Impacto das medidas do primeiro mês de governo ficarão
claros no meio deste ano, projeta professor da FDC
Em 2017, o economista, escritor e quadrinista americano
Scott Adams, célebre por ter criado e publicado por mais de três décadas a
tirinha “Dilbert”, uma sátira mordaz do mundo corporativo, lançou o livro “Win
Bigly: Persuasion in a World Where Facts Don’t Matter”.
O título é autoexplicativo. Os fatos não importam. O que
realmente conta é como convencer pessoas - especialmente as que ainda não têm
convicções enraizadas - de que há duas formas de ver o mundo ou de fazer as
coisas: a “nossa” e a “errada”.
No livro - cujo título em português é um quase presunçoso
“Ganhar de lavada” - Addams desfila técnicas e conceitos de convencimento,
muitos deles aplicados na campanha da primeira eleição de Donald Trump, em
2016.
Addams, ele mesmo diz, não é eleitor de
Trump nem de ninguém, mas profundo conhecedor da “arte” de usar fragmentos como
se fossem toda a verdade, distorcer, manipular e falar mais alto para fazer
prevalecer sua própria “verdade” contra a “verdade errada” alheia.
O modus operandi do presidente americano segue em grande
medida o roteiro exibido por Adams. O próprio autor descortina vários exemplos
disso. O discurso de Trump muitas vezes revela mais pelo que esconde do que
pelo que mostra. Seus atos e declarações camuflam segundas intenções e
trabalham para criar confusão proposital, embaralhar e desequilibar o jogo
geopolítico.
“Trump age como se estivesse num reality show”, comenta
Paulo Vicente Alves, economista, administrador, engenheiro e professor da
Fundação Dom Cabral, com um vasto currículo acadêmico nas áreas de gestão
pública, negócios e relações internacionais - além de observador atento de
Trump.
“A cabeça dele é ‘vou pressionar você para você ceder um
pouco; vou tentar desequilibrar a situação usando meu poder de barganha para
você ceder alguma coisa’”, comenta. Foi o que fez ao taxar o mundo todo, em uma
tentativa de trazer empresas de volta para o território americano.
O Brasil já fez isso, lembra Paulo Vicente. Foi uma das
economias mais protecionistas do mundo, “entupido” de taxação. Os resultados
ficaram aquém do pretendido. “A gente teve até a década de 1970 uma política de
substituição de importações que de fato trouxe algumas empresas para cá, mas
que em algum momento se esgotou”, comenta.
E questiona: mesmo considerando que as condições são outras
e a economia americana é muito mais dinâmica e forte que a brasileira, será que
isso vai funcionar por lá?
O roteiro trumpista se repete fora da área econômica.
Taticamente, é mais ou menos o mesmo que Trump faz ao ameaçar a ocupação da
Faixa de Gaza. “Ele tenta desequilibrar ou criar um novo ponto de conversa para
tentar forçar a negociação. Às vezes funciona, mas rapidamente fica muito
previsível que ele vai jogar alguma coisa para tentar desequilibrar”, diz.
É com esse jogador e num jogo ainda mais desequilibrado que
o Brasil, tradicionalmente com pouco poder de barganha diante de qualquer
governo americano, vai se deparar daqui para frente. Em 2024, o Brasil teve
déficit comercial de US$ 223 milhões com os Estados Unidos, o menor em dez
anos, mas ainda assim desequilibrado em favor dos EUA.
O professor da FDC acha que o país pode sofrer muito na
relação bilateral, ainda mais diante do desequilíbrio fiscal que ameaça
fragilizar o atual governo. Estudo da assessoria parlamentar da Câmara dos
Deputados indica risco de paralisia da máquina pública federal em 2027 por
falta de espaço no Orçamento federal.
Com o presidente Lula já pensando na eleição do ano que vem,
comenta, a adoção de medidas amargas e impopulares que possam resgatar a
economia do país torna-se mais e mais improvável. O drama tende a crescer, caso
alguma nova crise, inclusive trazida por ventos externos antecipe os problemas
do país.
Paulo Vicente entende que o governo deveria aprofundar o
ajuste fiscal agora para não ser surpreendido lá na frente, mas não acredita
que o governo o fará.
Reagir com aplicação de tarifas também não é o caminho. O
Brasil já cobra taxas elevadas, de até 100%, em vários produtos. Então,
retaliar é praticamente pedir para que a contra-retaliação seja ainda mais
intensa.
Mas nem tudo é má notícia. O Brasil tem potencial para
aproveitar a reaproximação de investimentos externos voltados para o mercado
americano. Brasil e Argentina, mesmo taxados e com vários problemas internos a
resolver, poderiam disputar esses investimentos em condições mais vantajosas
que o México, cujo custo da mão de obra começa a se tornar um obstáculo, opina
Paulo Vicente.
O professor diz também que as ações de Trump têm potencial
para mudar o mapa do comércio internacional. A China está ficando cara e
representa um competidor importante para os EUA. Isso leva a um
redirecionamento de investimentos produtivos para outros países da Ásia e uma
“ocidentalização” de alguns desses investimentos - entre eles, os que
favoreceriam a América Latina e, em alguns casos, América Central e o norte da
África. Esse movimento já começou e tende a se aprofundar, prevê.
Os impactos das decisões neste primeiro mês da gestão Trump
2 devem ficar claros em meados deste ano, avalia Paulo Vicente. Até lá, o mundo
terá uma ideia mais clara do rearranjo do comércio internacional e dos impactos
inflacionários das primeiras medidas tanto no território dos Estados Unidos
quanto no restante do mundo Ocidental. Só então será possível saber o que há de
real e de fictício no show de Trump.
Nenhum comentário:
Postar um comentário