A exposição da Pinacoteca de São Paulo, infelizmente, não
ressalta o que de fato ela documenta: a supressão do mundo do caipira e sua
sobrevivência imaginária
A exposição destes dias sobre o caipira, na Pinacoteca do
Estado de São Paulo (“Caipiras: Das Derrubadas à Saudade”), sem o pretender
propõe desafios a quem a visita. A abordagem impressionista trata do que é o
caipira aos olhos de hoje, e não aos olhos da História.
Já no século XVI, os jesuítas criaram comunidades de nativos
nos aldeamentos ao redor da Vila de São Paulo de Piratininga e estimularam o
surgimento de uma cultura diversa da cultura do conquistador e da metrópole. Na
verdade, uma cultura brasileira. Os próprios portugueses se mesclaram com
mulheres indígenas, dando origem a uma nação de mamelucos, isto é de pardos e
mestiços.
A língua indígena dominante, a língua geral, o tupi,
transformou-se em língua de todos, indígenas, mestiços e brancos. No século
XIX, o general Couto de Magalhães a definirá como nheengatu, língua bonita.
No português falado com sotaque nheengatu,
surgirá o dialeto caipira. Difundido a partir de 1727, quando proibida a língua
geral, foi na forma caipira resistência à repressão à possibilidade dos
movimentos nativistas do começo do século XVIII.
Nesse dialeto, a áspera língua da mãe pátria é suavizada
pela abundância de vogais em relação às consoantes. Os erres dos infinitivos
dos verbos são suprimidos e se tornam: falá, dizê. As consoantes dobradas são
substituídas por vogais: orêia, muié, cuié. Os índios tinham dificuldade com as
consoantes e valorizavam as vogais. Sem contar a persistência de toponímicos.
As palavras nheengatu são intraduzíveis do português para o
nheengatu e do nheengatu para o português. Isso fica claro numa obra-prima que
é a obra de Ermanno Stradelli (“Vocabulário
Português-Nheengatu/Nheengatu-Português”, Ateliê Editorial, 2014), um juiz em
Lábrea, na Amazônia, nheengatu falante, que lá morreu (em 1926) num leprosário.
Um milagre que seu manuscrito tenha sido salvo.
No português escrito e no português falado, somos bilíngues.
Bilinguismo disfarçado na pronúncia de erres com sotaques de “éles”
pronunciados pela metade. O índio do período colonial resiste na fala, na
comida, na música, no imaginário brasileiro.
Os jesuítas, no século XVI, adaptaram ritos e danças
indígenas aos ritos católicos. Caso da dança de Santa Cruz, dançada no átrio
das igrejas dos aldeamentos dos arredores de São Paulo nos três primeiros dias
de maio. Ainda persiste no antigo aldeamento de Carapicuíba.
É adaptação da dança do sapo (cururu em tupi), cuja
pronúncia era parecida com “cruz’ e se tornou a dança da Santa Cruz. Em pares,
atrás do violeiro, dançam em direção ao calvário e recuam, de costas em direção
a ele, ritmadamente. Dança caipira.
Em 1929, Cornélio Pires, na “Moda do Bonde Camarão”,
transformou a música caipira em música sertaneja e fez do caipira personagem da
crítica conservadora às anomalias e irracionalidades da sociedade urbana.
Nem por isso as origens remotas, tribais e jesuíticas do
enraizamento da música perdeu formas e significações indígenas. O cateretê, que
foi na origem dança tribal vedada às mulheres, na cultura caipira manteve a
interdição.
Na culinária, o caipira persiste no virado de feijão e na
farinha de milho. Em 1920, à porta de um restaurante uma placa anunciava:
“Hoje, virado à paulista”. Prato ainda hoje servido às segundas-feiras nos
restaurantes populares da cidade de São Paulo.
A legitimidade da figuração do caipira em nossa pintura do
final do século XIX e início do século XX depende da identificação das
características estamentais de sua apresentação pessoal, principalmente andar
descalço. Só a gente de qualidade, os fidalgos, andavam calçados ou montados a
cavalo ou carregados em rede no lombo de servos indígenas ou negros. São
frequentes gravuras e pinturas que retratam escravos solenemente vestidos de
libré, porém descalços.
O caipira, que sobrevive culturalmente, não é ancestral de
bandeirante, nem de fazendeiro, nem mesmo de trabalhador rural. Ele é uma
categoria cultural.
A apresentação da exposição da Pinacoteca, infelizmente, não
ressalta o que de fato ela documenta: a supressão do mundo do caipira e sua
sobrevivência imaginária. “O Violeiro”, de Almeida Júnior, de 1899, foi
comprado em exposição realizada pouco depois do seu assassinato. E doado por
seu comprador à filha, Tarsila do Amaral, com escritura passada em cartório.
Pendurado na parede, o caipira se tornara personagem da vida de quem não o era.
Um detalhe significativo não foi realçado. Em “Caipiras
Negaceando”, que não está exposto, dois caipiras negaceiam a caça, no meio da
mata. Na área posterior sombria, há uma figura. É o autorretrato de Almeida
Júnior. Ele se propõe ocultamente como sujeito e objeto, como artista e
caipira, direito e avesso, o brasileiro desencontrado de si mesmo


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