A sanitarista Lígia Bahia é perseguida porque criticou o
apoio do CFM ao uso de cloroquina contra a covid-19 e a falta de incentivo à
vacinação na pandemia
Disponível na plataforma de streaming Netflix, o
filme Joy se baseia na história real da criação da técnica de
fertilização in vitro (FIV). A história de Louise Joy Brown, o primeiro bebê
concebido por meio da técnica, nascido em 1978, é uma vitória contra o
negacionismo. Dirigido por Ben Taylor, o longa mostra uma figura menos
conhecida na história: a enfermeira e embriologista Jean Purdy. Interpretada
por Thomasin McKenzie, ela se une ao fisiologista Robert Edwards (James Norton)
e ao ginecologista Patrick Steptoe (Bill Nighy) na missão de criar a solução
para a infertilidade.
Antes do marco histórico de 25 de julho de 1978, casais que
enfrentavam dificuldades para conceber naturalmente encontravam poucas soluções
eficazes. A jornada iniciou-se em 1969, quando Edwards fertilizou com sucesso
um óvulo fora do útero, no Hospital Dr Kershaw's Cottage, em Manchester. Ao
lado de Steptoe, eles implantaram embriões em 282 mulheres, mas as gestações
não foram bem-sucedidas. Por essa razão, sofreram muitas críticas e quase
desistiram. Jean Purdy convenceu os dois cientistas a retomar as pesquisas.
O negacionismo na medicina quase sempre é
fruto do status quo social, político e/ou científico. Desde o século XIX,
movimentos contrários à vacinação já existiam, mas ganharam força no final do
século XX, com a publicação (fraudulenta) do médico britânico Andrew Wakefield,
em 1998, que associava a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) ao
autismo. O estudo foi desmentido, porém sua tese, até hoje, alimenta o
movimento antivacina global.
A lobotomia promovida pelo neurologista Walter Freeman nos
EUA, entre as décadas de 1930 e 1950, como um "tratamento" para
doenças mentais, apesar da falta de evidências científicas sobre sua eficácia,
causou danos devastadores. Durante décadas, empresas de tabaco financiaram
pesquisas para desacreditar as evidências científicas que ligavam o cigarro ao
câncer de pulmão e outras doenças.
Entre 1980 e 1990, cientistas como Peter Duesberg
argumentaram que o HIV não era a causa da aids, o que influenciou políticas
públicas, especialmente na África do Sul. Ainda hoje, grupos alegam que a
adição de flúor na água potável causa doenças graves, incluindo câncer e
problemas neurológico. A fluoretação reduz cáries e é segura.
Mais recentemente, durante a pandemia da covid-19, a
cloroquina e a hidroxicloroquina foram promovidas como "tratamento
precoce", sem base científica. Apesar de estudos demonstrarem sua
ineficácia contra o vírus, médicos, políticos e até conselhos médicos, como o
CFM (Conselho Federal de Medicina), no Brasil, defenderam seu uso, contribuindo
para a desinformação e para a demora na adoção de medidas eficazes.
Caso Ligia Bahia
O negacionismo quase sempre vem acompanhado de perseguições
aos cientistas e profissionais de saúde pública que o denunciam, como é o caso
do processo judicial movido pelo CFM contra a médica sanitarista e professora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lígia Bahia. O CFM alega que,
em uma entrevista concedida ao canal O Conhecimento Liberta, em 2024, Lígia
proferiu críticas consideradas ofensivas à entidade, especialmente em relação
ao seu posicionamento durante a pandemia da covid-19. A ação judicial solicita
uma indenização de R$ 100 mil, retratação pública e a remoção do conteúdo do
YouTube.
Lígia Bahia criticou o apoio do CFM ao uso de cloroquina,
medicamento sem eficácia comprovada contra a covid-19, e a falta de incentivo à
vacinação. Ela também questionou a postura do conselho em relação ao aborto
legal, especialmente em casos de estupro. A ação movida pelo CFM provocou forte
reação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia
Brasileira de Ciências (ABC), além de outras entidades, como a Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
O caso suscita um debate nos meios acadêmicos e científicos
sobre o papel das entidades reguladoras em temas que exigem mais excelência
científica e menos interesses econômicos e políticos. O CFM tem sido alvo de
críticas devido a decisões negacionistas e polêmicas. Durante a pandemia da
covid-19, o CFM apoiou a autonomia médica para prescrição de medicamentos sem
eficácia comprovada contra o coronavírus, como a cloroquina e a ivermectina, um
endosso ao chamado "tratamento precoce".
A polêmica Resolução nº 2.378/2024, do CFM, proibia a
realização de procedimentos para interrupção da gravidez após 22 semanas de
gestação, mesmo nos casos previstos em lei, como em situações de estupro. A
medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou haver
indícios de abuso do poder regulamentar. Outra controvérsia envolveu a
plataforma Atesta CFM, criada para a emissão de laudos médicos. O Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) suspendeu a obrigatoriedade do uso dessa
plataforma, por violar a competência da União e criar uma reserva de mercado.


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