A preocupação de todos é com os reféns. Acreditam que o
governo nem de perto fez o suficiente pela libertação. Então a comunidade civil
se juntou. Os israelenses se uniram uns aos outros
Israel foi
tomado, no último ano e meio, por um sentimento. Trauma é uma palavra de que se
poderia lançar mão, mas ela não dá conta de explicar. Esta coisa, esta emoção
forte que vem de uma mudança brusca na maneira de enxergar o mundo, é nítida
principalmente em quem é de esquerda. Nesses, o sentimento choca. Na linguagem
do corpo, aflora como uma secura na fala e um olhar caído à meia pálpebra,
parado. Fixo. Compreender que ele existe, entender sua natureza, é fundamental
para ter uma visão realista do que ocorre no Oriente Médio. Porque nos leva a
perceber que não há esperança tão cedo para a paz.
Estou no país desde 6 de fevereiro, numa viagem organizada
pelo Instituto Brasil-Israel para conversar com gente de todo tipo. Ativistas,
colegas jornalistas, diplomatas, políticos. Povo nas ruas. Judeus e árabes.
Israel foi fundado com um objetivo:
proteger os judeus. A história do povo, seja a mitologia do Velho Testamento,
seja a registrada nos últimos 2 mil anos, é de perseguições. Na Europa,
culminou, nos cem anos anteriores à fundação do país, com uma série de pogroms.
Eram invasões sistemáticas das aldeias judaicas, quase sempre com apoio de
governos locais. Gente com tochas e armas que incendiava casas, saqueava
pequenos comércios, estuprava. E matava quando dava. Tudo isso culminou com as
Leis de Nuremberg nazistas e, por fim, com o Holocausto. Aí, nos anos 1940 e
1950, uns 800 mil judeus do Norte da África e do Oriente Médio foram expulsos
de suas casas, obrigados a migrar. Foi nesse contexto que nasceu Israel, país
com um único objetivo: garantir que nunca mais judeus sofreriam daquele jeito.
É um país militarizado desde o nascimento para que nunca aconteça.
No 7 de outubro de 2023, um bebê vivo foi posto num
microondas por militantes do Hamas. Foi só um dos mais de mil mortos naquele
ataque. Quando três reféns foram libertados no último sábado, pele sobre
esqueleto e olhos fundos, a comparação com o Holocausto não precisou ser feita
por ninguém. É como os israelenses os viram. Entre quem acompanha a situação
dos libertos de perto, há a sensação de que alguns jamais se recuperarão do que
possa ter ocorrido no cativeiro. Os líderes do Hamas sabem com que símbolos
mexem. Sabem onde tocam na psique judaica. E compreendem bem o efeito.
A primeira camada do sentimento que tomou Israel se forma
pela compreensão de que, no governo de Benjamin Netanyahu, pela primeira vez
não foi cumprida a promessa do Estado judaico. O “nunca mais” aconteceu. A
segunda camada é mais complexa. A celebração em Gaza, depois do ataque, passou
a mensagem de que o problema não se restringe ao Hamas. Oitenta anos após a
fundação do país, o desejo dos palestinos ainda é que Israel desapareça do
mapa. Como disse o ativista liberal Yoav Heller num jantar: “Nós estamos
discutindo 1967, e eles querem discutir 1948”. O debate não é sobre as
fronteiras para um estado palestino conviver com um estado judaico. O debate é
sobre como limpar de judeus o trecho que se inicia no Rio Jordão e se estende
ao Mar Mediterrâneo.
Aí há uma terceira camada: o fato de que nos Estados Unidos,
em toda a Europa e na América Latina, dezenas de milhares levantaram juntos a
placa “do rio ao mar”. Para um povo que, por incontáveis gerações, criou-se na
percepção de que estava sozinho no mundo e de que, nas últimas décadas,
acreditou fazer parte de uma comunidade de nações, o sentimento é que, por
todos esses anos, entendeu tudo errado.
Estão sozinhos. Ninguém se comove por seus mortos, ninguém
zelará por sua dor. É isso que hoje entendem. Em Israel, nas ruas de Israel,
não se discute a guerra. Ela é uma distração. A única preocupação de todos é
com os reféns. Acreditam que o governo nem de perto fez o suficiente pela
libertação. Então a comunidade civil se juntou. Os israelenses se uniram uns
aos outros. A última camada desse sentimento é formada por uma sensação
profunda de comunidade e solidariedade. Não é um sentimento feliz — é um sentimento
de quem precisará lutar pela sobrevivência, comum da esquerda à direita.
Podem estar errados no que sentem, mas é o que sentem. É o
que explica a guerra. E é o que definirá a política israelense assim que
Netanyahu deixar o poder.
O sentimento parece ter tomado conta de todos, mas não
destrava a polarização política que tomou o país. O governo Netanyahu é
rejeitado por franca maioria, isso as pesquisas mostram, mas os consensos param
aí. O que paira sobre todos é apenas uma secura determinada, convicta, com o
olhar caído de quem acredita não poder contar com ninguém.


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