O objetivo maior e final é assumir controle pleno,
sistemático e duradouro da máquina federal
Que ninguém se engane: há método no caos imposto por Donald
Trump a seu país e ao mundo neste segundo mandato. Não significa que, ao final,
ele chegará aonde quer.
Sua primeira temporada na Casa Branca (2017-2021) já havia
sido caótica, mais por despreparo e escasso conhecimento de como funciona a
máquina governamental. À época, o foco do novato na Presidência era outro —
Trump priorizou consolidar sua cumplicidade com os seguidores raiz, os
desgarrados da sociedade. Como método, usou e abusou do escárnio compartilhado,
da zombaria pública, do linchamento verbal.
“A crueldade os encheu de satisfação e orgulho, fez com que
se sentissem próximos uns dos outros”, escreveu em 2018 o jornalista Adam
Serwer no ensaio “A crueldade como objetivo”, sobre o impacto da chegada de
Trump ao poder.
Ele se referia a imagens do século passado
em exposição no Museu da História e da Cultura Afro-Americana, em Washington,
que mostram homens de bem, brancos, posando com largos sorrisos junto a corpos
negros mutilados, queimados ou pendurados em árvores. Mas também se aplicava ao
método do novo governante.
Trump arregimentava votos com sua imitação do sotaque
porto-riquenho, em meio aos milhares de mortos e desalojados pelo Furacão
Maria. Fazia imitações grosseiras de manifestantes antirracistas, de pessoas
com deficiência, de minorias não brancas, de mulheres do movimento #MeToo.
Arrancava gargalhadas ressentidas por camadas de preconceitos. Para além do
gozo com esse tipo de crueldade, havia o fato de o gozo ser coletivo. “Em algum
lugar, entre o amplo espectro que vai de provocações adolescentes ao gáudio de
homens brancos sorrindo em linchamentos, está uma comunidade construída sobre a
angústia de diferentes. A habilidade do presidente em exercer crueldade por
meio da palavra, de gestos e de atos manteve unidos seus seguidores raiz”,
apontou Serwer. Trump conseguira fazer do escárnio compartilhado a resposta
para a atomização da vida moderna. Reelegeu-se.
Em 2025 a estratégia é outra. O método atual não visa a
adesões por cumplicidade, visa à obediência por meio de choque e temor. Desta
vez, o caos inicial gerado pela avalanche de decretos é deliberado — ele ajuda
a disseminar medo e incerteza. A parcela dos 2,3 milhões de funcionários
públicos federais que receberam um e-mail intitulado “Bifurcação na estrada” —
e teriam apenas seis dias para pedir demissão remunerada — entrou em pânico.
Mesmo suspenso por decisão judicial faltando cinco minutos para entrar em
vigor, a confusão e a perplexidade persistem.
Nada melhor que a revitalização da máquina de deportações de
imigrantes, contudo, para mergulhar em desassossego famílias, comunidades,
cidades e países inteiros. O caráter genérico e impreciso da nova ordem ajudou
a turbinar o pânico. A estratégia batizada por Steve Bannon de “flood the zone
with shit” (inundar a área com merda, ou saturar o espaço da comunicação com
desinformação e versões confusas, dificultando a capacidade do público de
discernir a verdade) está a pleno vapor.
Enquanto Trump lança a esmo o número de 1,5 milhão de
imigrantes a ser enxotados, o novo czar da fronteira, Tom Homan, aconselha
amigos republicanos a baixar as expectativas, pois os recursos são limitados. O
mesmo Homan bravateia a criação do disque-denúncia 1-800-DEPORT, deixando em
aberto a possibilidade de gratificação a quem dele fizer uso, apesar de já
existir serviço análogo, há duas décadas, que recebe 15 mil chamadas mensais.
A newsletter do americano Adrian Carrasquillo, na Bulwark,
faz uma pergunta oportuna: o que o governo Trump 2.0 pretende ao disseminar
tanto medo? Resposta: a autodeportação. Segundo apuração do repórter junto a
ativistas, advogados, republicanos e democratas, o anúncio de medidas punitivas
— levadas a cabo ou não — induz famílias inteiras a desesperançar. A ponto de
querer partir. Carrasquillo evoca um episódio ocorrido no Vale San Fernando, na
Califórnia. A Polícia de Imigração e Alfândega (a temida ICE) fizera uma blitz
à procura de oito imigrantes sem documentos e acabou por prender 40 pessoas que
espontaneamente admitiram estar em situação irregular. A legislação de vários
estados de maioria republicana já prevê a proibição de acesso a educação, transporte
público e serviços básicos como água e moradia popular a quem não puder
comprovar status migratório legal no país. Como não desistir diante de futuro
tão soturno?
É numa esfera pouco visível e longe do noticiário flood
the shit que está em curso o objetivo maior e final de Trump: assumir
controle pleno, sistemático e duradouro da máquina federal. O conjunto de
ordens executivas e medidas adotadas nesse sentido nada tem de caótico — são
eficazes, precisas e reveladoras de um planejamento de anos para o desmonte da
burocracia qualificada. Um dos primeiros decretos postos em prática pinçou 20
advogados do Departamento de Justiça que atuavam em investigações sobre criptomoedas
e violações da integridade pública. Por serem funcionários de carreira, não
puderam ser demitidos. Foram realocados para atuar no combate à imigração
ilegal. Três departamentos inteiros do mesmo ministério, que poderiam
interferir nas atividades extracurriculares de Trump, foram erradicados. A
profusão de ações pontuais semelhantes tem se multiplicado em todos os setores
da esfera federal.
É um assalto a mão desarmada com mais de 200 semanas de
duração.
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