Esse fascínio atemorizado pela morte decorre de uma
alergia à vida, por um mal-estar civilizatório insuperável
A maior preocupação da plutocracia que acaba de chegar ao
poder com Trump é hoje a imortalidade. Jeff Bezos,
da Amazon,
pesquisa o elixir da juventude, enquanto Sergey Brin e Larry Page, donos
da Google,
concentram-se numa startup ("Calico") cujo objetivo é "matar a
morte". Mas há colaterais de menor porte: movidos por achados
arqueológicos, cientistas vêm se declarando prontos para ressuscitar animais
extintos, do mamute
ao pássaro dodô.
O DNA das fezes e do vômito
de dinossauros é o caminho técnico.
O dodô existia até o século 17 nas ilhas
Maurício, no Índico, desaparecendo 100 anos após a chegada dos humanos.
Anacronismo vivo, semelhante a um pombo de um metro de altura, tinha asas, mas
não voava, não tinha medo de humanos, nem sequer de marinheiros esfomeados. Foi
caçado até o último exemplar, mas ficou como símbolo da indiferença
suicida. Ressuscitar
o extinto é só uma variável dos projetos de extinção da morte.
O documentário "Eternal you"
mostra a IA simulando conversas de vivos com mortos. Mas o passado projeta-se
também para iluminar aspectos obscuros de identidades culturais presentes. É
que, em matéria de evolução, não existe escala única como padrão hierárquico
para os diversos modos de existência. Técnicas e objetos sempre foram vetores
de energia em culturas tradicionais, como entre os europeus, com o diferencial
do grau de desenvolvimento das forças produtivas. O que era sagrado e festivo
perdeu a vez para o mercantilismo.
É preciso, assim, distinguir formas holísticas de vida nas
sociedades tradicionais das formas mortas que rondam a atualidade. Hoje se
assiste a uma mutação radical na espécie humana, em que são convergentes
criação orgânica e criação artificial: tecnologia não é mais um outro do
humano, é também o seu constituinte. São metamorfoses que ainda não se medem
cientificamente, mas podem ser sentidas no cotidiano.
Ou assustadoras sob formas caóticas. Uma delas é a obsessão
com identidades mortas, tematizadas no imaginário como mortos-vivos,
infecciosos e mortíferos. Fantasias do medo radical, que é o medo da morte. E a
solução fantasiosa para a ameaça é sempre o emprego de armas, cada vez mais
criativas e poderosas. Coisa natural para os americanos, cuja cidadania está
ancorada no passado miliciano da independência e da guerra civil. Arma virou
agora fonte de identidade. No Natal, pais deram pistolas verdadeiras de presente
a crianças de seis anos.
Esse fascínio atemorizado pela morte decorre de uma alergia
à vida, por um mal-estar civilizatório insuperável, já que a prosperidade
predatória é outra face da morte do planeta. A Constituição americana consagra
o direito individual de busca da felicidade, mas o país é sem alegria real,
pois alegria ensina que felicidade é comunhão de vida. Importam apenas negócios
e, agora, esperança de futuro em Marte com o homem imortal, o cyborg,
pesquisado por Musk. Vale perguntar o que nós mortais temos a ver com isso.
Nada, responderia o bom senso. Mas a ultradireita sempre encontrará nas redes o
vômito de algum dinossauro político para o DNA da mistificação. Por isso é bom
ter em mente que, no regime "imperial libertário" tramado pelos
plutocratas, democracia é o pássaro dodô da vez.
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