve nada a ver com o golpe que aconteceu no final de 2022 e início de 2023.

E sobre as minutas?
Eu recebi uma minuta. Era uma espécie de um decreto, uma coisa assim, e perguntei na época para uma das pessoas do jurídico do presidente Bolsonaro, do Palácio do Planalto, e ele me disse que era fake.

Não acho que o Bolsonaro, algo que está impresso, ou que eventualmente chegou na mão dele… Chegou na minha mão também, e nem por isso eu tinha algum envolvimento com o golpe.

Segundo as investigações, não tinha indício ou prova de fraude em 2022. A sra. considera que havia elementos para implementar um estado de sítio, de defesa ou mesmo o artigo 142?
Não, não acho. Mas também não acho que é crime você estudar o assunto.

No fim de novembro de 2022, a sra. divulgou um vídeo em que dizia, "Dia 1º de janeiro, srs. generais quatro estrelas, vão querer prestar continência a um bandido ou à nação brasileira? Não é hora de responder com carta se dizendo apartidário. É hora de se posicionar. De que lado da história vocês vão ficar?". O que a sra. queria dizer com ‘é hora de se posicionar’?
Acho que era o momento de os generais dizerem se Lula era bandido ou não.

No dia seguinte ocorreu uma audiência no Senado sobre supostos indícios de fraudes nas urnas, em que se falou sobre eventual uso do artigo 142, e em que a sra. estava. O contexto do vídeo era de outro tipo de posicionamento.
Não posso falar sobre isso, porque é motivo de um processo contra mim e que ainda está acontecendo [no STF].

O relatório da PF em que o ex-presidente foi indiciado afirma que a sra. foi citada no depoimento do ex-comandante da Aeronáutica Baptista Jr. e que teria dito a ele: ‘Brigadeiro, o sr. não pode deixar o presidente na mão’. O que a sra. quis dizer?
Na verdade, eu falei em dar força para o presidente. O presidente tinha perdido as eleições e eu falei para ele dar uma força para o presidente. Ele, na época, não respondeu nada. E ele diz na Polícia Federal que respondeu que não faria nada de ilegal, alguma coisa assim. Ele não respondeu isso. Ele mentiu no depoimento dele.

Ele ficou em silêncio?
Não, ele falou alguma outra coisa que eu não me lembro bem o quê, que faz muito tempo. [Se ele tivesse dito isso] teria dito 'eu não tô te pedindo para fazer nada ilegal'.

Quando a sra. diz dar uma força para o ex-presidente, havia uma expectativa de que houvesse algum caminho para que ele ainda se mantivesse no poder?
Existia, sim. Existia a possibilidade, por exemplo, do artigo 142 colocar não ele no poder, né, mas as Forças Armadas no poder, para depois fazer uma nova eleição e tal com urna impressa.

Mas assim eram comentários de algumas pessoas e que a gente não via de fato acontecer isso de verdade, não tinha nenhuma ação para isso acontecer.

Mas houve reuniões e conversas dentro do governo, segundo as investigações. A sra. está dizendo que isso não aconteceu…
Não participei. A gente ouvia dizer, né, ouvia falar, mas não participei de nada.

'Dar uma força' poderia estar dentro de um eventual uso do artigo 142?
Não falei nada que pudesse dar a entender que seria isso.

A sra. foi condenada a cassação e inelegibilidade no TRE-SP e tem maioria pela condenação no STF no caso da arma. Acredita que vai conseguir reverter esses casos na Justiça?
No caso da cassação, a gente tem o TSE agora, para recorrer. É lógico que as chances são baixas, mas a gente vai recorrer e vai tentar. [Senão] Não só eu perco o mandato, mas os deputados que foram levados com os meus votos.

Em relação à condenação do STF por porte ilegal, ainda tenho sim esperança. Acho que o Gilmar Mendes, o ministro relator, e os outros ministros que já votaram, eles eventualmente podem não ter visto meu porte [de arma] lá na minha defesa, mas eu tinha porte federal. [Gilmar aborda esse argumento em seu voto]

[No caso das armas] A sra. considera que a situação naquele dia foi proporcional ao que aconteceu?
Foi proporcional porque teve um tiro. E no momento que teve o tiro e que o policial caiu no chão, ele [Luan Araújo, o homem perseguido] estava em flagrante delito, o policial tinha dado voz de prisão para ele. Eram quatro homens que não só me ofenderam, cuspiram em mim, me xingaram, empurraram meu filho e me empurraram também.

Aí, quando ele foge e eu escuto o tiro, eu só saco a arma depois do tiro. Então, ela foi proporcional, porque quando tem um tiro, você pode sacar sua arma... Na verdade, até antes do tiro eu poderia sacar a arma, né?

Depois a gente ficou sabendo que o tiro tinha sido disparado pelo próprio policial quando caiu. Mas eu, ouvindo um tiro, tenho como pensar que pode ter sido outra pessoa. Então, acho que foi proporcional, sim. Pegando todo o contexto, não acho que eu estava errada.

No vídeo, depois que ele tinha ofendido a sra, é no momento que ele já está se afastando em que a sra. começa a correr atrás dele.
É o momento que eu caio. Na verdade ele não está se afastando. O carro dele estava no lado contrário, pelo qual ele tava andando.

O que aconteceu foi que ele me chamou de prostituta e na hora a cabeça ferveu e eu queria bater nele. Minha ideia ali nunca era sacar a arma. Era trocar soco com ele, a princípio. E depois que teve o tiro, eu tirei a arma.

Aquilo ali foi só uma atitude infeliz que eu tive de ir atrás dele. Infelizmente, ali foi onde eu errei, de querer trocar as tapas, soco, com o homem. Eu jamais ia ganhar um negócio desse.

Como mulher eu deveria ter ido embora, ter cuidado da minha vida, ter aguentado...[Mas] naquele dia eu tinha passado a madrugada recebendo muita ameaça de morte. E aquele alerta que eu estava acabou prejudicando o meu julgamento.

Caso a sra. não consiga reverter a inelegibilidade, pretende voltar para a política depois?
Pretendo, em 2030. Não vão se livrar tão cedo de mim.

Tem algo na sua trajetória na política que a sra. se arrepende ou faria diferente?
Esse dia de ter ido atrás desse rapaz. Devia ter entrado no carro e ido embora, como fazia sempre todas as vezes que tentavam, até hoje, que tentam brigar comigo na rua. Esse dia foi o único dia que eu não saí, infelizmente. Mas me arrependo, deveria ter saído.

E mais alguma coisa?
Ter confiado ou me doado demais por algumas pessoas.

Alguém em específico?
Não. Eu não me arrependo de ter ajudado o Bolsonaro, sabe? Algumas pessoas podem achar que eu posso me arrepender. Eu não me arrependo, não. E vou continuar defendendo ele no que eu achar que é certo.

RAIO-X | Carla Zambelli, 44

Ativista fundadora do grupo Nas Ruas, ganhou notoriedade nos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT). Foi eleita deputada federal pelo PSL em 2018 e reeleita pelo PL em 2022. É gerente de projetos, formada em planejamento estratégico empresarial na Universidade Nove de Julho.

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