Nas favelas, multiplicam-se as interrupções de energia em
decorrência do excesso de carga
Outrora invisível, o inimigo está mais evidente do que
nunca. É implacável o calor extremo que alcança, em particular, o Rio de Janeiro desde
a virada do ano. O segundo mês de 2025 nem chegou ao fim, e os especialistas já
atestaram a terceira onda de calor da temporada. É fenômeno que impacta a
saúde, a mobilidade, a aprendizagem, a atividade econômica. Como de resto,
escancara desigualdades tatuadas na sociedade. E flerta com a tragédia.
A Prefeitura do Rio, via secretarias de Saúde, Meio Ambiente
e Centro de Operações, elaborou protocolo de enfrentamento ao calorão. O
conjunto de alertas e ações tomou forma no ano passado, meses depois da morte,
por exaustão térmica, da jovem Ana Clara Benevides Machado, aos 23 anos. Ela
sucumbiu à sensação de 60 oC que a cidade experimentou em novembro de 2023,
durante o show da mega-star Taylor
Swift no Engenhão.
Na ocasião, ficou exposta a desumanidade das condições
impostas aos fãs: proibição de entrada com garrafas nas arenas, bem como de
oferta gratuita do líquido vital. Prioritárias eram as receitas financeiras dos
patrocinadores. O episódio fatal selou a série de normas impostas pela
Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça aos organizadores de
eventos de massa. Tem de haver atendimento médico e ambulância, mangueiras para
banhar e resfriar a plateia. Foi autorizada a entrada com recipientes para
bebidas; tornou-se obrigatória a hidratação gratuita. Água, afinal, é direito,
não item de consumo.
Nesta semana, a capital fluminense alcançou pela primeira
vez o nível 4 na escala de calor, que varia de 1 a 5. Significa dias seguidos
com temperatura de 40 oC a 44 oC. Nenhuma hipótese de chuva. Equipamentos
públicos, de naves do conhecimento a bibliotecas e museus, foram indicados como
pontos de resfriamento com ar-condicionado, água potável, área de descanso.
Distribuidoras saíram às ruas para entregar copos d’água em pontos de grande
circulação e calor, como costumavam fazer apenas nas áreas de dispersão
do carnaval.
São medidas bem-vindas, necessárias, mas ainda
insuficientes. Alunos se manifestaram contra ambientes escolares tornados
saunas de aula. Há estudos que confirmam que o calor excessivo é inimigo da
aprendizagem, tal como a fome e a violência. Os chamados ao Samu saltaram 45%
nos dias de temperatura recorde, segundo a Secretaria estadual de Saúde. Na
capital, em 15 dias, houve 2.400 atendimentos em unidades de saúde em razão do
calor.
O sistema de transportes aprofunda o inferno, com a
combinação de longos trajetos em veículos sem refrigeração, como se
ar-condicionado fosse luxo, não necessidade. O sol, de tão forte, fez um trem
da Supervia descarrilar após um trilho do ramal Guapimirim derreter sob o calor
de 71 oC.
Nas favelas, multiplicam-se as interrupções de energia em
decorrência do excesso de carga. A demanda por energia na Região Sudeste bateu
dois recordes em um mês, segundo dados do Operador Nacional do Sistema. A Light,
concessionária em 31 municípios fluminenses, reportou 1.150 transformadores
queimados por sobrecarga em 45 dias deste ano. O consumo adicional na primeira
quinzena de fevereiro foi equivalente ao de todo o estado de Roraima.
Na Rocinha, no
Alemão, em comunidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense, o emaranhado de
fios em curto entra em chamas. Inflama-se pela energia consumida pela avalanche
de aparelhos ligados simultaneamente. Prenúncio de castatrofe.
Na favela da Zona Sul, a associação de moradores apelou a
comércio e serviços por extintores. A população formou brigadas de incêndio
improvisadas para deter o fogo até a chegada dos bombeiros. Homens, mulheres,
crianças contam consigo e com Deus, na falta de condições de moradia,
infraestrutura adequada, assistência do poder público. Residências ficam mais
de 24 horas sem energia. Há casos de pessoas dormindo ao relento, diante da
impossibilidade de suportar o calor em imóveis densamente habitados com circulação
de ar deficiente.
Até a inflação do ovo se relaciona ao calor extremo. Sim, as
galinhas, afetadas, também produzem menos. Hortaliças e frutas historicamente
ficam mais caras na temporada. Ainda que anuncie medidas de emergência, o poder
público segue devendo. A conta de anos, décadas, séculos de descaso e
urbanização mal feita chegou pesada com o calorão. Todo mundo paga, mas os de
sempre (pobres, pretos, favelados, subocupados) pagam muito mais. E as chuvas
nem deram as caras. Ainda.
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