O segundo governo Trump começou como avalanche, com uma
sucessão avassaladora de medidas drásticas, muitas delas tensionando os limites
constitucionais. Esse começo ambicioso e acelerado tem sido lido pelo
establishment progressista como a antessala do fascismo.
Onde quer que olhemos na grande imprensa americana, o tom é
apocalíptico. Num influente artigo na revista Foreign Affairs,
publicado na terça-feira, Steven Levitsky e Lucan Way argumentaram que “a
democracia dos Estados Unidos provavelmente entrará em colapso durante o
segundo governo Trump, uma vez que deixará de atender aos critérios-padrão de
uma democracia liberal: sufrágio universal adulto, eleições livres e justas e
ampla proteção das liberdades civis”. Na revista The Atlantic, no sábado
passado, o historiador Timothy Ryback, em tom de alerta, lembrou em detalhes como “Hitler desativou e depois
desmantelou sistematicamente as estruturas e processos democráticos de seu país
em menos de dois meses”. Em artigo no jornal The New York Times, também na
terça-feira, Thomas Edsall argumentou que “Trump e seus aliados têm uma grande
estratégia: primeiro, estabelecer um controle sem precedentes sobre o Poder
Executivo; segundo, forçar o Judiciário à submissão e ignorar suas decisões;
por fim, recompensar aliados, punir adversários e governar sem restrições”.
Ficamos entre assustados e fascinados pela
ambição e pela velocidade das medidas de Trump, mas não deveríamos deixar o
assombro nos desviar a atenção de sua substância e sentido. Entre as políticas
domésticas, há dois grandes grupos de medidas. As primeiras buscam reverter ou
suprimir certas políticas que considera de orientação progressista. Entre essas
medidas, incluem-se a suspensão
de políticas de diversidade e equidade, o fim
do financiamento federal a disciplinas que abordam racismo e gênero
nas escolas e o fechamento
da agência de ajuda humanitária Usaid.
Outro conjunto de medidas busca contrabalançar vieses
atribuídos às instituições americanas, privilegiando progressistas ou
perseguindo conservadores. Entre essas medidas estão o perdão
aos acusados de invadir o Capitolio, a demissão
de promotores que investigaram Trump e de policiais
federais que investigaram o 6 de Janeiro.
Precisamos também prestar atenção à forma. As medidas
ambiciosas se dão por decreto, e não por projetos de lei, e muitas delas
tensionam os limites constitucionais, amparando-se em interpretações novas e
heterodoxas. Em resumo, o que vemos na política doméstica é um programa
populista segundo o qual as instituições adotaram uma orientação progressista,
antipopular. De acordo com esse programa, a situação só pode ser reparada de
forma não convencional com um líder forte, capaz de dar um choque e demolir a
ordem progressista-elitista entranhada no Estado.
Diante do ataque populista de Trump, o establishment
progressista tem atuado para reforçar suas posições dentro das instituições,
sob a justificativa de que suas políticas representam a última barreira de
defesa dos direitos humanos. A caracterização dessas posições como defesa dos
direitos humanos torna a resistência ao populismo um imperativo civilizacional
inegociável. No entanto, ao adotar essa postura, os progressistas ignoram que a
sociedade está dividida sobre muitos desses temas e que não é nem democrático
nem sensato que instituições de Estado imponham diretrizes contestadas por
parcela significativa da população. Em vez de reconhecerem essa divisão e
buscarem algum grau de acomodação institucional, os progressistas reagem
endurecendo ainda mais suas posições.
O efeito colateral dessa estratégia é que, em vez de conter
o populismo conservador, ela o fortalece. Em vez de reduzir as tensões, os
progressistas acabam ampliando a percepção de que há uma elite estatal agindo
contra a população conservadora, tornando a narrativa populista ainda mais
poderosa. No limite, a reação intensificada pode empurrar o populismo para fora
da ordem democrática se entender que o Estado não é reformável pelo jogo
democrático regular.
Uma reação mais estratégica, e também mais
pluralista-democrática, seria os progressistas reconhecerem algumas queixas que
alimentam o populismo, reformando as instituições de modo controlado, para que
se tornem mais equilibradas e plurais e para que ajam com mais sobriedade.
Precisamos, entre outras coisas, de currículos escolares menos progressistas e
de uma Justiça mais sóbria e equilibrada, mesmo diante de ataques à democracia.
O desafio do nosso tempo é promover reformas que busquem a pluralidade e o equilíbrio,
sem enfraquecer diante dos radicais.
Isso significa dispor de instrumentos de defesa da
democracia, mas também abrir espaço a um pluralismo real dentro do Estado,
reduzindo a sensação de que ele foi tomado por um campo ideológico. Ao desarmar
essa percepção, enfraqueceríamos as correntes mais revolucionárias do
populismo, tornando menos provável que suas reivindicações evoluíssem para
tentativas de ruptura institucional. Nos Estados Unidos, agora governados pelo
populismo, o tempo para essa reação estratégica passou. No Brasil, temos ainda
dois anos.
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